Com a regulamentação da Reforma Tributária, um novo tributo deve incidir sobre as bebidas alcoólicas, refrigerantes, cigarros e até mesmo carros. O Imposto Seletivo, destinado a desencorajar o consumo de produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, será aplicado sobre alguns bens e serviços. A medida visa a não apenas arrecadar recursos adicionais para o Estado, mas, principalmente, promover hábitos mais saudáveis e sustentáveis entre a população. No entanto, a definição das alíquotas específicas ainda gera debate e incerteza quanto ao impacto financeiro para empresas e consumidores.
"O que temos efetivamente é um imposto extrafiscal com um objetivo indutor de regular o consumo em relação aos bens que sejam prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. A legislação lista esses produtos, embora ainda não esteja totalmente definida, mas já se percebem alguns critérios", explica Eduardo Natal, mestre em Direito Tributário pela PUC/SP e presidente do Comitê de Transação Tributária da Associação Brasileira da Advocacia Tributária (Abat).
Segundo o Ministério da Fazenda, o Projeto de Lei Complementar 68 apresenta uma proposta de produtos a serem abrangidos pelo IS, porém as alíquotas não fazem parte do PLP, elas serão enviadas posteriormente por lei ordinária. De acordo com a Fazenda, apenas depois da definição das alíquotas é que será possível estimar os eventuais impactos econômicos.
Para Francisco Arrighi, consultor tributário e presidente da Fradema Consultores Tributários, o Imposto Seletivo, além de desestimular o consumo de produtos que causam danos à saúde, busca tornar o sistema tributário mais justo, beneficiando as pessoas com menores rendas. Segundo ele, com o aumento do imposto, espera-se uma maior arrecadação de recursos, que poderão ser direcionados para financiar políticas públicas nas áreas de educação, saúde e meio ambiente. "O que se espera é que com o aumento da carga tributária sobre esses itens, haja a redução em seu consumo e, consequentemente, diminuição nos impactos negativos à saúde pública e ao meio ambiente", compartilha.
Produtos com Imposto Seletivo
A proposta de Imposto Seletivo abrange uma variedade de produtos, cujas alíquotas serão determinadas por meio de lei ordinária. Os produtos sujeitos à cobrança incluem veículos, como automóveis de passageiros e determinados veículos para transporte de carga; embarcações e aeronaves, como helicópteros, aviões, iates e outras embarcações de recreio ou esporte com motor; produtos fumígenos como cigarros, cigarrilhas e charutos; bebidas alcoólicas como cerveja, vinho, licores, whisky, vodka, rum; entre outras, bebidas adoçadas como refrigerantes com açúcar ou outros edulcorantes ou aromatizantes e bens minerais extraídos, como minério de ferro, óleo bruto de petróleo e gás natural.
É possível que a lista de produtos seja ampliada.
Segundo Natal, a legislação determinará a obrigatoriedade para os bens incluídos na tributação do imposto seletivo de pagar uma alíquota maior. Isso estará em conformidade com a modelagem do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual, que é o modelo do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). No entanto, será objeto de análise se os produtos definidos como tal serão realmente adequados para essa tributação.
O setor de bebidas destiladas já estuda maneiras de lidar com essa tributação. Enquanto alguns produtores de cerveja apoiam a tributação com base na quantidade de álcool na bebida, outros, como os produtores de destilados, discordam dessa abordagem.
Em nota, a Associação Brasileira de Bebidas Destiladas afirmou que está "analisando minuciosamente" o texto enviado ao Congresso e promovendo debates com "players do setor", de forma a buscar "o princípio da isonomia dentro da categoria".
A Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) também expressou sua posição contrária à inclusão de alimentos entre os setores contemplados pelo imposto seletivo. Segundo a entidade, a medida impactaria diretamente toda a população, especialmente os grupos de baixa renda que dependem desses alimentos para sua segurança alimentar. Para os setores produtivos, os impactos seriam ainda mais significativos, afetando a capacidade competitiva de determinados segmentos diante dos aumentos de custos.
A ABPA ressalta ainda que a tributação de alimentos vai contra o entendimento global de que eles são essenciais para a segurança alimentar e a estabilidade social de uma nação.
Desafios na implementação
A implementação e aplicação do imposto seletivo enfrentam desafios jurídicos significativos. De acordo com Francisco Arrighi, um deles é a definição precisa de quais produtos e serviços serão considerados nocivos à saúde ou ao meio ambiente, o que poderá causar muita discussão judicial, pois possibilitará a diversos contribuintes afastar esta tributação, já que irá onerar seu negócio. "É possível que um produto seja classificado em algo similar para fugir desta incidência, o que irá gerar uma concorrência desleal", comenta.
"É crucial distinguir entre seletividade e extrafiscalidade na aplicação da tributação seletiva", afirma Eduardo Natal. Para ele, no contexto da extrafiscalidade, com sua característica indutora de consumo, não podemos confundir alíquotas diferenciadas entre produtos que não sejam listados como prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, pois esses são os valores que precisam ser preservados. Uma justificativa clara é necessária para a tributação mais elevada sobre alguns produtos.
Vitor Santos, CEO da Revizia, startup especializada em auditoria e compliance fiscal, diz que, além das questões já mencionadas, há desafios significativos a serem enfrentados, tais como garantir a equidade na tributação, compreender os impactos econômicos e lidar com a evasão fiscal. O processo de determinar quais produtos serão tributados e qual será a taxa aplicada representa um quebra-cabeça, alimentando debates acalorados sobre os critérios adotados e a justiça tributária.
