Nuno14maiARTE KIKO

Para início de conversa, convém deixar claro que esta coluna aprova a adoção de normas modernas, ágeis e democráticas para coibir o mau uso das redes sociais e evitar que seu incrível poder de comunicação seja utilizado para espalhar mentiras, destruir reputações e, dessa maneira, proporcionar alguma vantagem pessoal ou política a quem quer que seja. É importante, portanto, que o Estado ofereça ao cidadão a devida proteção contra a calúnia, a difamação e a chantagem — e que resguarde as instituições de ataques e movimentos capazes de desestabilizá-las.
Num ambiente democrático, que tenha como valor o direito à pluralidade de ideias e ao contraditório, estabelecer mecanismos legais que protejam esses direitos é, mais do que legítimo, necessário. É preciso, sim, disciplinar o uso das redes sociais. Antes, porém, é preciso debater a questão amplamente nos ambientes apropriados e definir as regras do jogo — que devem ser claras e objetivas o bastante para impedir a manipulação da verdade por meio de golpes baixos e manobras desleais. Mais do que uma obrigação do Estado, isso é um direito do cidadão.
Quem já foi alvo de campanhas difamatórias ou esteve na mira de grupos organizados de maior ou menor expressão, que, de forma covarde, se escondem por trás dos avanços tecnológicos para tentar deixar seus adversários contra as cordas sabe muito bem a importância de poder contar com a proteção da lei e da Justiça. O Código Penal brasileiro dispõe de mecanismos suficientes para proteger as vítimas desse tipo de ação. O que falta, talvez, sejam instrumentos que, levando em conta a velocidade com que a mentira se propaga no ambiente virtual das redes sociais, sejam capazes de oferecer aos atingidos uma resposta ágil e eficaz contra esses ataques.
Se a intenção do ministro da Justiça Flávio Dino, do ministro do STF Alexandre de Moraes e do deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), no momento em que falam em regular as redes, se limitasse a criar mecanismos de proteção aos direitos dos cidadãos e das instituições, não haveria qualquer motivo de receio por parte de quem quer que seja. O problema é que, a pretexto de estabelecer uma proteção legítima, eles se mostram dispostos a definir de que lado está a verdade e quem tem o direito de dizê-la. Por outro lado, eles dão a impressão de querer negar aos que não pensam como eles o direito de abrir a boca e de dizer qualquer coisa. E essa prática — vamos deixar claro enquanto é tempo — atende pelo nome de censura e é proibida pela Constituição.

GALILEU GALILEI
A semana passada foi rica em eventos que deixaram clara a intenção de representantes dos três poderes de criar no Brasil um sistema de controle que parece avançar perigosamente na direção da censura. Para impedir a disseminação de mentiras, dizem os defensores das medidas, é preciso rigor. É aí que está o problema: caso o governo anterior tivesse proposto medidas como as que estão sendo defendidas agora, teria sido acusado de transformar o Brasil numa ditadura. Mas que hoje, independente de quem as tome, são apontadas como instrumento de defesa da democracia.
Na quarta-feira da semana passada, Moraes determinou que o aplicativo de troca de mensagens Telegram se retratasse por ter distribuído a seus usuários uma mensagem com críticas ao Projeto de Lei 2630/2020 — conhecido como Lei das Fake News ou, como vem sendo chamado por um número crescente de pessoas, Lei da Censura. Moraes ainda ameaçou tirar o aplicativo do ar por 72 horas, além de multa-lo em R$ 500 mil por hora, caso a empresa não se retratasse por ter visto a lei como uma ameaça à democracia brasileira.
O aplicativo obedeceu e se retratou. Só que o fez num texto curto e grosso, de um único parágrafo, em que deixou claro que não agiu por convicção, mas por “determinação” do STF. Da forma como foi feita, a retratação do Telegram lembra a atitude do astrônomo italiano Galileu Galilei diante do Tribunal da Inquisição no final do Século 17. Em sua obra Diálogos Sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo, Galileu havia dito em tom bem humorado que o polonês Nicolau Copérnico estava certo ao afirmar que a terra gira em torno do sol. A inquisição não gostou e exigiu que, para não ser queimado vivo, Galileu se retratasse e dissesse que a Terra era o centro do universo... Galileu obedeceu e o resto é história.

SEM AVISO PRÉVIO
Questões como essa precisam ser analisadas com muito cuidado — ainda mais num momento em que o calor do debate leva a um bate boca inconclusivo entre um lado e o outro. O Marco Civil da Internet, assinado pela ex-presidente Dilma Rousseff em 2014, confere à Justiça o poder de tirar do ar plataformas digitais que veiculem mensagens capazes de expor a risco alguma pessoa ou a população. O problema é que não existe uma definição objetiva para o que venha a ser esse “risco” e a decisão muitas vezes se baseia única e exclusivamente na interpretação subjetiva do juiz.
Sete anos atrás, por exemplo, o aplicativo WhatsApp foi tirado do sem aviso prévio e ficou inativo por 72 horas. O motivo foi uma decisão do juiz Marcel Montalvão, da comarca de Lagarto, em Sergipe. O magistrado entendeu que o aplicativo Facebook — proprietário do WhatsApp — não havia compartilhado informações que, no seu entender, poderiam ajudar em uma investigação criminal. Por causa disso, todos os usuários do aplicativo no país, do Oiapoque ao Chuí, ficaram impedidos por três dias de se comunicar pelo aplicativo de troca de mensagens.
Pode-se discutir se a decisão do juiz foi mais severa do que o tamanho do caso exigia. Também é possível avaliar sua consequência sobre a vida de milhões e milhões de usuários que nada tinham a ver com a história e mesmo assim foram atingidos pela decisão do juiz. O que não se pode dizer é que ele tenha ultrapassado os limites da lei. O mesmo, porém, não pode ser dito em relação à ameaça de Moraes ao Telegram. Em primeiro lugar, o ministro negou ao aplicativo o direito de expressar sua opinião. Além disso, ameaçou aplicar penalidades não previstas em lei caso os representantes da empresa não baixassem a cabeça e dissessem “Sim, Senhor”.

