A máxima de que é impossível prever o desfecho das comissões não se aplica à CPI do MST nem à CPMI do 8 de janeiro. A questão é saber quem ganhará com elas
A paralisação dos trabalhos no Congresso Nacional devido ao feriado de Corpus Christi, na quinta-feira da semana passada, teve, entre outros efeitos sobre a política, o de jogar um pouco de água fria na fervura que já vinha se levantando em duas das comissões de inquérito que funcionam simultaneamente no parlamento brasileiro. A primeira é a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) — ou seja, do Senado e da Câmara — instalada a pretexto de se investigar as invasões das sedes dos Três Poderes nos atos do dia 8 de janeiro. A outra, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), formada por deputados que tentam avançar na discussão dos métodos utilizados nas invasões de terras pelo MST.
As duas preencheram todos os requisitos necessários e por isso foram instaladas. Ambas foram requeridas, como manda o regimento, a partir de fatos determinados que, no entender do número de parlamentares da Câmara e do Senado previsto no regimento, merecem atenção especial por parte do Congresso. A partir da data da instalação, cada uma terá o prazo de 120 dias, prorrogáveis por mais 60, para concluir seu trabalho. Ou seja, as atividades estenderão por um período que pode chegar a seis meses. Não precisava tanto tempo. Existe na política brasileira uma lenda segundo a qual todos sabem como começam essas comissões de inquérito, mas ninguém é capaz de dizer como elas terminarão. No caso dessas duas, no entanto, isso está longe de ser verdade.
Sem a pretensão de fazer qualquer exercício de futurologia, é possível afirmar hoje, a pelo menos quatro meses da conclusão do trabalho de cada uma das comissões, que o desfecho de uma é tão previsível quanto o da outra. A despeito do barulho e da poeira que cada uma delas vier a levantar, nenhuma levará a lugar diferente do que se já chegou até agora. Mais do que isso, nenhuma avançará um centímetro nem mudará uma vírgula na (para usar a palavra da moda) “narrativa” dos grupos que digladiam em torno dos temas que estão sob investigação.
Aconteça o que acontecer no plenário da CPMI, os políticos ligados ao governo continuarão se referindo à balbúrdia que tomou conta da praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro como uma tentativa de golpe de Estado por parte da direita. Os políticos conservadores, por sua vez, continuarão apontando a omissão do governo na proteção dos prédios públicos e criticando os exageros na aplicação indiscriminada de penas a todos os participantes, independentemente de sua culpa individual.
No caso da CPI que acontece na Câmara, os políticos governistas continuarão dizendo, como sempre disseram, que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um movimento social que luta pela Reforma Agrária e que as acusações de violência contra o grupo liderado pelo companheiro João Pedro Stedile não passam de uma reação da direita latifundiária aos avanços da luta social no campo... E os políticos conservadores continuarão afirmando que o MST é uma organização que se usa de métodos terroristas para extorquir os proprietários rurais. Esse tem sido o discurso que se ouve no parlamento desde o surgimento do MST, no final dos anos 1980, e essa CPI não terá o poder de mudá-lo.
Se é assim, e voltando à pergunta feita no título deste texto, é o caso de perguntar novamente: para que servem as CPIs? Pelo andar da carruagem, tanto a CPMI do dia 8 de janeiro quanto a CPI do MST servirão apenas para deixar tudo como está. Sua consequência mais previsível será a de tornar ainda mais acentuado o clima de divisão que, há anos, impede que o Congresso Nacional chegue a um entendimento em torno das providências para tirar o Brasil de uma crise que se arrasta há mais de dez anos e que mantém a Economia do país praticamente parada.
Haverá gritos estridentes no plenário, dedos em riste apontados para o rosto de algum adversário e ofensas gratuitas dirigidas às pessoas convocadas para prestar depoimentos. Também haverá a tentativa de se utilizar o regimento de acordo com a preferência política da relatoria e toda aquela sucessão de cenas lamentáveis que costumam ser vistas nas CPIs. Mas tudo, no final, seguirá exatamente como está. Infelizmente.
