Ministério da FazendaMarcelo Camargo / Agência Brasil

Municípios, Estados e o próprio governo federal poderão ser proibidos de conceder ou ampliar benefícios tributários se, ao fim de cada ano, não tiverem recursos suficientes no caixa para honrar com os chamados restos a pagar (RAP). O endurecimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) pode impactar cerca de 300 cidades que, atualmente, não respeitam esse equilíbrio. A mudança, patrocinada pelo Ministério da Fazenda, foi aprovada pelo Senado no projeto de lei que trata da renegociação de dívidas dos Estados. Se for chancelada dessa forma pela Câmara, a nova regra começaria a valer a partir de 2027.
De acordo com dados do Tesouro Nacional, em 2023, 307 municípios apresentaram insuficiência em caixa para arcar com os RAP processados (despesas empenhadas e liquidadas que não foram pagas no exercício) e 77 com os não processados (gastos empenhados não liquidados). O volume de entes atingidos pela medida pode ser ainda maior, segundo especialistas, já que o projeto de lei determina a necessidade de haver recursos também para "as demais obrigações financeiras".
A insuficiência de caixa no poder público revela que uma administração tem gastos previstos sem ter, contudo, lastro financeiro para arcar com as despesas. Quando atinge uma situação séria de déficit, a máquina começa a entrar em colapso, com o atraso de pagamentos e do 13º salário de servidores, chegando a afetar até remunerações mensais e fornecedores, em casos mais graves.
Para tentar evitar tal situação, a proposta inserida no PL da dívida dos estados enrijece uma regra que, atualmente, só funciona para o último ano de mandato de chefes de Executivos. A LRF veda que, nos últimos oito meses do mandato, o prefeito ou o governador, por exemplo, contraia uma obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente ainda naquele ano, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para isso. Com o novo texto proposto, esse cuidado deverá ser anual.
"A partir de 1º de janeiro de 2027, se verificado, ao final de um exercício, que a disponibilidade de caixa não é suficiente para honrar os compromissos com Restos a Pagar processados e não processados inscritos e com as demais obrigações financeiras, aplica-se imediatamente ao respectivo poder ou órgão, até a próxima apuração anual, a vedação à concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária", diz o texto chancelado pelos senadores.
Além disso, o PL prevê que, se o caixa insuficiente perdurar, por dois anos, a lista de restrições aumentará. A prefeitura, o estado ou a União não poderão conceder aumento a servidores, criar cargos e alterar uma estrutura de carreira que implique em alta de despesa.
Ao Broadcast, do Grupo Estado, o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, afirmou que a proposta foi uma "batalha" encampada pelo órgão para evitar que o problema financeiro dos entes gere um "colapso" na prestação de serviços públicos. Por isso, para ele, a mudança vai além de uma melhora fiscal. Ele explicou que, nas situações em que o saldo de caixa bruto é inferior ao volume de restos a pagar processados, a administração pública pode estar à beira do colapso.
"Chega num cenário que implode. E isso infelizmente ainda acontece", disse Ceron. Ele ainda observou que a regra só começará a valer em 2027 para que os entes possam se preparar. Segundo o secretário, houve uma "compreensão" do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sobre o tema, além de uma concordância dos Estados. "Foi um avanço importante", disse.
Um levantamento feito pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) a pedido do Broadcast mostra que, de 1888 municípios com dados divulgados do primeiro semestre, 26 apresentaram disponibilidade de caixa insuficiente para arcar com a despesa dos restos a pagar. O estado com mais municípios nessa situação é Minas Gerais, que totaliza oito prefeituras, seguido do Maranhão, com cinco.
Com problemas financeiros há alguns anos, o governo estadual mineiro também tem dificuldades em manter as contas equilibradas. De acordo com o Relatório de Gestão Fiscal do Estado, em 2019, quando a situação era mais crítica, a disponibilidade de caixa líquida chegou a ficar deficitária em R$ 21,4 bilhões. Em 2023, o rombo ficou em R$ 5,1 bilhões. Entre as cinco maiores economias estaduais, o Rio Grande do Sul repete a condição, com a disponibilidade de caixa líquida negativa em R$ 836 milhões no ano passado. O Estado gaúcho já está em Regime de Recuperação Fiscal (RRF), enquanto Minas está em processo de adesão.
Para o consultor de Orçamento e Fiscalização da Câmara, Ricardo Volpe, o endurecimento da regra, ao incentivar o equilíbrio anual para o caixa, é importante para tornar a previsão que já existe na LRF mais factível. "É uma medida importante. É mais factível do que exigir que esse equilíbrio aconteça só no último ano de mandato", afirmou.
O descontrole sobre restos a pagar também tem outras implicações Além de empurrar débitos para os próximos exercícios sem que necessariamente haja disponibilidade financeira, o volume crescente de RAPs é uma forma de gestores "rolarem" dívidas e melhorarem artificialmente o resultado primário do ano, já que somente os gastos pagos são computados nesse indicador. "Os RAPs crescentes podem ser uma forma de empurrar despesas para frente, ajudando a melhorar o resultado primário", apontou um técnico do Tribunal de Contas da União (TCU) reservadamente à reportagem.