Uma crise silenciosa afeta milhares de trabalhadores no Brasil. Em 2024, mais de 472 mil benefícios por incapacidade temporária foram concedidos a profissionais com transtornos mentais, segundo o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Para responsabilizar as empresas, a NR-1, que estabelece as diretrizes de saúde no ambiente de trabalho, será atualizada em maio, passando a incluir obrigatoriamente os riscos psicossociais.
O aumento reflete a intensa sobrecarga de trabalho e as crescentes pressões sofridas pelos profissionais. O crescimento expressivo no número de afastamentos por transtornos mentais em 2024 representa um salto de aproximadamente 66% em relação a 2023 – quando foram concedidos 283.471 benefícios por incapacidade temporária – e mais que o dobro do registrado em 2022, com 201.864 casos.
Concessão de benefícios por incapacidade temporária referente transtornos mentais e comportamentaisArte
No último ano, segundo o INSS, os transtornos mentais e comportamentais que mais geraram benefícios por afastamento foram "outros transtornos ansiosos" (141 mil casos), "episódios depressivos" (113 mil), "transtorno depressivo recorrente" (52 mil), "transtorno afetivo bipolar" (51 mil) e "transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de múltiplas drogas e outras substâncias psicoativas" (21 mil).
Transtornos Mentais e Comportamentais que mais geraram a concessão de benefícios por incapacidade temporária em 2024Arte
O número real de trabalhadores afetados por problemas de saúde mental pode ser ainda maior, já que muitos não solicitam o benefício e acabam deixando seus empregos. Esse foi o caso da enfermeira Raissa Mattos, de 26 anos, que desenvolveu um quadro de burnout e transtorno bipolar enquanto trabalhava em dois empregos simultaneamente.
Enfermeira Raissa Mattos, de 26 anosArquivo pessoal
"O hospital que eu trabalhei era uma empresa muito ruim, que não dá suporte nenhum para a saúde mental. Eles não procuraram saber o motivo da minha demissão, nem nada", afirma. "Eu recorri à Justiça para tentar voltar a trabalhar ou para receber meu dinheiro, porque eles se recusaram a me pagar. Queria um dos dois", pontua Raissa.
"O processo durou quase um anjo inteiro e eles não aceitaram. Eles alegaram que eu me internei numa clínica psiquiátrica só para dar uma desculpa para o fato de eu ter pedido demissão 'de cabeça quente'." Desde 2022, o burnout é tratado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doença ocupacional na Classificação Internacional de Doenças (CID). Já no Brasil, o código entrou em vigor a partir de 1º de janeiro de 2025.
De acordo com Maria Eduarda Monteiro, psicóloga da LeadPsi, empresa especializada em psicologia organizacional, múltiplos fatores contribuem para o aumento dos afastamentos, com destaque para a pressão constante por resultados, a sobrecarga de trabalho e a cultura do "estar sempre disponível".
Maria Eduarda Monteiro, psicóloga da LeadPsi, empresa da Holding SMArquivo pessoal
"Fatores como o excesso de demandas, a falta de reconhecimento, a ausência de segurança psicológica e o assédio moral, além de um ambiente tóxico, com pouca ou nenhuma comunicação eficaz, geram um alto nível de estresse, que pode desencadear distúrbios mentais", explica a especialista.
Maria Eduarda também destaca a necessidade de abordar o tema com a devida seriedade.
"É muito comum que fatores de risco que podem colaborar para o adoecimento mental sejam tratados como algo que ‘faz parte’, o que faz com que os trabalhadores, muitas vezes, normalizem alguns sinais e só peçam ajuda quando o quadro se agrava", observa a especialista.
Atualização da NR-1
A partir de maio de 2025, as empresas brasileiras deverão se adequar às novas diretrizes da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), que passará a incluir medidas específicas para prevenção de riscos psicossociais no ambiente de trabalho. Oficializada pela Portaria MTE nº 1.419/24, a atualização equipara a saúde mental dos trabalhadores a outros fatores ocupacionais no Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR).
A NR-1 estabelece as regras gerais de segurança e saúde no trabalho no Brasil, definindo as obrigações de empregadores e funcionários. A norma também orienta a adoção de medidas para prevenir acidentes e doenças ocupacionais. Com a atualização, ela amplia seu alcance, reforçando a proteção ao trabalhador e exigindo que as empresas adotem uma gestão mais completa dos riscos laborais.
A executiva de Recursos Humanos (RH) Gilmara Lopes salienta que a mudança representa um avanço.
Gilmara Lopes, executiva de RHArquivo pessoal
"Até aqui, as exigências das normas de segurança no trabalho estavam muito voltadas aos riscos físicos e ambientais. Ou seja, o foco era proteger o corpo — da máquina, do ruído, da postura, do calor. Agora, a grande mudança é que os riscos que afetam a saúde emocional também passam a ser reconhecidos como riscos ocupacionais", afirma.
"É uma mudança que representa um avanço. Não é mais aceitável cuidar apenas do corpo e ignorar a mente. E mais do que atender à norma, essa mudança nos convida a amadurecer a forma como cuidamos das pessoas nas organizações."
Como pedir afastamento INSS
Quando o funcionário precisa se afastar por questões de saúde mental, tem direito ao benefício por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença) junto ao INSS. Para isso, ele precisa comprovar, por perícia média, a impossibilidade de trabalhar por mais de 15 dias consecutivos.
Conforme explica Alberto Cardoso Macedo, advogado trabalhista do escritório Böing Vieites Advogados, é obrigação do empregado comunicar formalmente ao empregador sobre a necessidade de afastamento.
