Daniel GuanaesDivulgação

Embora imprecisa, não seria incorreta a afirmação de que o mundo é religioso. Longe de pretender um simplismo generalista, com esta frase me refiro apenas ao fato de que a maior parte dos seres humanos considera algum sistema de crenças em divindades e algum repertório de ritos a serem praticados como elementos indispensáveis para organizar a vida.
Existem muitas e diferentes maneiras pelas quais pensar a experiência religiosa. Uma delas tem a ver com a compreensão da religião como uma forma de regulação dos afetos humanos, tanto na dimensão individual quanto na comunitária. Isto é, os percursos espirituais feitos pelos sujeitos de fé também são modos de organizar e expressar aquilo que sentimos.
Ainda carregamos alguns resquícios de uma herança moderna quando conversamos sobre religião. O Iluminismo pretendeu relegá-la a uma espécie de atividade obsoleta opcional. A circunscrição da experiência religiosa aos limites da razão consolidou o preconceito de que a sua prática é opção dos incultos. A realidade, no entanto, parece desenhar outro cenário.
O prognóstico da falência das crenças não resiste ao recrudescimento das antigas, nem ao surgimento de novas religiões. Isso se deve, em parte, à importância que elas desempenham na regulação dos afetos humanos, sobretudo aqueles que não se processam no campo da racionalização.
Nenhum indivíduo sobrevive apenas com aquilo que processa na consciência, explica com a razão, prova com a ciência e traduz com a linguagem. Também precisamos dar conta da angústia que experimentamos, das perguntas que não respondemos, dos medos que sentimos, dos êxtases que ansiamos, da força que buscamos e de tantos outros elementos fundamentais à nossa constituição como sujeitos.
As experiências religiosas conjugam essas duas dimensões fundamentais à existência humana. De um lado, fomentam ética, propõem valores e formulam arrazoados filosóficos sobre a vida. De outro, possibilitam espaços que dão conta de regular aqueles afetos humanos cuja demanda não está no campo da compreensão. E o que é genial: fazem isso dando igual importância a ambas estas esferas.
É por isso que nos ajuntamentos religiosos, sejam quais forem as suas matizes, é possível encontrar pessoas chorando, se expressando corporalmente embaladas por canções, fazendo orações, ora em tom enérgico e audível, ora sussurrando balbucios. Também é por isso ser comum vê-las reafirmando a crença em milagres que revertam diagnósticos recebidos, testemunhando a esperança de que no futuro estarão com entes que já partiram ou suplicando a proteção de um ser supremo. Nada disso é desencorajado na religião, mas sim sacralizado justamente por ser admitido como demanda humana.
Não é de hoje que a religião cumpre um papel importantíssimo na jornada da humanidade. Talvez o que esteja acontecendo no emergir dessa era chamada pós-moderna seja a compreensão do motivo pelo qual valorizamos tanto o que há alguns séculos nos encorajaram a desprezar. Somos complexos demais para cabermos por inteiro em métodos cartesianos. A despeito de quais sejam, nossas crenças e ritos nos ajudam na árdua tarefa de regular alguns dos nossos afetos e, quem sabe, dar conta da vida.
Daniel Guanaes, PhD em Teologia pela Universidade de Aberdeen, Escócia, pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro, e psicólogo clínico.