Sugestão é que as instituições públicas tracem um planejamento de desenvolvimento por 20, 30 ou 40 anos das regiões mais necessitadasReprodução
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Contextualizando: A relação entre consórcios que congregam, de um lado, governos das regiões Norte e Nordeste, e, de outro, estados das regiões Sudeste e Sul, passou a ser objeto de discussão nas redes sociais, opondo o Produto Interno Bruto (PIB) gerado pelas unidades da federação a sua representação política no Senado.
O tema ganhou peso por conta de uma entrevista do governador de Minas Gerais, Romeu Zema, ao jornal O Estado de S. Paulo, no dia 5 de agosto. Zema defendeu maior protagonismo político para as regiões Sul e Sudeste em discussões nacionais e criticou o que acredita serem injustiças sofridas pelos estados dessas regiões em relação à distribuição de verbas do governo federal.
Na ocasião, ao falar sobre a criação do Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud), Zema disse que a diferença de tratamento às regiões ficou evidente durante a discussão da Reforma Tributária e cobrou maior representatividade do Sul e Sudeste no Senado.
Como este é um tema que está gerando desinformação, o Comprova consultou dados e ouviu especialistas e reúne aqui informações para dar mais contexto ao debate.
A Federação
A diferença no número de deputados entre os estados poderia desequilibrar a "balança" em favor das regiões mais populosas, que, com maior número de representantes, teriam mais facilidade para aprovar leis e destinar recursos no Orçamento. O objetivo da criação do Senado foi justamente equilibrar este cenário. Sua função é representar a federação, ou seja, os estados e o Distrito Federal no Congresso Nacional. Para fazer valer a igualdade entre os estados na formulação das leis, o número de senadores é igual para todos: três para cada uma das 27 unidades da Federação, somando 81 membros. O Brasil adota este modelo desde 1891, com a primeira Constituição da República.
Cosud
Entre as pautas estão: saúde, desenvolvimento econômico, transportes, logística, segurança pública, combate ao contrabando, sistema prisional, inovação e tecnologia, desburocratização e turismo.
Um dos destaques para a criação do Cosud, argumentado pelos gestores, é que as regiões concentram cerca de 70% do PIB nacional, o que, de fato, é evidenciado por dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Desde o anúncio da criação, os governadores dos sete estados realizaram oito eventos presenciais do Cosud. No último, em junho de 2023, foi anunciada a formalização do consórcio com a celebração de um protocolo de intenções subscrito pelos estados, conforme preconiza a Lei Federal 11.107/2005 e o Decreto 6.017/2007. Por lei, o contrato do consórcio ainda precisa ser formalizado em cada estado integrante da organização para concluir a constituição do Cosud.
No último encontro, o governador do Paraná, Ratinho Júnior (PSD), foi anunciado como o primeiro coordenador do Cosud. Ele ocupará o posto até dezembro de 2024.
Reforma tributária na Câmara
O Conselho Federativo consta na Reforma Tributária e é um órgão a ser criado para decidir como será a divisão de recursos oriundos da arrecadação do futuro Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que irá substituir o ICMS e ISS, os dois principais tributos dos estados e municípios. Os critérios de criação desse conselho foram pontos polêmicos da discussão na Câmara.
Inicialmente, a proposta previa que o conselho teria 27 membros, representando cada estado, e 27 integrantes para o conjunto dos municípios. Mas gestores do Sul e Sudeste, como os governadores do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite; e de São Paulo, Tarcisio de Freitas, alegaram uma sub-representação das regiões no processo, pois, como o Norte e Nordeste têm, juntos, 16 dos 26 estados, segundo argumentaram, se as decisões fossem tomadas por maioria simples, uma aliança entre as duas regiões seria suficiente garantir a deliberação.
No desenho aprovado, o Conselho Federativo deve ter 27 membros de representação dos estados (um para cada estado e o Distrito Federal) e 27 integrantes representando as cidades. Mas, as decisões, para serem aprovadas, precisarão obter tanto os votos da maioria absoluta dos 27 representantes de municípios, como a maioria absoluta de representantes estaduais que, somados, correspondam a pelo menos 60% da população brasileira. Dessa forma, o texto potencializa o poder de decisão das regiões Sul e Sudeste detentoras de estados como São Paulo e Minas Gerais, com população mais numerosa.