Alberto Cardoso Macedo, advogado trabalhista do Böing Vieites Gleich Mizrahi Rei advogadosArquivo pessoal
"É necessário apresentar o atestado médico que comprove sua incapacidade, seguir as orientações médicas para tratamento e recuperação, comparecer às perícias médicas marcadas pelo INSS durante o afastamento e informar ao empregador, caso o INSS ateste sua recuperação e possibilidade de retorno ao trabalho", diz.
Para requerer o benefício, é preciso apresentar documentação médica completa, incluindo laudos, exames e relatórios, que comprovem o diagnóstico e demonstrem a impossibilidade de trabalhar por um período superior a 15 dias consecutivos.
A solicitação pode ser feita no site do INSS, no aplicativo "Meu INSS", ou pelo telefone 135.
"Quando designada a perícia, o empregado deve apresentar ao médico perito todos os documentos médicos e pessoais no dia marcado. Após a perícia, o INSS dirá se o benefício foi aprovado e por quanto tempo", comenta o advogado.
Quando o pedido de benefício é negado, o trabalhador tem alternativas para recorrer da decisão, explica Alberto Cardoso. As opções incluem pedir reconsideração por meio de nova avaliação ao INSS, com apresentação de documentação médica adicional; fazer um recurso administrativo; ou ingressar com ação judicial, se as alternativas anteriores não funcionarem.
A executiva de RH Gilmara Lopes destaca que os pedidos de afastamento por saúde mental são frequentemente negados devido a três fatores principais: falta de registros adequados, laudos inconsistentes e ausência de um histórico de acompanhamento interno.
Como identificar problemas de saúde mental
Ao contrário de doenças físicas, os problemas de saúde mental não costumam ser facilmente identificáveis. Por isso, a psicóloga Maria Eduarda alerta para a importância de observar os sinais que o corpo pode apresentar.
"Sensação constante de exaustão, irritabilidade excessiva, dificuldade de concentração, perda de interesse pelas atividades do dia a dia e mudanças no apetite ou no sono podem ser sinais", aponta. "Muitas vezes, as pessoas começam a se isolar socialmente ou a se sentir desmotivadas, o que também pode ser um indicativo de que algo não está bem. A busca por apoio psicológico é essencial quando esses sinais começam a se tornar recorrentes".
Gilmara também ressalta que as empresas devem fazer parte desse processo.
"É necessário construir uma estrutura de cuidado contínuo e próxima, o que envolve capacitar as lideranças para reconhecer sinais, criar uma rede de apoio emocional acessível, promover espaços de escuta e, acima de tudo, entender a realidade dos colaboradores", afirma.
Mas, segundo ela, um ponto costuma ser negligenciado: a gestão ativa do plano de saúde.
"É possível analisar os índices de utilização, os motivos mais frequentes dos atendimentos e os padrões de afastamento. Esses dados revelam os principais pontos de atenção, permitindo ações mais assertivas", salienta. "Em vez de iniciativas soltas, o ideal é criar programas integrados, que dialoguem com os dados, com a escuta e com os comportamentos observados internamente. Assim, a prevenção se torna real, e não apenas desejada."
Como as empresas podem apoiar a saúde mental
Raissa conta que não recebeu o apoio necessário quando enfrentou seu quadro de burnout e transtorno bipolar.
"Eu acho que os programas precisam de um bom gestor. No caso da enfermagem, ele conhece os seus funcionários, sabe quando um funcionário está bem ou mal. Nessa empresa que eu trabalhava, o gestor era horrível. Ele gostava de trabalhar gerando medo nos funcionários. O medo não pode ser base para nenhum tipo de gestão", destaca.
"Em um outro trabalho que tive, a gestora me conhecia, então sabia quando eu estava bem ou mal. E isso é muito bom, porque você sabe se o seu funcionário está entrando em um processo de burnout, por exemplo."
A enfermeira ressalta que, diante desse cenário, os empregadores devem tomar providências. "A empresa também precisa dar um suporte psicológico-psiquiátrico gratuito. Toda empresa deveria ter. Se eles tivessem me oferecido um plano de saúde, com disposição para psiquiatra e psicólogo, eu não teria entrado no quadro grave de precisar ficar internada numa clínica de psiquiatria".
Segundo Márcio Ayer, diretor da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), a situação é ainda mais complexa. Ele explica que a contratação de psicólogos, por si só, não garante um ambiente de trabalho saudável.
"Contratar psicólogos virou cortina de fumaça. Esses profissionais, em vez de protegerem os trabalhadores, servem apenas para blindar a empresa, pois quem ousa apontar o ambiente tóxico como causa é sumariamente demitido. Isso não é saúde mental, é lavagem corporativa", diz. "Enquanto as metas impossíveis gerarem crises de pânico, o assédio for tratado como 'motivação' e as jornadas exaustivas forem 'normalizadas', o selo de 'parceira da saúde mental' será só mais um certificado de hipocrisia".
Apesar de ainda tímidas, já existem iniciativas voltadas à saúde mental dos trabalhadores. A especialista em RH Gilmara Lopes destaca que algumas empresas já implementam essas medidas. São elas:
- Promoção de uma cultura de cuidado, com diálogo aberto sobre o tema;
- Implantação de programas estruturados de saúde emocional;
- Atendimento psicológico online e ações de bem-estar no dia a dia;
- Flexibilização de jornada e incentivo ao autocuidado;
- Treinamento de lideranças para atuar de forma preventiva e humana.
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