Aliás, ao entregar este texto para o Kiko fazer a arte da página, comentei com ele que havia sido mais difícil encontrar inspiração para escrever desta vez. E ele respondeu: "Melhor assim. Você é humana!"Arte: Kiko

O clima já estava mais ameno, típico do outono que vem chegando, numa dessas manhãs de março. Parei o carro num estacionamento em Caxias e cumprimentei o senhor que trabalha ali. Ciente da minha rotina, ele logo brincou: "Vai fazer a unha hoje? Cuidado para não borrar!" Bem-humorada, respondi: "Hoje não! Não tem perigo". O seu comentário tinha razão de ser: ali ao lado funciona um espaço onde costumo ir à manicure. Mas naquele dia o meu destino era outro.
Desta vez, tinha uma consulta marcada numa clínica. Cheguei pouco antes do meu horário e fiquei sentada na recepção, à espera de ser chamada. A secretária também me cumprimentou, falando o meu nome. E logo me veio à memória o filme que havia assistido na noite anterior, 'O Homem Ideal', de 2021, num serviço de streaming. Nele, uma cientista aceita viver por três semanas com um robô humanoide programado de acordo com o que ela considera 'perfeito' em um par.
Adaptei a história do filme nos meus pensamentos e passei a agradecer pela convivência com tantas pessoas reais no dia a dia. Felizmente, no estacionamento ali ao lado, havia alguém que me conhece, mesmo que de vista, e não um robô planejado para decorar os meus passos. No consultório, a mesma coisa, uma secretária que já sabe quem sou e entendeu por que eu não havia chegado a tempo para a consulta marcada na semana anterior.
Pensei em como é bom o diálogo com pessoas que compreendem imprevistos, escutam e reagem ao que dizemos naturalmente, mesmo na discordância. É muito bom estar cercada pela percepção de quem nota quando estou mais quieta e reclusa. Pode acontecer até remotamente. Isso, sim, é humano. Aliás, considero impossível programar um robô para falar, com sentimento verdadeiro, a frase mágica da empatia: "Eu entendo você". Sou fã, aliás, de gente que não conversa de forma robotizada, com escudos e frases iguais para todas as situações.
Pensando no par ideal do filme, eu me perguntei se vale a pena se relacionar com alguém que sabe exatamente do que gostamos e não nos apresenta algo de novo vindo do seu universo. Afinal, a gente se encontra nos desencontros de gostos musicais, artísticos e também de rotina.
Por mais que a história busque um romantismo entre o homem robotizado e a mulher real, eu me lembrava que ele havia sido planejado. Tanto que eles ainda precisam criar um passado em comum para contar a história de como o casal se formou. Sou fã da imaginação, mas o meu lado canceriano e saudosista me leva a acreditar que as raízes formam o alicerce da nossa existência. Assim, conhecer alguém é saber a sua história. Quero ouvir sobre a sua família, as suas heranças afetivas, as suas peraltices da infância, a sua trajetória de vida. Tudo bem real, e não inventado.
A reflexão, no entanto, é permanente: por que a interação com máquinas nos fascina tanto? Tenho a sensação de que nos acostumamos com a facilidade da vida virtual e nos assustamos um pouco—ou muito—com novas relações reais. Conhecer alguém de fato, trocando experiências boas e ruins é um ato de coragem. Partilhar o seu mundo e ouvir o do outro pode ser belo e instigante. Mas nada fácil. Mesmo assim, eu ainda prefiro o olho no olho de pessoas não robotizadas. Gosto de gente como a gente, sem ideais de perfeição. Aliás, ao entregar este texto para o Kiko fazer a arte da página, comentei com ele que havia sido mais difícil encontrar inspiração para escrever desta vez. E ele respondeu: "Melhor assim. Você é humana!"