Agora, a proposta da Reforma está no Senado e o relator do documento na Casa, senador Eduardo Braga (MDB-AM), propõe a revisão dessa proporção. Com isso, há possibilidade, argumenta ele, de que estados de outras regiões (fora do Sul e Sudeste) sejam incluídos no peso decisório do Conselho.
Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional
No entanto, o mecanismo ainda não tem uma definição precisa quanto aos critérios de distribuição da verba. Na prática, a PEC precisa ser aprovada no Senado e o modo de repasse dos recursos do Fundo só será definido em uma lei complementar que ainda irá tramitar.
Em junho deste ano, na carta de compromisso elaborada no último evento do Cosud, os governadores do Sul e Sudeste dizem estar preocupados com a criação de “novos fundos de desenvolvimento” com foco na redução das desigualdades regionais do país.
No documento, eles destacam que é preciso considerar as desigualdades sociais e econômicas significativas existentes também nos estados do Sul e Sudeste, já que há “muitas cidades e regiões inteiras com renda per capita abaixo da média nacional, e que, portanto, demandam também atenção”, e pedem que estas regiões também sejam abarcadas pelo fundo.
Arrecadação e distribuição de recursos
O governo federal, portanto, tem a obrigação de entregar 50% do arrecadado com esses impostos (IR e IPI) da seguinte forma:
21,5% ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE);
22,5% ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM);
3% para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional. Os chamados fundos constitucionais;
3% de repasse adicional ao FPM, sendo o repasse anual nos meses de julho, setembro e dezembro de cada ano.
O professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Direito Rio e pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito e Economia (CPDE), Gustavo Fossati, diz que nesse contexto "tudo depende muito da performance da economia". "Essa lógica inicial é muito importante porque tudo vai depender da arrecadação do Imposto de Renda e do IPI. As pessoas têm que ganhar mais dinheiro para daí pagar mais imposto, e a indústria tem que produzir mais para daí pagar mais IPI", explica.
Em termos de arrecadação, no âmbito federal, o principal é o IR, reitera o professor adjunto da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) Pedro Forquesato. Ele acrescenta que, nesse caso, "a alíquota é a mesma no país inteiro, mas isso não quer dizer que a arrecadação é igual, porque estados mais ricos pagam muito mais Imposto de Renda. Então, essa é uma fonte de desigualdade".
O professor também reforça que tanto o FPE como o FPM direcionam mais recursos para os estados mais pobres, pois foram criados justamente por essa razão. Desse modo, na distribuição da arrecadação federal, as regiões mais desenvolvidas economicamente tendem a ter maior capacidade de recolhimento da verba (pagam mais) que, posteriormente, é distribuída entre os estados e, nessa equação, podem receber menos. Esse é o primeiro ponto. Mas, como ocorre, de fato, a divisão desses recursos?
Nessa etapa entram critérios que também constam na Constituição ou em leis complementares à ela, e, nesse caso, explica Fossati, é preciso considerar a dimensão do país e as desigualdades que marcam historicamente as regiões. "Como o Brasil é muito grande, ele tem muitas diferenças entre as regiões. Isso é um fato. Fato comprovado pelo IBGE, principal instituto que nos traz indicadores tais como população e renda per capita", completa.
Na Constituição, acrescenta o professor, "um dos objetivos fundamentais, para além da erradicação da pobreza da fome, é a redução das desigualdades regionais. Então, já começa por aí, com a chamada missão constitucional de reduzir desigualdades". A lei máxima do país, nesse ponto, reforça o pacto federativo e tem como prerrogativa a garantia do enfrentamento às desigualdades entre as regiões.
"De que forma? Quem ganha mais, contribui mais, quem ganha menos, contribui menos. Ou seja, quem tem mais capacidade econômica financeira tem mais obrigação de ajudar aquelas pessoas que precisam. Se constatamos por indicadores socioeconômicos que as regiões precisam de mais ajuda para se desenvolver, então, temos que ajudá-los. E quem vai ajudar mais são as regiões que têm mais capacidade econômica e financeira", afirma Fossati.
Nesse sentido, a Lei Complementar, a nº 62 de 1989 estabeleceu normas para o cálculo da distribuição do FPE, que atende diretamente aos estados. E, entre 1989 e 2013, 50% da arrecadação federal do IR e do IPI eram distribuídos da seguinte forma:
85% para as Unidades da Federação integrantes das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste;
15% para as Unidades da Federação integrantes das regiões Sul e Sudeste.
