A dimensão da parceria comercial da China com o Brasil e a importância crescente do país asiático na economia global já seriam motivos suficientes para justificar a viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Beijing na semana passada. Depois de quatro anos de distanciamento, quando a China, foi tratada com frieza pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o aceno de Lula em direção a Xi Jinping pode, sim, render bons frutos para as relações entre os dois países. Os quinze acordos assinados pelos dois países preveem recursos para investimentos em infraestrutura, parcerias tecnológicas importantes e cooperações importantes em diversas áreas — inclusive na produção audiovisual. Por esse ponto de vista, a presença de Lula na China merece ser tratada com otimismo.
Trata-se do maior importador de produtos brasileiros — sobretudo da carne, da soja e do minério de ferro. No ano passado, as vendas para o gigante oriental bateram um recorde e somaram US$ 89 bilhões — ou 26,8% das exportações totais do país. Em 2021, apenas para comparar, as vendas para a China alcançaram US$ 87,9. A participação chinesa nas vendas totais daquele ano foi de 31,3%. Esses números são suficientes para mostrar que o fortalecimento dessas relações é saudável e positivo para o Brasil.
Nada disso, porém, indica que tudo esteja correndo sem ruídos na diplomacia comercial do Brasil. Por mais otimistas que sejam os sinais de incremento das relações com Beijing, existe um risco a ser considerado. O Brasil pode sair perdendo caso Lula, com sua adesão ostensiva à parceria com a China, cometa o mesmo erro de Bolsonaro, que se alinhou, da cabeça aos pés, aos Estados Unidos durante o governo do ex-presidente Donald Trump. Se aproximar de um, é bom que se diga, não obriga o Brasil a se afastar do outro.
Assim como não havia, naquele momento, a menor necessidade de hostilizar a China ao se ligar aos Estados Unidos — como fez Bolsonaro — também não é preciso, agora, se mover na direção contrária. O Brasil nada ganhará e pode até perder trunfos importantes caso se confirme a impressão de que a proximidade com a China resultará no afastamento do mercado americano. Já passou da hora dos governantes brasileiros descobrirem que, em matéria de diplomacia comercial, pragmatismo vale mil vezes mais do que a preferência irrestrita por parceiros com os quais se tem afinidade ideológica.

CONFIANÇA NA MOEDA
Lula não consegue esconder sua predileção por aliados que não rezem pela cartilha dos Estados Unidos e, em nome dessa preferência, chegou durante a viagem até mesmo a dizer palavras que soaram como provocações ao governo americano. Em seu discurso em Shangai, durante a cerimônia de posse da ex-presidente Dilma Rousseff no comando do New Development Bank, o NDB — conhecido como Banco dos Brics —, Lula tocou numa questão sensível demais para ser tratada com superficialidade: “Por que todos os países estão obrigados a fazer seu comércio lastreado no dólar? Por que não podemos fazer nosso comércio lastreado na nossa moeda?”
A questão é a seguinte: será que o presidente não está demonstrando com essas perguntas uma força superior à que o Brasil de fato tem no jogo das relações comerciais globais? Será que o país que, em 2021, ocupava a 25ª posição no ranking mundial dos exportadores de mercadores e cujas vendas ao exterior representam menos de 1,5% das exportações globais pode significar alguma ameaça concreta aos Estados Unidos? Será que, mesmo estando ao lado da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul — os outros integrantes dos Brics —, o país tem força e autoridade para se colocar como uma alternativa viável ao dólar no comércio internacional?
É preciso todo cuidado para tratar do tema. Em primeiro lugar, a posição da moeda americana como referência nas transações globais nunca foi imposta pelos Estados Unidos, mas conquistada pela credibilidade do próprio dólar. Nada impede que dois países utilizem uma outra moeda para fazer suas transações internacionais. O problema é que, para isso acontecer, essa moeda precisa inspirar confiança — e quando se trata de transações internacionais ou de qualquer outro tipo de relacionamento, esse é o tipo do ingrediente difícil de se conquistar e fácil de se perder.
Que país sério aceitaria fechar negócios cotados em moedas que ainda não foram capazes de se mostrar confiáveis? Será que alguém, em sã consciência, aceitaria fechar um negócio em moeda chinesa, quando todo mundo sabe que o governo de Beijing, por maior que seja sua economia, tem o hábito de valorizar ou desvalorizar o yuan sem qualquer critério técnico, com os olhos voltados apenas para o próprio umbigo? Alguém aceitaria levar adiante transações em moedas de países cujos governos não levam a sério os fundamentos do equilíbrio fiscal e que, por sempre gastarem mais do que arrecadam, acabam submetendo seu próprio dinheiro a um processo de desvalorização sistemático e inclemente? É claro que não!