TCHUTCHUCA E TIGRÃO — Calma. Ninguém está dizendo aqui que as investigações conduzidas pelo parlamento não sejam importantes nem que sejam incapazes de produzir efeitos notáveis. As CPIs por si só não têm, é verdade, força legal para, por exemplo, tirar o mandato de um presidente da República ou de qualquer autoridade. Mas, como comprovam as trajetórias políticas de Fernando Collor de Mello e de Dilma Rousseff, não é um bom negócio para o Executivo apostar na tensão permanente com o Congresso.
Também não é o caso de se dizer que os fatos sob investigação não sejam importantes e que não haja pontos obscuros a serem esclarecidos tanto no caso dos atos do 8 de janeiro quanto nos das invasões de terras pelos militantes do “exército do Stedile” — como os invasores do MST costumam ser chamados pelos políticos da esquerda. A questão é saber se a investigação sobre fatos dessa natureza precisa estar a cargo do Congresso.
O problema são as suspeitas de parcialidade que existem em relação ao tratamento dado a esses temas pelos órgãos do Executivo responsáveis pelas investigações. Para nos valermos da mesma imagem que certa vez foi utilizada pela esquerda em relação ao ex-ministro da Economia do governo de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, pode-se de dizer que o ministro da Justiça Flávio Dino tem agido como um “tigrão” diante dos manifestantes do 8 de janeiro e como “tchutchuca” frente aos invasores do MST.
O tratamento desigual dado a baderneiros de um grupo e do outro tem, com certeza, alimentado a insatisfação dos políticos da direita e, mais do que isso, dado a eles argumentos para seguir mantendo o governo contra as cordas no Congresso. Se não houver uma mudança de postura e se o governo — como prometeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua campanha — não começar a governar para todos os brasileiros, o clima de divisão ficará cada vez mais acirrado dentro e fora do parlamento e as aprovações das medidas destinadas a destravar a Economia serão, senão mais difíceis, ou pelo menos mais caras.
“DEPUTADOS ACHACADORES’’ — Esse é um ponto importante e já foi observado por muita gente em outros momentos da história. Em 2015, no início do segundo mandato da politicamente inábil Dilma Rousseff, o então ministro da Educação e atual senador Cid Gomes (PDT/CE) criou uma confusão ao dizer e reafirmar o que pensava dos deputados. Referindo-se à Câmara, onde o governo, como agora, enfrentava dificuldades para aprovar projetos de seu interesse, Gomes afirmou: “Tem lá uns 400... 300 deputados que, quanto pior a situação, melhor para eles. Eles querem que o governo esteja frágil porque essa é a forma de eles achacarem mais, tomarem mais, tirarem mais dele ...”
A frase foi dita num encontro com estudantes em Belém do Pará. Gomes foi chamado à Câmara para dar explicações e da tribuna, diante do plenário lotado, partiu para o ataque. Repetiu palavra por palavra do que havia dito. A atitude, por mais corajosa que tenha sido, inviabilizou a permanência de Gomes no governo e contribuiu para piorar ainda mais o relacionamento de Dilma com o Congresso. O clima se acirrou e no final de 2015, o PT deu entrada no Conselho de Ética da Câmara com um pedido de cassação do mandato do presidente da Casa, o então deputado Eduardo Cunha. Em resposta, Cunha desengavetou um pedido de abertura de um processo de impeachment contra Dilma. O resto é história.
Nada indica que exista neste momento qualquer possibilidade de articulação ou movimento por parte da oposição que evolua a ponto de pôr em risco o mandato do presidente Lula. Nada disso. Embora a base de sustentação parlamentar de seu governo às vezes apresente sinais de fragilidade e o próprio presidente já não demonstre a mesma disposição para a conciliação que fez dele um dos políticos mais habilidosos da história do país, Lula conta com o apoio necessário para se manter no cargo e tomar medidas de seu interesse político até o 2026.
A questão é que, se o velho Lula estivesse em ação e os ânimos não tivessem tão eriçados pela mania que o presidente tem de nunca descer do palanque eleitoral, isso poderia ser feito de uma forma bem mais simples e menos onerosa para uma país que já não tem dinheiro para o que precisa fazer. Em resumo: o acirramento dos ânimos provocados pelas investigações parlamentares em nada contribui para melhorar o clima e fazer o congresso se voltar para as medidas de interesse da população.