PERSEGUIÇÃO POLÍTICA
O ideal, no ponto a que a situação chegou, é parar para tomar fôlego. Não existe a necessidade de se resolver uma questão séria e sensível como essa a toque de caixa, como o governo e o ministro Moraes vêm fazendo, sem deixar a impressão de que a intenção não seja mesmo a de sair por aí censurando tudo. Se existe a certeza da existência das tais “milícias digitais” bolsonaristas, apresentadas como justificativa as medidas que podem endurecer o jogo contra a liberdade de expressão, o certo seria identificá-las e averiguar a intenção de seus atos.
Se ficar mesmo comprovado, por meio de processos conduzido sem açodamento, que garantam aos acusados o amplo direito de defesa, que esses grupos estão mesmo tramando crimes ou planejando atentados contra a democracia, que todos os seus integrantes sejam punidos na forma da lei. Se, por outro lado, eles estiverem apenas expondo suas opiniões, ainda que elas não coincidam com as de quem está no poder, não há o que fazer além de conviver com a divergência: isso faz parte do jogo democrático.
O tema é importante e precisa ser tratado com mais serenidade e menos ameaças. O pior a fazer é empurrá-lo para dentro da vala comum que tem reduzido toda a política brasileira a um embate permanente entre lulistas e bolsonaristas. Para evitar esse risco, é preciso livrar o debate de qualquer exagero ideológico e rejeitar que se crie qualquer dificuldade para a livre circulação de informações no país apenas porque algumas pessoas são acusadas de fazerem mau uso do direito à liberdade de expressão.
Pensar em punir as plataformas digitais porque pessoas irresponsáveis as utilizam para espalhar mentiras é o mesmo que mandar fechar os Correios porque bandidos se valem do serviço dos carteiros para mandar cartas anônimas. O certo é identificar e tomar contra os criminosos, uma vez comprovada sua culpa, medidas que os atinjam sem prejudicar a mais ninguém — e não tomar medidas como as do juiz de Lagarto, que prejudicaram toda a sociedade a pretexto de resolver problemas que poderiam ser esclarecidos com um pouco mais de diligência por parte da polícia ou do Ministério Público.
O fato é que as redes sociais podem até agilizar a disseminação, mas não são responsáveis pela origem das Fake News. Essas, por sinal, já existiam muito antes do surgimento da internet. Também é preciso ficar claro que, embora seu trabalho seja mais identificável, os meios tradicionais de comunicação, que praticam o chamado jornalismo profissional, não são, por si só, antídotos contra a propagação de mentiras. Há dezenas de casos de Fake News que foram criados justamente por eles. Quer recordar alguns? Vamos a eles.

O XIS DA QUESTÃO
Em 1982, no processo de apuração das primeiras eleições diretas para os governos estaduais que houve no Brasil desde 1965, uma empresa de processamento de dados chamada Proconsult foi contratada pelo TRE do Rio de Janeiro para totalizar os votos apurados. Com ampla divulgação da TV Globo, a companhia passou a divulgar os resultados de forma seletiva — dando preferência aos números de urnas favoráveis ao candidato Wellington Moreira Franco (PDS) e escondendo os votos dados a Leonel Brizola (PDT). Moreira começou a apresentar, aos olhos de quem tomava conhecimento dos números por intermédio da emissora, uma vantagem que não condizia com a realidade — o que era, evidentemente, uma Fake News. A impressão que ficou foi a de que a emissora pretendia insistir na divulgação dos resultados falsos para justificar uma possível fraude—que acabou não de consumando diante da reação à mentira.
Quer outro exemplo? Vamos lá! No dia 25 de janeiro de 1984, a mesma emissora divulgou como se fosse um evento em comemoração do aniversário de São Paulo o primeiro grande comício da campanha das Diretas Já — realizado na Praça Sé. As imagens que foram ao ar no noticiário foram tomadas aéreas que não mostravam as faixas pedindo a volta do direito do povo de escolher o presidente da República pelo voto direto. Mais tarde, com o crescimento da campanha, a emissora foi obrigada a rever sua posição e reconhecer que o povo queria votar.
Quer um exemplo que não tem a ver com a política? Em 1992, a mesma emissora destruiu a reputação e causou danos irreversíveis a inocentes ao encabeçar e insistir na campanha difamatória contra os donos da Escola de Base, em São Paulo, acusados injustamente de cometer abusos sexuais contra alunos. Trinta anos depois — isso mesmo, três décadas!!! — a emissora reconheceu o erro e o jornalista responsável pela Fake News, que jamais sofreu qualquer punição pelo erro, pediu desculpas àqueles que tiveram o futuro destruído pela mentira. Melhor seria se tivesse ficado calado.
Se as redes sociais existissem e estivessem funcionando na época desses acontecimentos, pode ser que a sociedade reagisse, desmascarasse as mentiras e impedisse tamanha tentativa de manipulação dos fatos. O problema é que, em pelo menos duas dessas ocasiões, o país ainda estava sob a ditadura — e não há ditadura no mundo que resista à ideia de asfixiar a internet. Esse é o xis da questão. É preciso discutir mais a fundo e levar mais a sério a questão liberdade de expressão. E deixar claro que o direito de defender seus pontos de vista seja estendido a todos. Isso é o mínimo que se espera de uma democracia.