"Dentro da tabela dos percentuais, vou dar um exemplo, enquanto o Estado de São Paulo é o mais pujante, o mais rico, tinha o coeficiente individual de participação na ordem de 1, a Bahia tinha coeficiente de 9,4. Então, o coeficiente individual da Bahia é nove vezes maior do que o de São Paulo. Isso continua refletindo a lógica distributiva", acrescenta o professor.
Já em 2016, o cálculo mudou novamente. A tabela, que é atualizada anualmente, ainda é considerada na distribuição do recurso, mas passa a ser corrigida pelo IPCA e por 65% da variação do PIB. Além disso, eventual parcela que superar esse montante é distribuída a partir da combinação de dois fatores: população e renda.
"O IBGE fornece todos os anos para o Tribunal de Contas da União (TCU) dados relativos à população e à renda domiciliar. E o TCU anualmente faz esses cálculos. E o TCU leva em consideração também o tamanho da população e o inverso da renda domiciliar, porque a lógica é justamente esta: ajudar mais quem precisa de mais ajuda e tem menos renda. Há 10 anos que temos essa regra", detalha. Os coeficientes estão disponíveis publicamente e podem ser conferidos no site do TCU.
Fundos constitucionais do Norte, Nordeste e Centro-Oeste
Nesse caso, há ainda o detalhamento que, conforme a norma constitucional, fica assegurado ao semiárido do Nordeste a metade dos recursos destinados à Região.
Da proporção de 3% há a seguinte divisão estabelecida também em lei específica (Lei 7.827/1989).
0,6% para o Fundo Constitucional de Financiamento do Norte;
1,8% para o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste; e
0,6% para o Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste.
No caso do Fundo Constitucional do Nordeste, é importante ter ciência que, tendo em vista o direcionamento ao semiárido brasileiro, a verba, além das atividades produtivas no Nordeste, também financia municípios do norte de Minas Gerais e do Espírito Santo. Segundo informa o site oficial do Banco do Nordeste, essas são "regiões também de vulnerabilidade econômica".
O modelo de distribuição é injusto e gera competição?
A diferença foi amenizada, argumenta, por conta da vinculação do FPE à variação do IPCA, do PIB e dos indicadores de população e do inverso da renda per capita. Mas, mesmo com essa alteração de metodologia de cálculo, ele avalia que “o desenho permaneceu parecido”.
A justificativa, acrescenta, também permanece a mesma: "o fato de o Brasil ter muitas desigualdades regionais. Não termos superado esse problema. Tanto é verdade que, por exemplo, a Zona Franca de Manaus vai ser mantida, inclusive na Reforma Tributária, porque a região de Manaus continua precisando de incentivos fiscais. Se tirar os incentivos fiscais de lá, as empresas que estão lá, vão embora. E a Região vai colapsar. As regiões do país ainda precisam de ajuda."
O professor da FEA-USP Pedro Forquesato diz que inevitavelmente é verdade que estados mais pobres são "privilegiados" na distribuição de recursos do governo federal, e acrescenta que isso ocorre tanto pela volta dos principais impostos federais para regiões mais pobres, conforme os critérios já explicados, como pelas "políticas de assistência" que "também são concentradas nos estados mais pobres". Porém, destaca, os programas assistenciais no Brasil respondem por uma proporção pequena do PIB, e "a maior expectativa de vida no Sul e Sudeste podem fazer com que os gastos previdenciários nessas regiões sejam maiores".
O tratamento diferenciado do Norte e Nordeste nas transferências do FPE e FPM e nos fundos constitucionais também é reiterado pelo professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal do Ceará (UFC) João Mário de França. Em paralelo, ele traz um contraponto.
Segundo França, "quando olhamos as renúncias tributárias da União, analisando os Gastos Tributários definitivos da União para o ano de 2020, elas se concentram principalmente na região Sudeste com quase metade, precisamente 49,1% do valor total com o Sul ocupando o segundo lugar com 16,1%". Isso significa, na prática, que o governo está incentivando o crescimento econômico de forma diferenciada nesses locais, desta vez "favorecendo" o Sudeste.
França também avalia que "qualquer modelo de distribuição de recursos federais pode ser sempre aperfeiçoado produzindo melhores incentivos" e afirma não ver injustiça no atual formato pois "acha importante esse olhar federativo sobre regiões com menos oportunidades e atividade econômica com menor dinamismo para potencializar um desenvolvimento mais equilibrado no país como um todo".