PRIMEIRO FUZUÊ — A CPMI do 8 de janeiro começou na terça-feira passada e já teve seu fuzuê inaugural — o primeiro de muitos que certamente acontecerão até a conclusão dos trabalhos. Ele foi provocado, claro, por um dos tipos mais comuns entre os políticos que disputam lugar nas comissões mais rumorosas. Trata-se daquele parlamentar manjado que se aproveita do interesse que a imprensa demonstra por esse tipo de evento para aprontar alguma confusão e, com sorte, atrair os holofotes e as atenções. Esse tipo de procedimento já fez com que alguns políticos que pareciam condenados ao anonimato conseguissem deixar de integrar o chamado “baixo-clero” para conquistar alguma projeção entre os mandachuvas no Congresso. O ofidiário que abriga os seres mais sorrateiros da política brasileira está cheio desse tipo de político...
No caso da confusão de terça-feira, ela foi causada por um parlamentar do PT em primeiro mandato, o mineiro Rogério Correia, que armou uma confusão para tentar impedir que o deputado André Fernandes (PL/CE), investigado pela Polícia Federal por suposto envolvimento nos atos de 8 de janeiro, participasse da CPI. Fernandes é o autor do requerimento com o pedido de investigação que, por falta de habilidade política, foi tratado com desdém pela bancada governista até que as cenas das câmeras de segurança do Planalto viessem a público e mostrassem o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), ministro Gonçalves Dias, dispensando aos invasores um tratamento para lá de amistoso...
Cenas como a que foi protagonizada pelo petista Rogério Correia devem se repetir nas próximas sessões e, diante do clima que se anuncia, nada indica que a investigação avance a ponto de revelar para a sociedade o que de fato aconteceu no dia 8 de janeiro. O mesmo deve acontecer em relação à CPI do MST. Não haveria justificativa para se mobilizar tempo e energia de parlamentares em torno de um caso como o do MST e suas invasões de terras produtivas e de experimentos científicos promovidas este ano caso as ações desse “movimento” fossem tradadas com o mesmo rigor equivalente ao que vem sendo utilizado contra os manifestantes de 8 de janeiro.
Embora os simpatizantes da esquerda se refiram a essa sigla como se pertencesse a uma entidade palpável, de existência reconhecida, e o símbolo do grupo seja visto enfeitando bonés usados pela juventude de classe média em Ipanema e em outras praias badaladas, o fato é que, tecnicamente, o MST não passa de uma organização clandestina. O grupo não tem registro em cartório, não tem endereço declarado, não tem CNPJ, não tem conta em bancos em seu nome... ou seja, não preenche nenhum dos requisitos exigidos de qualquer empresa ou entidade que pretenda ter vida legal no Brasil. Lidar com esse grupo não deveria ser, a rigor, uma atribuição do parlamento, mas da polícia e da Justiça.
Atenção! Criticar o MST não significa condenar o programa brasileiro de Reforma Agrária que já existia mesmo antes da redemocratização e passou a andar a passos acelerados desde a promulgação da Constituição de 1988. Hoje, no Brasil, um proprietário que não queira ou não tenha condições de dar uma exploração econômica para suas terras terá mais vantagens se entregá-las para o programa de Reforma Agrária do que se conservá-las improdutivas. O que está em pauta, portanto, não é a distribuição da “terra para quem nela vive e trabalha”, como reza o mote dos movimentos de esquerda, mas a ação do MST como instrumento de pressão política para promover invasões com a certeza da impunidade em nome da agenda política da esquerda.
Esse é o ponto que realmente interessa. O país ganharia muito se o Congresso se debruçasse sobre os temas que de fato interessam e remetesse os assuntos que não são de sua competência para o Executivo e o Judiciário. Mas para que isso aconteça, os demais poderes deveriam tomar a iniciativa e deixassem de dar a impressão de que não são guiados por preferências políticas, mas pela imparcialidade e pela impessoalidade —como estabelecem os princípios da administração pública.
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