A política de cancelamento e discurso de ódio que se praticam atualmente na sociedade, notadamente nas redes sociais, atinge sobretudo aos que expressam desejo de pertencimento ou visibilidade ou cujas atividades profissionais demandam interação com o público. Profissionais qualificados podem ser vitimados por cancelamento em razão de fato alheio à sua atividade laborativa. Vivenciamos a perda da função social da cidade, como espaço de socialização e convivência. A cidade tornou-se virtual.
Nem sempre quem promove discurso de ódio sabe o porquê o faz. Mais que o mal-estar da civilização para a qual a cultura nos socializa, vivenciamos o mal-estar nas interações difusas. O ponto de inflexão no Brasil foi registrado nas Jornadas de junho de 2013. Aquelas manifestações que, no Rio de Janeiro, perguntavam pelo corpo de Amarildo não podem ser interpretadas como um movimento organizado da direita, que efetivamente tomou as ruas em momento posterior. Desde quando a direita se ocuparia com o destino de um homem negro, favelado e pobre morto pela política de extermínio que se implantou neste Estado? As manifestações de junho de 2013 expressaram rejeição aos gastos com os grandes eventos nos quais o povo não poderia ingressar. A precariedade nas áreas da saúde, educação, saneamento, moradia e transporte coletivo foi o combustível que fez propagar aquele incêndio. O mal-estar difuso foi agregado a partir do surgimento das mídias sociais, que serviram para convocações de simultâneas ou sucessivas aglomerações durante um mesmo dia. Aqueles que se escondiam nos porões deixados pela ditadura empresarial-militar aproveitaram o momento e saíram de suas cavernas.
A política de cancelamento, discursos de ódio, mentiras, notícias falsas e fofocas preexistem ao atual momento. O que as difere das fake News é a larga e rápida difusão propiciada pelas redes sociais. A política do cancelamento está relacionada à destruição de reputações, tal como o discurso de ódio está relacionado ao linchamento físico, verbal ou noticioso outrora praticado, também, pelas mídias corporativas. As plataformas digitais dão eco ao discurso de ódio e aos cancelamentos e o mal-estar nas relações sociais são campo fértil para tais ocorrências.
A formação de grupos sociais, física ou virtualmente, a partir de afinidades propicia a agregação, mas também a exclusão de quem não seja considerado apto a tal inserção. O ser humano nasce indivíduo e se torna pessoa. Com a aquisição de determinados atributos pessoais adquire status com os quais se relaciona socialmente. A cultura do cancelamento implica na destruição do status com o qual a pessoa se apresenta socialmente.
Vivemos em praças digitais que nos expõem a tribunais virtuais nas redes sociais, num processo de digitalização das relações e até em processo que se denomina metaverso. Metaverso expressa a confusão entre o real e o virtual, sem grande possibilidade de distinção entre um e outro. Mais que os cancelamentos com índices de rejeição, perdimento de seguidores em plataformas digitais, temos a transmudação da cultura do cancelamento em discursos de ódio com ameaças à integridade física ou à vida de pessoas, extensivo a amigos e familiares.
O discurso de ódio e a cultura do cancelamento causam danos psicológicos e físicos, na medida em que impõem sofrimentos, dores, angústia e no plano econômico distratos de contratos e desfazimento de relações jurídicas estabelecidas. O cancelamento implica na ação de boicotar uma pessoa dentro de uma comunidade ou grupo social. Cancelar é negar o direito de uma pessoa ao pertencimento a um determinado grupo, deslegitimando-a; é conduta excludente. Busca-se negar o direito de pertencimento. O extremo do cancelamento é a política de extermínio de pretos e pobres na periferia, antes excluídos do conceito de pessoas humanas. O cancelamento virtual é uma forma de justiçamento, tal como o são os linchamentos e execuções sumárias.
Numa sociedade cada vez mais mediada pelas plataformas digitais e pelas redes nelas estabelecidas, os linchamentos morais podem – com facilidade – se transformar em violência física, com risco à própria vida dos cancelados. Um coach, famoso por suas mentiras, nesta semana, promoveu discurso contra jornalistas de uma emissora de televisão, tornando-os alvo de seus seguidores. Os jornalistas estão andando sob escolta. Não se pode confundir a liberdade de expressão com o incitamento a crime. Ainda que o famoso coach não tenha ordenado dano físico aos jornalistas, seu discurso de ódio propiciou tal efeito, pois seus seguidores passaram a ameaçar os jornalistas.
Os perigosos sentimentos coletivos da massa se expressam tal como os gritos do incentivador da barbárie. O discurso de ódio se traduz em excesso na liberdade de expressão, causador de danos e sujeita o incitador à responsabilização. O excesso na manifestação do pensamento é abuso de direito. A responsabilização, além da esfera civil, pode igualmente ser buscada na esfera penal, seja contra quem pratique o dano ou a quem o incitou. Afinal, quem de qualquer forma concorre para o crime incide nas penas a ele cominadas.
* João Batista Damasceno é Doutor em Ciência Política
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