Lucas, Bruna, Tunico e Cherie são uma família da Zona Norte do RioArquivo Pessoal
De acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet) e do Instituto Pet Brasil, o Brasil alcançou a marca de 164,6 milhões de animais de estimação em 2024, o que representa um crescimento de 2,36% em relação a 2023.
Todas as espécies monitoradas apresentaram aumento populacional — com destaque para os gatos, cuja população subiu de 30,8 para 32,2 milhões, crescimento de 4,5%, praticamente o dobro da média global. O grupo dos cães é o mais popular, 62,2 milhões. Já o conjunto de aves ornamentais soma 42,8 milhões.

Segundo Jéssica Faciroli, economista da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), "é possível traçar uma correlação contextual entre esses dois fenômenos [alto custo para se criar um filho e o aumento na adoção de pets]".
Ela citou um estudo acadêmico de 2021 para apontar que "muitas pessoas têm adiado ou mesmo desistido de ter filhos e optado por outras formas de construção afetiva familiar". "Os animais de estimação passaram a ocupar um espaço emocional antes reservado exclusivamente aos filhos, formando o que chamam de 'família multiespécie'", explica.
"Casais sem filhos muitas vezes cuidam dos pets como membros da família, e há evidências de que esse movimento está relacionado à busca por companhia, afeto e responsabilidade afetiva com menos exigências econômicas e institucionais do que a criação de filhos", completa.
Faciroli também ressaltou que o foco das mulheres em suas carreiras contribui para o adiamento da maternidade. A explicação é endossada pela Abinpet, que reforça que "o comportamento do consumidor aponta que muitos casais jovens têm encontrado nos pets uma forma de afeto, companhia e rotina familiar, enquanto aguardam uma estabilidade financeira maior".
Alto custo para a criação
Criar um filho pode ser desafiador em diversos aspectos. Economicamente, trata-se de uma responsabilidade com despesas diversas por, pelo menos, 18 anos.
Segundo Faciroli, "o custo de criar um filho é elevado no Brasil por muitas razões". "Ele inclui desde despesas básicas como alimentação, vestuário e saúde, até gastos de longo prazo como educação, lazer e apoio emocional", lembra.
"Mesmo entre as famílias mais pobres, há comprometimento com mensalidades escolares privadas, dado o déficit na oferta e na qualidade da educação pública. Além disso, estudos apontam que essas despesas podem comprometer mais de 20% da renda familiar", acrescenta.
Um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) aponta que para suprir com dignidade as demandas de um cidadão brasileiro, o salário mínimo ideal seria de R$ 7.528,56, cerca de cinco vezes superior aos atuais R$ 1.518.
Mercado pet em alta
A estudante de veterinária Yasmim Piffer, de 27 anos, que estagia há 3 anos em clínicas, nota este comportamento e em mais de uma faixa etária: "É visível a tendência em substituir crianças por animais, até mesmo na forma de tratar os bichos. Não vejo esse comportamento só em jovens, atendi muitos idosos que, depois que os filhos foram embora, compraram cachorro para se ocupar".
Ela diz ainda que "nota-se nas clínicas um aumento do número de clientes e até mesmo da quantidade de pets, além da busca por planos de saúde".

Já veterinária Juliana Lopes, de 28 anos, garante que "nosso mercado tem crescido de forma muito rápida". Ela, que faz atendimento clínico, dermatológico e nutricional de cães e gatos, aponta que questões comportamentais dos jovens também contribuem para a escolha de um "filho" pet.
"A vida hoje é muito corrida e dinâmica. Os jovens querem viajar e, ao mesmo tempo, trabalham muito, logo ficam preocupados de terem filhos e não atenderem às expectativas", avalia.
Apesar disso, Juliana lembrou que animais também requerem muito cuidado e responsabilidade seus tutores.
"Um animal bem cuidado custa caro, desde a castração a medicações de usos mensais. Então, se você quer dar qualidade de vida e longevidade, o principal é buscar por isso. E ler muito sobre a espécie que deseja para não ter surpresas", adverte.

Empresário aproveita a oportunidade
Com o mercado em alta, investir em petshops pode ser um bom negócio. O empresário Gustavo Stutzel, de 50 anos, apostou no ramo. Ele, que é morador do Recreio, listou as vantagens desta área.

Famílias multiespécie
E quem são essas as famílias multiespécie? O DIA conversou com casais que moram juntos e têm um ou mais filhos. Mas não são os filhos humanos tão projetados no ideário popular de um lar. São os filhos pet, que junto dos pais, constituem as famílias multiespécie.
Lucas Galvão, administrador de 26 anos, mora com sua namorada Bruna Viveiros, psicóloga de 27 anos. Na casa deles, em Piedade, Zona Norte do Rio, vivem Tunico, um lulu da pomerânia, e Cherie, uma yorkshire. Ele, que sonha em ter filhos, disse que ter esses bichinhos "ajuda um pouco a preencher esta lacuna, mas por mais que eu considere eles como filhos, uma criança vai ter demandas completamente diferentes".
Galvão diz que "recomendaria a casais de amigos que adotassem um pet, mas depois de um tempo morando juntos, pois é uma responsabilidade grande e que cria um vínculo muito forte".
Já Vitória Vieites, de 27 anos, que atua como recepcionista, acredita que "ter filho é muito caro; um pet é uma ótima solução nesses casos de uma pessoa que quer ter filho e não pode por alguns motivos".
Vitória mora no Engenho de Dentro, Zona Norte, com o auxiliar administrativo Pedro Xavier, de 29 anos, e com a american bully Margot. Ela diz que recomendaria que casais adotassem, mas que "depende do perfil da pessoa". "Não recomendaria para quem passa muito tempo fora de casa. O pet demanda atenção como um filho pequeno, mas em menor escala", explica.
No fim, ela pede responsabilidade com os animais e lembra que "eles não são brinquedos".

Psicóloga dá sinal verde, mas faz alerta
A psicóloga perinatal Nicole Massadas destaca os possíveis impactos da relação de tutores com seus pets. A profissional ressalta que há diferentes razões para as pessoas se denominarem "pais de pet":
"Para algumas pessoas, pode sim representar uma forma simbólica de se aproximar de um desejo de maternidade ou paternidade que, por diferentes motivos, ainda não pôde ser realizado. Para outras, pode ser apenas uma expressão afetiva, uma forma popularizada de nomear a relação".
"Quanto à saudabilidade ou não de um comportamento, não é possível afirmar sem olhar antes para o contexto em que ele ocorre: há sofrimento envolvido? Há prejuízo no funcionamento da vida cotidiana? A pessoa tem clareza de que se trata de um animal com necessidades, capacidades e limitações diferentes das humanas? É diferente dizer 'é como um filho' e de fato esperar que o animal ocupe esse lugar".
Ela ressaltou que "em casos mais extremos, a relação pode indicar um afastamento da realidade, o que pode ser potencialmente perigoso, como já vimos em situações parecidas, como no caso das bebês reborn", alerta.
Ela aponta que "esse fenômeno também pode nos ajudar a refletir sobre as pressões sociais que, há tanto tempo, colocam a maternidade como um marco obrigatório para a realização pessoal — como se ser feliz ou completo passasse, necessariamente, por ter filhos".
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