Os protestos que deixaram 48 mortos no Peru desde dezembro evidenciaram a ausência de recursos nos Andes do PeruAFP

Cusco - Descalço e curvado, Ruben Gutiérrez Escobar, um agricultor de 53 anos, mergulha sua enxada na terra escura de seu milharal em Bella Vista, perto de Cusco, sul do Peru, a 3.500 metros de altitude nos Andes. Ele não usa trator nem fertilizantes, "só suor, trabalho e sacrifício".
"Lima se esquece completamente de nós", diz ele.
Os protestos que deixaram 48 mortos no Peru desde dezembro de 2021 também evidenciaram uma enorme distância que existe entre a capital do país, Lima, e os Andes, região de origem da maioria dos manifestantes que exigem a renúncia da presidente Dina Boluarte e novas eleições.
Ruben, que se vê como uma das pessoas esquecidas por Lima, trabalha em uma roça onde planta batata, feijão e milho para consumo próprio e cuida de suas cinco vacas e sete ovelhas.
"Fala-se da importância da mineração, mas onde vai parar tudo isto? Quase toda a renda vai para Lima e em Lima se perde. Aqui a gente não ganha um centavo", desabafou o agricultor, que ganha em torno de US$ 6 por dia, vendendo "entre 5 e 10 litros de leite".
Contrastando com a situação atual denunciada pelos manifestantes, quase toda a riqueza do Peru está nos Andes, das jazidas de ouro, cobre, prata, ou estanho, aos recursos gerados pelo turismo na cidade inca de Machu Picchu.
"Não temos nenhum apoio do Estado", lamenta Ruben, que afirma nunca ter recebido ajuda, ou orientação de um agrônomo, ou serviço veterinário para seus animais, apesar de ter solicitado. Ele parou de usar fertilizantes não subsidiados desde que a guerra na Ucrânia multiplicou os preços por seis.
"As pessoas aqui se perguntam: como é possível que nós, donos do gás, não tenhamos gás? Que a mineração sendo de todos e tendo os famosos cânions mineiros, não tenhamos boas escolas nem bons hospitais?", questiona o antropólogo Julio Edmundo Oliveira, da Universidade de Cusco.
"A pandemia (da covid-19) de dois anos atrás expôs todas essas coisas", sustenta.
Oliveira denuncia o descaso como um "problema estrutural" do Estado com uma região, onde "as pessoas têm chumbo nos pulmões, mas não há hospitais, colégios, ou boas universidades (...) Nunca se investiu nos Andes, quando, na verdade, os Andes sustentam o capital", acrescenta.
A presidente e o Congresso enfrentam forte oposição, sobretudo, na região andina, onde a onda de protestos e bloqueios gerou escassez e revolta.
"Boluarte tem um preconceito na cabeça. Acredita que a maioria das pessoas é ignorante, principalmente as da serra. Tem um país chamado Lima e outro que é o Peru", critica Ruben Mina, um taxista que mora no bairro de Angostura, em Cusco.
Regularmente chamados de "terroristas" pelo governo e pela elite da capital, os manifestantes dessa região têm protestado em favor da valorização de suas raízes indígenas, entoando cantos como "temos sangue inca, não somos terroristas!".
"Há um desprezo por parte de Lima. Há um centralismo tão forte quanto na época colonial. Querem que acreditemos que Lima é o Peru, mas é só uma parte do Peru, assim como Cusco, Madre Dios (sudeste)", diz Javier Cusimayta Osca, um professor que participa dos protestos, antes de entoar os cantos na língua quéchua "Uma Força! Um Coração! Um punho!", reforçando a unidade dos manifestantes.