Trégua humanitária de 24h não foi concretizada poucos minutos antes do horário previsto para o inícioAFP

Milhares de pessoas tentavam fugir da capital do Sudão, cenário nesta quarta-feira, 19, de novos combates entre o exército e os paramilitares, que já provocaram quase 200 mortes.

Durante a manhã, após o fracasso da trégua de 24h e no quinto dia de combates, foram ouvidas fortes explosões e tiroteios intensos. Colunas de fumaça eram observadas nas proximidades do quartel-general do exército no centro da cidade.

A violência explodiu no sábado entre as tropas dos dois generais que tomaram o poder em um golpe de Estado de 2021: o comandante do exército, Abdel Fatah al Burhan, e seu então número dois Mohamed Hamdan Daglo, comandante do grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF).

Os dois militares divergem sobre os planos de integração das RSF ao exército oficial, uma condição crucial do acordo final para a retomada da transição democrática no Sudão.

Combatentes das RSF em veículos armados e caminhões com armas pesadas circulavam pelas ruas, enquanto caças do exército sobrevoavam e atiravam contra alvos do grupo paramilitar, segundo testemunhas.

A força aérea e a artilharia dos dois lados bombardearam nove hospitais em Cartum. No total, 39 dos 59 centros médicos das áreas afetadas pelos combates estão fora de operações ou fechados, segundo fontes médicas.
Exército e paramilitares anunciaram um corredor humanitário para retirar os feridos - AFP
Exército e paramilitares anunciaram um corredor humanitário para retirar os feridosAFP


Corpos nas ruas 
Os civis que permanecem em suas casas estão cada vez mais desesperados diante da escassez de alimentos, dos apagões e da falta de água encanada.

A esperança de retirada da cidade acabou na terça-feira, 18, quando uma trégua humanitária de 24h não foi concretizada poucos minutos antes do horário previsto para o início.

Milhares de pessoas começaram a abandonar suas casas na capital sudanesa, de cinco milhões de habitantes, nesta quarta-feira. Algumas estavam em veículos e outras a pé, incluindo mulheres e crianças.

As ruas estavam repletas de cadáveres, com um odor de decomposição cada vez mais intenso, segundo testemunhas.

Muitos governos estrangeiros começaram a planejar a retirada de milhares de expatriados, incluindo funcionários da ONU.

Voluntários e trabalhadores estrangeiros afirmaram que é difícil prosseguir com os trabalhos: três funcionários do Programa Mundial de Alimentos (PAM) morreram em Darfur (oeste) e a ONU denunciou "saques, ataques e violência sexual contra os colaboradores".

Um comboio diplomático dos Estados Unidos foi atingido por tiros na segunda-feira, o embaixador da União Europeia (UE) foi "agredido em sua residência" em Cartum e o diretor belga da missão humanitária da UE foi "hospitalizado" após ser baleado.

Após o colapso da trégua, o exército acusou a "milícia rebelde" de violar o acordo e de prosseguir com "os ataques ao redor do quartel e do aeroporto".

O grupo RSF acusou o exército de "violações" e romper a trégua com "ataques esporádicos" contra suas forças e bases ao redor da capital. Os combates deixaram pelo menos 185 mortos e mais de 1,8 mil feridos, segundo a ONU.

Mas o número real deve ser muito maior porque vários feridos não conseguiram chegar aos hospitais, que também foram bombardeados, de acordo com um sindicato médico.

Transição fora dos trilhos 
As imagens de satélite exibem a dimensão dos danos, visíveis no interior da sede do Estado-Maior do exército, no edifício dos serviços de inteligência ou em um estacionamento de caminhões-tanque, que mostram apenas uma grande mancha preta.

A energia elétrica e o abastecimento de água foram cortados em vários bairros de Cartum, o que obriga os moradores a sair de casa nos momentos em que os combates diminuem para buscar alimentos e outros produtos.

"Nenhuma parte parece estar vencendo no momento e, levando em consideração a intensidade dos combates, as coisas podem piorar antes que os dois generais sentem à de negociações", alerta Clément Deshayes, da Universidade Paris 1.

A espiral de violência acontece depois que mais de 120 civis morreram na repressão contra as manifestações pró-democracia dos últimos 18 meses.

O início dos confrontos no sábado foi o ponto máximo das profundas divergências entre o exército e as RSF, criadas em 2013 pelo ditador deposto Omar al Bashir.

Burhan e Daglo derrubaram Bashir em conjunto em abril de 2019, após os grandes protestos contra as três décadas de ditadura.

Em outubro de 2021, os dois homens lideraram um golpe contra o governo civil instalado após a queda de Bashir, o que acabou com a transição apoiada pela comunidade internacional.

Burhan, um militar de carreira do norte do Sudão, afirmou que o golpe era "necessário" para incluir outras facções na política.

Para Daglo, conhecido como Hemeti, no entanto, o golpe foi um "erro" que não conseguiu gerar mudança e reforçou a presença dos remanescentes do regime de Bashir.