AUTONOMIA
Este é o xis da questão. Para ter o direito de fazer qualquer ameaça que seja levada a sério, Lula deveria, antes de mais nada, criar condições que assegurassem a estabilidade do Real. Para conseguir essa proeza, seria conveniente que, ao invés de sair acusando os Estados Unidos de querer impor sua moeda ao mundo, se inspirar no modelo de gestão monetária que deu ao dólar a credibilidade que o consolidou como a divisa predominante nas relações internacionais. Se o dólar se firmou como moeda de referência para o mercado global foi porque, antes de ser aceito por outros países, sempre foi tratado com respeito por seu próprio governo.
Para início de conversa, nunca na história dos Estados Unidos um presidente da República foi capaz de criticar em público o trabalho do presidente do Federal Reserve, que é o banco central americano. Desde sua criação em 1913, o FED, como é conhecido, tem sempre última palavra no que diz respeito à liquidez, às taxas de juros, à inflação e a todas as variáveis que interferem na estabilidade da moeda. Ao governo, compete única e simplesmente acatar o que a instituição decidir.
Isso significa o seguinte: o governo americano trata com respeito o princípio a autonomia do FED e o presidente do país não faz questão de que o dirigente do órgão seja seu correligionário. Um dos nomes mais emblemáticos que ocuparam o posto, o economista Allan Greenspan permaneceu 19 anos no cargo. Indicado para o posto em 1987 pelo presidente republicano Ronald Reagan, em 1987, Greenspan foi reconduzido ao cargo diversas vezes — duas delas pelo democrata Bill Clinton.
O atual presidente, Jerome Powell, a despeito de seu passado republicano, foi indicado pelo democrata Barack Obama para compor o colegiado de 12 governadores que toma as decisões relativas ao dólar. Indicado por Donald Trump para a presidência, foi mantido no posto pelo democrata Joe Biden e seu mandato irá até 2026. Por lá, não importa se a política monetária é conduzida por um correligionário ou por um adversário. O que importa é se a credibilidade e a estabilidade da moeda estão sendo bem conduzidas.

ESTABILIDADE RELATIVA
E no Brasil, como funciona? Bem... quando concebeu o Banco Central, em 1965, no governo do marechal Castello Branco, o então ministro do Planejamento Roberto Campos entendeu que o presidente do órgão seria indemissível pelo prazo de duração de seu mandato, que não seria coincidente com o do presidente da República — exatamente é como nos Estados Unidos. Essa autonomia, porém, não resistiu sequer à primeira mudança de governo após a criação do BC.
Assim que assumiu a presidência no lugar de Castello, em 1967, o general Costa e Silva demitiu o presidente Dênio Nogueira, que ainda tinha dois anos de mandato pela frente, e o substituiu por Ruy da Silva Leme. É evidente que existe uma relação entre a autonomia do BC e a estabilidade da moeda — e essa relação é claríssima no caso brasileiro.
Desde que foi criado e até 2021 — quando o Congresso restituiu a autonomia do BC, o órgão sempre foi administrado ao sabor das conveniências políticas de cada governante. Nesse cenário, a pressão que Lula vem exercendo sobre o presidente do BC, Roberto Campos Neto, mostra que a política monetária no Brasil ainda está sujeita a pressões políticas — o que em nada contribui para melhorar a reputação do Real no cenário das transações internacionais.

JUROS NAS ALTURAS
Lula teria feito muito mais pela credibilidade da moeda brasileira se, ao invés de fazer as críticas que fez, tivesse chamado Campos Neto para conversar logo no início de seu governo. Também teria ajudado bastante caso tivesse tomado desde o primeiro momento as providências voltadas para a estabilidade fiscal. Ou seja, caso tivesse dado ao BC a segurança necessária para reduzir os juros que, de fato, estão muito elevados.
O presidente, além de não fazer nada disso (pelo menos até agora) sempre que pode tenta contrapor a responsabilidade fiscal — que garante a estabilidade da moeda — com os gastos sociais que seu partido gosta de fazer mesmo sem ter dinheiro em caixa. No discurso que fez em Shangai, ao mesmo tempo em que ele optou por criticar a supremacia do dólar nas transações internacionais, ainda propôs que o NDB, que será presidido por sua indicada Dilma Rousseff — que não demonstrar o menor cuidado com a moeda em sua passagem pela presidência —, passe a liberar dinheiro para que países latino-americanos que nunca trataram suas próprias moedas com respeito — como são os casos da Argentina e da Venezuela — possam continuar gastando o que têm e o que não têm.
Portanto, e ainda que tenha soado como uma provocação aos Estados Unidos, a proposta feita por Lula de se criar um padrão alternativo de ao dólar como referência para o comércio internacional tem o mesmo efeito prático da promessa feita pelo político demagogo da anedota que, durante um comício, assume o compromisso de revogar a lei da gravidade.
Deixando o mundo da fantasia idealizado por Lula e voltando para o mundo real das transações financeiras, é preciso ter claro que uma moeda não se firma no mercado por vontade de quem a criou. Para que isso aconteça, ela precisa estar lastreada em economias sólidas e preocupadas com o equilíbrio fiscal.
Veja, por exemplo, o exemplo do Euro. A criação de uma política monetária continental e de uma moeda única era uma ambição da Comunidade Econômica Europeia desde os anos 1960. Somente em 1979, após uma série de discussões e de estudos em torno da unificação dos sistemas fiscais do continente, foi criado o Sistema Monetário Europeu que, na prática, significou a primeira providência concreta pela unificação das moedas dos países integrantes do bloco.
O passo seguinte se deu 12 anos depois. Em 1991, depois de novos estudos e novas negociações, foi assinado na cidade holandesa de Maastricht o novo tratado da União Europeia, com a previsão do lançamento da moeda única. Mais estudos, mais preparativos e finalmente no dia 1º de janeiro de 1999, o Euro foi lançado como moeda escritural. Três anos depois, ou seja, em 1º janeiro de 2002, a nova moeda começou a circular nos 12 países que inicialmente compunham o bloco. Hoje, circula em 27 países da Europa — e, a despeito da pujança das economias que o adotaram e do rigor com que é administrado, ainda não foi capaz de ameaçar a hegemonia do dólar nas transações internacionais. Se é assim, a ideia lançada por Lula em relação ao dólar não passou de uma provocação. E das mais baratas.