Que bom seria se a vida fosse sempre assim, cada um convivendo em harmonia com as escolhas dos outrosArte: Kiko

Um móbile gigante e colorido bailava lindamente no ar e me chamava a atenção. Nos arredores do Museu da Cidade, na Gávea, aquela arte contracenava com o verde natural do ambiente e dava as boas-vindas para a apresentação do cantor Pedro Miranda, prevista para começar às 11h. Cheguei uma hora antes e reparei que o músico também se fazia presente pelos arredores. Ele vestia bermuda, com uma blusa de botão aberta sobre outra de malha, e calçava chinelos. Logo ele se sentou no banquinho, com o seu violão, e começou a cantar ao ar livre. Ainda era apenas a passagem de som, mas a sua bela voz ecoava pelo enorme jardim e dava a sensação de que o show já havia começado para valer.
O público foi chegando e tomando conta de todo o cenário. Fazia sol, mas o clima ameno do outono permitia blusas de mangas compridas ou curtas; calças ou bermudas; vestidos, sandálias ou tênis. A plateia, aliás, se dividia entre cadeiras de praia ou cangas estendidas no chão — todos os itens trazidos de casa. Os repelentes também eram bem-vindos. Ali, a arte mostrava que a sua praia é em qualquer lugar. Afinal, para mergulhar em universos inspiradores é preciso que a gente perceba o mar de oportunidades. Muitas vezes, ele não está evidente.
Não havia arquibancadas nem lugares marcados. Os espaços vips talvez obedecessem somente o gosto de cada espectador. Foi o que reparei quando uma senhora chegou com duas meninas. Enquanto as garotas escolheram ficar no chão, ela explicava que sempre se sentava em um mesmo cantinho, em um banco próximo. E assim fez. Que bom seria se a vida fosse sempre assim, cada um convivendo em harmonia com as escolhas dos outros.
Após a passagem de som, Pedro Miranda trocou de roupa para a apresentação oficial, colocando outra blusa com os botões fechados, calça comprida e sapato. Inclusive, ele já havia anunciado no seu Instagram que a ocasião merecia um "traje de gala" para festejar a conquista do Prêmio da Música Brasileira, na semana anterior. É curioso como gostamos de adornos, mas talento e poesia são mesmo vestes naturais. Comprovei isso na lembrança de Mário Quintana, quando Pedro declamou os versos: "Os poemas são pássaros que chegam não se sabe de onde e pousam no livro que lês..." E no resgate de 'Rosa', de Pixinguinha e Otávio de Souza, também cantada naquele domingo no Parque da Cidade: "Tu és, divina e graciosa/ Estátua majestosa do amor/ Por Deus esculturada/ E formada com ardor/ Da alma da mais linda flor..."
Neste momento, pensei em como é bela a forma como artistas perpetuam o legado uns dos outros. Lembro que consegui gravar a letra dessa valsa, datada de 1917, ao ouvir uma interpretação de Marisa Monte na minha juventude. Acompanhei toda a canção/declamação de Pedro Miranda repetindo os versos baixinho – afinal, a música ainda faz morada na minha memória. Reparei também em um senhor sentado em uma cadeira de praia: ele parecia um maestro regendo a melodia com as mãos. Nós dois sabíamos de cor e salteado aquela canção, provando que a alma não é datada, como costumamos fazer com o corpo. Por mais que a gente insista numa separação por idade e até por estilos, a poesia, essa vestimenta natural dos artistas, faz o papel de nos unir.