O que pode ser feito?
A sugestão é que as instituições públicas tracem um planejamento de desenvolvimento por 20, 30 ou 40 anos das regiões mais necessitadas e que dentro desse prazo essa distribuição dos recursos arrecadados possa considerar outros critérios, tendo em vista, uma suposta mudança de realidade das regiões mais pobres.
O professor Pedro Forquesato reitera que o foco de financiamento nos estados mais pobres é "uma política intencional de redução das desigualdades regionais" e na sua avaliação é possível discutir se esse direcionamento é eficaz e tem realmente ajudado a diminuir as desigualdades regionais no Brasil. "Mas algum direcionamento tem que ter, da mesma forma em que é natural que o estado gaste mais com indivíduos mais pobres que com os mais ricos".
Repasse dos estados à Receita
No mesmo período, os estados do Sul-Sudeste repassaram mais de R$ 5,9 trilhões.
Tipos de tributos arrecadados e repassados à Receita pelos estados:
Imposto sobre importação
Imposto sobre exportação
IPI – total
IPI – fumo
IPI – bebidas
IPI – automóveis
IPI – vinculado à importação
IPI – outros
Imposto sobre a renda – total
IRPF
IRPJ
Entidades financeiras
Demais empresas
Imposto s/ renda retido na fonte
IRRF – rendimentos do trabalho
IRRF – rendimentos do capital
IRRF – remessas ao/ exterior
IRRF – outros rendimentos
Imposto s/ operações financeiras
Imposto territorial rural
Cofins
Financeiras
Demais
Contribuição para o pis/pasep
Financeiras
Demais
Csll
Financeiras
Demais
CIDE-combustíveis
CPSSS – contrib. p/ o plano de segurança. Social Serv. Público
Outras receitas administradas
Receita previdenciária
Administradas pela RFB
Administradas por outros órgãos
Repasses da União a estados
É de responsabilidade do Tesouro Nacional, em cumprimento aos dispositivos constitucionais, efetuar as transferências desses recursos aos entes federados, nos prazos legalmente estabelecidos.
De 2017 a 2021, a União repassou aos estados do Sul e Sudeste o total de R$ 230,4 bilhões.
No mesmo período, os estados do Norte e Nordeste receberam R$ 405,3 bilhões.
Tipos de tributos arrecadados e repassados aos estados:
Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal – FPE
FUNDEB – Distribuição das Retenções da União
FUNDEB – Complementação da União
Royalties ANP / PEA / FEP
PFEC INCISO II
Apoio / Auxílio Financeiro aos Estados, Municípios e DF
IPI-Exportação
Cessão Onerosa
PFEC Inciso I
Royalties – CFM
Lei Complementar 176/2020 (ADO25)
CIDE-Combustíveis
Royalties – CFH
Ajuste FUNDEB – Complementação da União
FEX – Auxílio Financeiro de Fomento às Exportações
Lei Complementar N. 87/96 (Lei Kandir)
Ajuste FUNDEB – Distribuição das Retenções da União
Serviço de Apoio à Gestão Descentralizada do Programa Bolsa Família / Aux. Brasil
IOF – Ouro
O que diz o responsável pela publicação: O perfil @mspbra, que fez a postagem que deu origem a este Contextualizando, foi procurado por e-mail mas não houve retorno até a publicação desta checagem.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 18 de agosto, o post no Telegram somava 7,8 mil visualizações, enquanto no X (antigo Twitter) eram 166,6 mil visualizações e 5,6 mil curtidas até a mesma data.
Como verificamos: O Comprova realizou buscas no Google e em sites do governo federal, e analisou dados encontrados na página do Tesouro Nacional sobre os repasses feitos aos estados. Além disso, entrevistou o doutor em direito tributário pela Universidade de Münster, na Alemanha, e professor de Direito da FGV Gustavo Fossati, o professor doutor do departamento de Economia da USP Pedro Forquesato, e o professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFC João Mário de França.
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para publicações que obtiveram maior alcance e engajamento e que induzem a interpretações equivocadas. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: Recentemente, o Comprova mostrou que vídeos enganam ao sugerir que governo federal liberou as drogas e que a taxa sobre energia solar foi sancionada no governo de Bolsonaro, não de Lula.
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