O Congresso Nacional está no centro de uma disputa com o Palácio do Planalto sobre a Medida Provisória (MP) da Reoneração, editada pelo governo federal em dezembro. A medida, que revogou uma série de benefícios fiscais para 17 setores aprovados pelo Congresso em outubro, tornou-se um ponto crítico de confronto entre os poderes legislativo e executivo, refletindo as tensões sobre o futuro econômico do Brasil e o impacto da reforma tributária. O DIA ouviu empresários, representantes sindicais, políticos e economistas para entender o quanto a aprovação ou revogação dessas medidas influenciam o cotidiano do cidadão.
A MP busca alterar o regime de tributação de contribuições previdenciárias para empresas de setores anteriormente beneficiados pela desoneração, por exemplo, da folha de pagamento. A renúncia fiscal, que permitiu às empresas contribuírem com um percentual entre 1% a 4,5% sobre o faturamento, em vez dos tradicionais 20% da folha de pagamentos, foi uma estratégia adotada para impulsionar o emprego e a atividade econômica em setores-chave.
No entanto, a reoneração vem gerando controvérsias. Defensores da medida no governo argumentam que é essencial para o equilíbrio fiscal do país e para a sustentabilidade da Previdência Social. Por outro lado, críticos no Congresso e representantes de setores empresariais alegam que a reoneração pode levar à perda de empregos e prejudicar o crescimento econômico de diversos setores da economia ainda buscam recuperação após os efeitos da pandemia de Covid-19.
Vários setores da economia foram beneficiados por essa medida, mas os mais impactados positivamente foram construção civil, indústria têxtil, tecnologia da informação, call centers, transporte rodoviário de cargas, entre outros. Eles são caracterizados pela alta demanda de mão de obra, o que significa que a substituição da base de cálculo da contribuição previdenciária de folha de pagamento para faturamento tende a reduzir significativamente seus custos trabalhistas.
No entanto, a desoneração da folha de pagamento tem sido alvo de diversos questionamentos. O principal é o impacto fiscal dessa medida. Críticos argumentam que ela reduz a arrecadação do governo, o que pode afetar a sustentabilidade da Previdência Social a longo prazo. Além disso, questiona-se a eficácia da medida em termos de geração de empregos — um de seus objetivos principais. Há também preocupação com a escolha dos setores beneficiados, levantando debates sobre justiça fiscal e eficiência econômica.
Por outro lado, argumenta-se que a desoneração é vital para a manutenção e criação de empregos em setores chave da economia, especialmente em períodos de recessão ou de baixo crescimento econômico. Além disso, setores que passaram a ser beneficiados após a pandemia criticam o fim repentino, não respeitando os prazos estabelecidos e a falta de diálogo com representantes.
Segundo o economista Ricardo Maluf, historicamente, a intenção original da medida previa uma política temporária. "A primeira grande análise é sobre a natureza da medida de desoneração. Ela foi criada em 2012 com a chancela de temporária. Esse tipo de instrumento não deveria continuar com esse nome por tanto tempo", explica.
Maluf também chama atenção para os perigos de se prorrogarem benefícios sem planejamentos de longo prazo: "Quando se parte da premissa de uma tributação diferenciada para se planejar investimentos ou contratações durante muitos anos, tornamos verdadeira uma conhecida expressão popular: 'o uso do cachimbo deixa a boca torta'".
Apesar disso, o economista reconhece os benefícios que a desoneração trouxe para setores como o automotivo e a construção civil, mas destaca as complicações de reverter essas políticas em um mercado econômico menos favorável: "Reverter gradualmente os planejamentos feitos por empresas desses setores seria mais fácil se estivéssemos diante de um mercado bem aquecido", avalia.
Maluf destaca que os empregos nos empregos devem ser criados de maneira sustentável e não por meio de subsídios. Contude, segundo ele, essas iniciativas oxigenam a economia desses setores. "Não restam dúvidas de que, quanto menor a tributação, maior será o estímulo para produzir", conclui.
Jurista vê 'ataque ao Congresso'
O jurista Ives Gandra considera a MP que reonerou alguns setores da economia como um "ataque ao Congresso". Segundo ele, ainda há muita indefinição sobre as consequências da reforma tributária.