"A Emenda Constitucional disciplina que caberá a Lei Complementar definir quais bens serão tributados pelo IS. O primeiro desafio será ainda no âmbito legislativo, por meio das entidades representantes dos setores impactados demonstrarem em que medida os produtos em questão impactam ou não a saúde e o meio ambiente", explica.
Consequências do IS
Quanto às implicações arrecadação em curto prazo, além da possibilidade de serem encontradas brechas na lei com o intuito de para a arrecadação fiscal do governo, o consultor tributário Francisco Arrighi espera uma redução no consumo dos produtos taxados, o que pode resultar em uma diminuição inicial na arrecadação de impostos indiretos sobre esses produtos. No entanto, a intenção é que a arrecadação seja compensada pelo aumento da taxa do Imposto Seletivo.
Além disso, espera-se que a fiscalização mais rigorosa contribua para combater a sonegação fiscal. No entanto, há riscos de que a implementação do imposto seletivo enfrente dificuldades, atrasando sua efetivação e reduzindo a arrecadação em curto prazo. "É bem provável que haja uma grande dificuldade na implementação, atrasando a efetivação e reduzindo a fugir do referido imposto", diz.
A implementação do imposto seletivo é analisada por Aldo Gonçalves, presidente do Clube de Diretores Lojistas do Rio de Janeiro (CDLRio) e do Sindicato dos Lojistas do Comércio do Município do Rio de Janeiro (SindilojasRio), com cautela e atenção aos seus potenciais impactos. Para ele, essa medida trará consequências tanto para os comerciantes quanto para os consumidores. “Ao mesmo tempo que inova e moderniza, haverá implicações no mercado. O consumo poderá ficar mais restrito, enquanto os gastos com saúde e o impacto ambiental podem ser mitigados", diz.
Como vai funcionar
O imposto seletivo entrará em vigor em 2027, após a aprovação da reforma tributária pelo Congresso. Esta reforma agora requer a avaliação e definição das regras específicas do imposto seletivo por meio de um projeto de lei complementar. Ainda não é possível determinar com certeza o impacto do imposto seletivo no bolso do consumidor.
Com a mudança de todo o sistema de tributação, é possível que os produtos mantenham preços semelhantes mesmo após a implementação do IS, pois já existe uma tributação mais alta para produtos menos essenciais e mais baixa para os mais necessários.
Sobre a receptividade da proposta no Congresso Nacional, o Ministério da Fazenda afirma que ainda é cedo para uma avaliação concreta. O rito de tramitação do PLP 68 ainda não foi definido, e, portanto, a discussão não teve início. A expectativa é de que o projeto seja bem recebido, pois lista de forma objetiva os produtos a serem tributados, conferindo segurança jurídica aos contribuintes. Além disso, delega para lei ordinária a fixação das alíquotas.
"A seletividade tributária já era uma realidade da tributação no Brasil, até então exercida de forma mais contundente pelo Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Com a reforma tributária, esse encargo passará a ser do Imposto Seletivo — também chamado de "imposto do pecado" —, que pretende onerar produtos que são considerados danosos à saúde e ao meio ambiente, e cuja implementação poderá acontecer já a partir de 2027", explica Vitor Santos, CEO da Revizia.
"O imposto seletivo já é uma realidade em vários países do mundo, e como dito, também não será uma novidade para o Brasil", afirma Santos. Organismos internacionais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Organização Mundial de Saúde (OMS) e Fundo Monetário Internacional (FMI) possuem recomendações acerca da aplicação da seletividade de impostos baseados em pesquisas científicas e análises empíricas para fins de condução de políticas públicas de desestimular o consumo de produtos, como é o caso de bebidas alcoólicas e cigarros.
"Apesar da necessidade de uma tributação diferenciada para produtos prejudiciais à saúde, surgem preocupações, especialmente de natureza social, visando evitar o agravamento da situação devido ao aumento dos preços. No que diz respeito ao álcool, por exemplo, há a possibilidade de os consumidores migrarem para alternativas semelhantes e mais baratas, porém potencialmente mais danosas à saúde. No caso dos alimentos ultraprocessados, há receios de que os preços mais altos afetem desproporcionalmente as camadas mais vulneráveis da população", explica Santos.
Preocupações do Fórum Nacional contra a Pirataria e a Ilegalidade
Desde o início das discussões em torno da proposta de reforma tributária, o presidente do Fórum Nacional contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNPC), Edson Vismona, expressa sua preocupação com o eventual aumento de impostos que essa reforma possa acarretar nos produtos legais."Se o produto legal for mais tributado, aumentando ainda mais os tributos incidentes sobre os produtos que respeitam a lei, nós vamos estar beneficiando imediatamente o produto ilegal, porque o ilegal não paga nada de imposto", destaca. Vismona ressalta que qualquer aumento da carga tributária favorecerá a competitividade dos produtos ilegais, que não contribuem com impostos. Assim, há uma preocupação específica em relação ao imposto seletivo e seus possíveis impactos.
"A nossa preocupação, especificamente com relação ao imposto seletivo, é ampliar ainda mais a competitividade do produto ilegal, que não paga nada de imposto", destaca. Ele também levanta preocupações sobre a proposta de indexação dos tributos via IPCA, argumentando que isso pode trazer implicações negativas adicionais.
* Reportagem da estagiária Júlia Sofia, sob supervisão de Marlucio Luna
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