O dia amanheceu entristecido. Da janela, não vejo. Uma névoa adia o amanhecer. Ligo o rádio. É inverno. É inverno em qualquer estação.
Levanto com displicência. Cansado de tantas oratórias de morte.
Paro diante do oratório de minha mãe. Vejo os santos. Vejo a imagem de Nossa Senhora e oro.
Paro diante do oratório de minha mãe. Vejo os santos. Vejo a imagem de Nossa Senhora e oro.
Minha mãe era uma mulher de rezas. Para tudo acendia vela. E explicava, detalhe por detalhe, o que ela precisava. E, se o motivo da oração era outra pessoa, a explicação era ainda mais minuciosa. Eu dizia, "Mãe, Deus sabe da história, não precisa dizer tanto". E ela respondia, "É melhor, meu filho, é muita gente pedindo".
Com o tempo, fui entendendo que a oração tem o poder de melhorar o orante. Na oração, o silêncio. No silêncio, o expurgo dos barulhos do mundo.
O rádio diz de um homem, de um homem velho, assaltado por seis no centro de uma grande cidade. O homem velho e pobre irritou os que roubavam dele a paz e foi jogado. Outras pessoas viam. Não viam. Sofri com aquele velho. Pensei no meu pai sendo tratado assim. Pensei nas bagunças das cabeças das pessoas.
O rádio diz da guerra. E das crianças. É inverno no coração de quem comanda. Pensei que poderia ser eu. Eu, criança, morto na guerra. Eu que deixaria de ser, porque alguém impediu. Eu, vida roubada por ladrões de vidas.
Costumo acordar cedo e gosto de ouvir o que acontece. Minha mulher levanta um pouco mais tarde. É cantora. Como gosto de ouvir a voz de minha mulher. Seus cantos de amor. Sua entrega à arte. Estamos juntos há 30 anos. Não tivemos filhos. Essa é uma outra história.
Carmen e eu nos conhecemos em um teatro. Foi ela quem tomou a iniciativa. Ela gosta de contar essa história, das suas palavras e do meu silêncio. Eu a amei, desde sempre, mas não disse. Disse para dentro. Meu pai era assim. A que falava muito em casa era minha mãe. E meu pai olhava apaixonado as suas intermináveis frases.
Sou professor. Professo a esperança todos os dias, mesmo desesperançado. Na escola em que trabalho, não poucas vezes, vi preconceitos fazendo fila e causando dor. Vi teorias dos que dizem que o ser humano é assim, perverso. Até presto atenção para ver se me convenço, se estou errado.
Não. O ser humano não é perverso. Ou, talvez, não seja nada. Seja folha a ser escrita, barro a ser moldado, canção a ser cantada. Minha mulher não desafina, é o seu trabalho ter a voz limpa para limpar as névoas que surgem nas gentes em dias tristes. Mas não é errado desafinar. É parte dos preparos. O errado é não compreender os desafinos.
O mundo está desafinado. E há muitos maestros cansados. É por isso que rezo. Rezo até por mim. Para que eu prossiga ensinando o certo. Para que eu, mesmo em campos devastados, enxergue as sementes.
Quando explico a Deus o que o mundo precisa, aprendo com as minhas explicações. O silêncio é ensinador. As melhores frases nascem depois de instantes preciosos de silêncio!
Quando explico a Deus o que o mundo precisa, aprendo com as minhas explicações. O silêncio é ensinador. As melhores frases nascem depois de instantes preciosos de silêncio!
Começo a preparar o café. O cheiro acorda Carmen. Ela vem cantando. Não ouviu as notícias do rádio. Às vezes, é melhor. Ela vem e começa a me ajudar. Cantando. Eu esqueço que é inverno no mundo e vejo flores florescendo na cozinha de casa. Ela me beija. Nos olhamos. O dia vai ficando alegre. É de alegria que precisa o mundo. A alegria é filha do amor. O amor precisa de silêncio. O amor é semente germinante no silêncio. O amor é espera regada no pensar e no sentir. Os meus pensamentos não deixaram de pensar nas dores do mundo, enquanto eu sentia o beijo de Carmen. Mas o beijo de Carmen me emprestava forças para acender alegria em mim.
Acendo uma vela, como fazia minha mãe, e, depois do café, vamos para o quarto, Carmen e eu, sentir a escolha certa de 30 anos atrás.
Agora é uma música na estação romântica que acompanha o silêncio dos nossos corpos sendo um. É, então, primavera.
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