"Foi aprovada a emenda à Constituição. Ótimo. Temos agora um novo sistema. Sabe-se qual vai ser alíquota? Não; nunca disseram qual seria alíquota. Sabe-se quais serão as perdas dos estados e municípios? Não; apenas cálculo aleatório. Sabe-se quanto cada setor vai ganhar ou perder? Não; não há nenhum cálculo até hoje", disse.
Gandra acredita que a falta de avaliação sobre os impactos da medida pode deixar o governo exposto a lobbies dos setores. "Enquanto não houver projetos de lei complementar e de lei ordinária, nem análise do impacto em todas as entidades federativas, em todos os segmentos, de que maneira efetivamente o sistema funcionará e como o Supremo interpretará todos esses dispositivos, bem como não souber quais setores, ao saberem os percentuais da lei, farão lobbies e serão atendidos", concluiu.
Reunião com lideranças sindicais
No dia 9 de janeiro, após uma reunião entre dirigentes sindicais, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, e o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, o presidente da Central Única dos trabalhadores, Sérgio Nobre, afirmou a necessidade de diálogo com os empregadores.
"A gente precisa ouvir também um setor empresarial, ouvir o que eles têm a dizer. Nós conhecemos os setores porque nós representamos os trabalhadores, e aí o grande desafio é a gente, no período mais célere possível, encontrar uma proposta que possa chegar tanto ao governo, quanto aos empresários e aos trabalhadores e entregar ao Congresso Nacional", disse.
"Uma proposta de consenso, esse é o caminho razoável que tranquiliza os trabalhadores, e é essa mensagem que a gente quer passar. Na nossa história, sempre que a gente sentou para negociar, a gente buscou uma solução inovadora e eficaz para sair desse impasse que nós estamos vivendo hoje", ponderou na ocasião.
Sobre as possíveis dificuldades de se negociar uma proposta, Sergio Nobre disse estar muito otimista de que empresários, governo e trabalhadores chegarão a um consenso. "Quando a gente está numa negociação tudo é possível. A gente não pode sentar à mesa engessado, não pode nisso, não pode mexer naquilo, é causa pétrea. Tem que ter flexibilidade. Estou otimista para se chegar a um caminho comum, de encontrar uma proposta ", disse, ao fim da reunião.
Manifestação contra fim de programa
No texto da MP da Reoneração consta o fim do Perse. O programa, que serviu para dar apoio para empresas do setor de turismo e eventos após a pandemia de Covid-19, está com os dias contado: o prazo para o fim das renúncias fiscais é abril.
O risco de impactos nos setores levou a uma mobilização de políticos contra o fim do programa. O autor do projeto de lei, Felipe Carreras (PSB-CE) — juntamente com as relatoras na Câmara, Renata Abreu (Podemos- SP), e no Senado, Daniella Ribeiro (PSD-PB), tem uma reunião agendada nesta terça-feira, 6, com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, além de representantes do setor, para debater uma solução para o Perse. Para quarta-feira, 7, os parlamentares convocaram um ato no plenário da Câmara, em defesa do Perse.
"Vamos fazer uma reunião com o Ministro Haddad, no dia 6, e tentar uma saída para não acabar o Perse. Talvez uma saída modular, e não terminar como foi editada a MP no fim do ano", disse Carreras.
O parlamentar reforçou a necessidade do diálogo e ressaltou que a instituição e a prorrogação do programa são fruto de acordo no Congresso em ambientes políticos distintos. "A lei passou por dois governos presidenciais diferentes, e o diálogo com todos os parlamentares foi no sentido da manutenção do programa, com o objetivo de preservar os setores que mais produziram empregos no pós pandemia, de acordo com dados do próprio governo".
Carreras destacou que o próprio governo seria beneficiado com a manutenção do programa. "As empresas sérias, que trabalham com planejamento, não podem repentinamente, se verem abandonadas pelo incentivo inclusive para pagar dívidas. O que pode, inclusive, impedir o pagamento de R$ 20 bilhões ao governo em renegociações", frisa.
"[O Perse] Não representa 2% do que o Brasil dá de incentivos para vários setores há décadas, que é mais de R$ 500 bilhões por ano. Vamos trabalhar para a manutenção do programa e ajudar na recuperação dessas atividades que são, reconhecidamente, umas das maiores empregadoras do país", conclui.
A senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB) acredita que os resultados obtidos pelo Perse seriam justificativa para a manutenção do benefício. "O setor foi o primeiro a ser penalizado e o último a ser beneficiado. Infelizmente, devido a uma medida provisória que o governo federal editou em dezembro, ele pode acabar. E o fim dele é ir de encontro ao setor que mais cresceu no País. Dados do IBGE e do Ministério do Trabalho indicam que o setor cresceu no primeiro semestre de 2023, mais que o mesmo período em 2022. E isso significa atingir um setor que tem dado resultados práticos e econômicos para o país", analisa.
Entidade apresentou sugestões a Haddad
No último dia 26 de janeiro, o presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), Paulo Solmucci, propôs ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, algumas alterações na MP 1.202. A entidade sugeriu três modificações: restringir os benefícios do Perse aos prejuízos reportados de 2020 a 2023; revisar o lucro médio das empresas que usufruíram do programa em 2019; ou calcular o lucro médio de 2019 e limitar a assistência a 60 vezes esse valor médio mensal. Segundo a Abrasel, todas essas recomendações têm como objetivo prevenir possíveis fraudes.
De acordo com Solmucci, após um bom momento vivido em dezembro de 2023, o fim do programa poderia paralisar a recuperação do setor. "Dezembro foi o nosso melhor momento, mas ainda assim estamos com 18% das empresas operando com prejuízo, outras no equilíbrio e mais da metade sem fazer lucro. Essas empresas têm hoje 10% de faturamento, em média, comprometidos com dívidas da pandemia", destaca. Ele acrescenta que a revogação do Perse, somada a um desenquadramento em massa de bares e restaurantes do Simples Nacional, representa uma grave situação de insolvência, o que poderia levar o setor a uma quebradeira em massa, com efeito cascata na economia.
"Propus ao ministro que a gente fizesse uma espécie de 'Plano Marshall' de bares e restaurantes, e ele recebeu a ideia com muita simpatia. Disse que é uma coisa que quer encampar e levar à frente", diz, pontuando que a ideia ainda é incipiente e está em fase de estudos.
Perigo de demissões
Outro setor que tem apresentado preocupação com o fim dos benefícios fiscais é o de eventos. Dados do IBGE e do Ministério da Previdência e do Trabalho de 2023 revelam que os segmentos de eventos corporativos , entretenimento e turismo são os maiores geradores de empregos no País, confirmando estatísticas de 2019 quando o setor de eventos foi responsável pela fatia de 4,75% do Produto Interno Bruto Brasileiro (PIB) e movimentava cerca de 1 trilhão de reais em toda a cadeia. Com a pandemia houve uma quebra no crescimento e 98% das empresas atingidas.
Para presidente da Associação Brasileira das Empresas de Eventos (Abeoc Brasil), Enid Câmara, com o possível fim do Perse, a atividade levou mais de seis décadas para chegar ao seu apogeu e, por uma "catástrofe de saúde", foi destruída em dois anos, seria novamente abalada, gerando desemprego em cadeia.
"Não podemos esquecer a transversalidade do mercado e sua responsabilidade sobre a economia brasileira, pois seriam afetados setores da indústria, transporte, serviços e outras, que andam lado a lado aos eventos de todos os tipos e tamanhos", destaca.
Segundo Enid, o programa deve manter o cronograma inicial, elaborado por meio de estudos, e que visavam à recuperação das empresas. "As empresas e profissionais de eventos se planejaram para recuperar o setor dentro desse prazo. Por isso, nós não contamos com a não manutenção do Perse", diz.
A presidente da Abeoc Brasil confirmou presença no ato organizado por lideranças políticas, e ressaltou a adesão de parlamentares. "Além de representantes do grupo G20+, que é o grupo formado pelas principais entidades do trade de eventos e turismo no Brasil, teremos uma maciça presença de empresários e parlamentares. Até 30 de janeiro, confirmamos a presença de 102 parlamentares, sendo 86 deputados e 16 senadores. Ou seja, o parlamento brasileiro também acredita na importância da manutenção do Perse", conclui.
Procurado por ODia, o Ministério da Fazenda informou que não vai se pronunciar sobre o caso.
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