O Brasil é um dos países mais conectados do mundo. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 92,5% dos domicílios, cerca de 72,5 milhões de lares, tinham acesso à internet em 2023. Contudo a conectividade pode trazer riscos aos usuários, além de trazer novos desafios para a Constituição, que não consegue acompanhar os avanços da tecnologia com a mesma velocidade.
Somente em 2023, foram registrados cerca de 1,8 milhão de casos de fraudes digitais, gerando perdas de R$ 6 bilhões, segundo um estudo do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e a Kaspersky. Em resposta a esse cenário, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD) criou no ano passado uma Comissão de Juristas para revisar o Código Civil. Em abril de 2024, foi entregue a proposta de um novo texto, que inclui pela primeira vez um livro específico para o Direito Digital. O documento aguarda aprovação no Senado e, se aceito, seguirá para a Câmara dos Deputados.
Entre os pontos centrais da reforma, destaca-se a proteção de direitos no ambiente virtual. Ele aborda questões como a garantia de remoção de links em mecanismos de buscas que contenham conteúdos sensíveis, como imagens íntimas, pornografia falsa e material envolvendo crianças e adolescentes.
A advogada Ana Paula Siqueira, membro da Comissão de Direito Digital e Compliance e da Coordenadoria dos Crimes contra Inocência da OAB/SP, acredita que a legislação vai desestimular os criminosos.
"Quando as plataformas se tornam mais proativas na identificação e remoção de conteúdos abusivos, isso desestimula os agressores e cria um ambiente menos permissivo para o bullying on-line. Além disso, impõe um nível de vigilância e controle que pode inibir a proliferação de comportamentos tóxicos", explicou.
A jurista também destacou a importância do controle das plataformas sobre o que os usuários postam.
"Outro ponto crucial é a transparência exigida das plataformas na moderação de conteúdo, o que garante que os usuários saibam exatamente quais são os limites e as consequências de suas ações no ambiente digital", explica.
A advogada aposta em um espaço mais ético: "Ao criar um ambiente mais seguro, as plataformas não apenas protegem os usuários, mas também cumprem um papel fundamental na promoção de um uso responsável e ético da internet, ajudando a reduzir a incidência de bullying e assédio on-line."
Outro ponto em destaque da legislação é a responsabilização das plataformas digitais pelo vazamento de dados e a exigência de implementação de mecanismos de verificação da idade dos usuários. O novo Código Civil também propõe regulamentar o uso de assinaturas eletrônicas e reconhecer a identidade digital como meio oficial de identificação.
Redes sociais como patrimônio
Segundo levantamento da agência de marketing digital Global AD, o país tinha cerca de 144 milhões de contas ativas em redes sociais no início de 2024, um aumento de 2 milhões de usuários em relação ao ano anterior. Isso equivale a 66,3% da população total, com 78% dos adultos utilizando alguma forma de mídia social. O Facebook, por exemplo, contava com 111,3 milhões de usuários brasileiros.
Esses perfis nas redes, muitas das vezes, passam a ser um negócio lucrativo tanto para pessoas, quanto para empresas. De acordo com o novo Código Civil, os usuários passarão a ter autonomia sobre as contas nas mídias sociais.
O texto apresentado define o conceito de patrimônio digital, abrangendo perfis e senhas de redes sociais, criptomoedas, contas de jogos, fotos, vídeos, textos e milhas aéreas. Esses bens poderão ser herdados e descritos em testamentos, e os sucessores legais terão o direito de solicitar a exclusão ou conversão em memorial dos perfis de redes sociais de pessoas falecidas.
A influenciadora digital Thayane Almeida, 30 anos, tem 143 mil seguidores e trabalha há 10 anos com mídias sociais. Ela vê com "bons olhos" o texto do novo Código Civil. Para Thayane, a atualização na legislação é um "passo importante" para garantir a continuidade do trabalho que muitos criadores de conteúdo constroem ao longo de suas carreiras nas plataformas digitais.
Thayane explica que o reconhecimento legal do patrimônio digital reflete a evolução da sociedade e do mercado. "Meu trabalho nas redes sociais vai além de simplesmente compartilhar dicas e conteúdo; é também uma das fontes de renda da minha família. Isso não só garante que o esforço que eu coloco diariamente em construir minha marca e comunidade possa continuar sendo aproveitado, mas também oferece uma segurança financeira para os meus três filhos no futuro", afirmou.
Além disso, a influenciadora vê o novo código como uma forma de reconhecer o valor do trabalho digital e abrir "um espaço relevante na sociedade". "Esse conceito irá nos ajudar a criar um legado. O fato de que meus perfis possam ser mantidos ou convertidos em memoriais também traz um significado emocional, já que todo o esforço e a conexão com minha audiência poderão continuar", ressalta.
Inteligência artificial
Um dos temas mais discutido em todo o mundo na atualidade, a inteligência artificial, também passa a ter regras de utilização. A proposta exige a identificação clara do uso da ferramenta, bem como autorização para a criação de imagens de pessoas vivas ou falecidas por meio dessa tecnologia.
O advogado Filipe Rodrigues considera a inclusão do Direito Digital no novo Código Civil essencial para resguardar direitos fundamentais no ambiente virtual. Segundo o jurista, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a Lei Carolina Dieckmann foram eficazes, mas destaca que "a regulamentação dos desafios atuais em relação à tecnologia é impossível, pelo simples fato de que nunca os dois entes estarão na mesma posição de desenvolvimento".
"Devemos sempre lembrar que a lei é algo reativo. Afinal, nunca uma legislação de caráter sério e que tenha por ventura delimitar questões relevantes para a sociedade criará um arcabouço de algo que não surgiu ou foi criado. Nesse ponto, portanto, devemos analisar o princípio da 'tecnologia' e da 'lei'; uma possui um movimento incessante e, de certa forma, imprevisível, enquanto a outra é pautada pela cadência e diálogos complexos", adverte
Em relação à responsabilização civil das plataformas digitais, Filipe sugere que isso pode levar as empresas a reforçar suas políticas de proteção de dados e compliance. No entanto, alerta para possíveis efeitos colaterais, como restrições adicionais impostas pelas plataformas e o aumento dos custos operacionais.
"É possível que a segurança cibernética dos sistemas dessas empresas sejam mais desenvolvidos e estruturados para evitar as complicações apresentadas, sendo necessário, portanto, um aumento de investimento nesse setor", destaca.
Rodrigues aponta como principal desafio a identificação dos responsáveis por crimes como deepfakes ou manipulação de dados.
"Criminosos não usam de seus dados pessoais, como fotos e nomes, tentando ao máximo esconder sua atuação. É necessário descobrir se o responsável por tal ação foi o indivíduo que programou a IA ou o mero usuário. Para garantir um melhor detalhamento, deveria se buscar entender os diferentes tipos de IA e seu uso, além disso é necessário compreender que tais tecnologias se desenvolvem muito rápido, então é preciso a criação constante de novas estruturas normativas que abarquem cada uma dessas criações", adverte.
Responsabilidade das instituições
Procuradas, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) não comentaram sobre o texto do novo Código Civil.
A Polícia Civil do Rio de Janeiro afirmou, em nota que "conforme sua atribuição de polícia judiciária, a Polícia Civil investiga todos os crimes registrados, a fim de identificar e responsabilizar criminalmente todos os envolvidos'.
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