NUNO19MARARTE KIKO

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não terá neste seu terceiro mandato os quatro anos de governo previstos na Constituição — o que lhe daria um total de 1.459 dias para fazer o que prometeu na campanha eleitoral. Para eliminar o incômodo de uma cerimônia de posse no primeiro dia do ano — o que sempre desestimulou a presença na festa de chefes de Estado de primeira grandeza —, Lula ganhou cinco dias extras no Palácio do Planalto. Governará até o dia 5 de janeiro de 2027. Nessa data, ele reassumirá o posto para seu quarto mandato, caso venha a ser reeleito, ou, então, passará a faixa presidencial para o sucessor escolhido pelo povo.
O acréscimo de cinco dias foi decidido ainda em 2021. Na prática, isso significa, apenas, que Lula terá 1.464 — e não 1.459 — dias para cumprir suas promessas de campanha. A mais eloquente delas foi a de garantir quatro refeições por dia para todos os brasileiros, com direito a picanha e “uma cervejinha gelada” no churrascão do final de semana. Até aí, tudo bem. O problema é que, uma meta importante e ambiciosa como essa não permite que se desperdice um único dia com movimentos diversionistas.
Lula completa hoje exatos 77 dias no governo e nada do que ele fez até agora representou um único passo concreto em direção ao cumprimento da promessa. Por menor que pareça, esse número é importante. Ele significa que, até hoje, 5,25% do mandato presidencial já foram embora sem que a sociedade tenha percebido um único movimento efetivo para viabilizar o cumprimento do compromisso. A impressão que se tem é a de que nem o presidente nem qualquer um de seus auxiliares tinha a noção do que deveria fazer depois de conseguir a vitória nas urnas — a não ser continuar falando mal do governo passado.

FERRAMENTA DA OPOSIÇÃO — Talvez porque não tenham muito o que mostrar, os políticos governistas se esforçam para manter em suas mãos a única bandeira de que dispõem para se defender das críticas que recebem: a da comparação com o governo Bolsonaro. E, para conservá-la, rejeitam com toda força a ideia da abertura de uma CPI destinada a investigar as arruaças do dia 8 de janeiro. Proposta pela senadora Soraya Tronicke (União-MS), a CPI tem esbarrado na resistência do presidente da Casa, o indecifrável Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Disposto a defender Lula com o mesmo empenho e a mesma convicção com que defendia os interesses de Bolsonaro em seus primeiros dias no posto, Pacheco tem feito o que pode para impedir a instalação da comissão. Por mais holofotes que ela venha a atrair, no entanto, ela terá um efeito limitado e poderá, no máximo, construir em relação aos acontecimentos lamentáveis vistos na praça dos Três Poderes, em Brasília, no primeiro final de semana do governo Lula, uma versão paralela à oficial.
Será que essa CPI sairá do papel? Isso dependerá mais do desejo da oposição em levá-la adiante do que da capacidade do governo em impedir sua realização. Numa situação de normalidade democrática, a única arma capaz de impedir a instalação de uma comissão de inquérito é a retirada das assinaturas de um certo número de senadores do requerimento que pede a abertura dos trabalhos — e se os signatários não quiserem voltar atrás, os trabalhos não terão início.
A questão é saber até onde será possível chegar com essa discussão. Se o objetivo final for, como parece ser, tirar do governo o monopólio da narrativa sobre os acontecimentos de 8 de janeiro, ótimo. Talvez seja possível, no limite, mostrar que o governo teve sua quota de responsabilidade e nada fez para impedir que os baderneiros entrassem nos palácios e quebrassem tudo o que encontrassem pela frente.
Os trabalhos poderão causar algum incômodo, mas ninguém tem o direito de reclamar disso. Desde a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito instalada no Brasil, no distante ano de 1935 — para investigar as condições de vida dos trabalhadores urbanos e rurais — sabe-se que esse instrumento é uma arma da oposição para encostar o governo contra a parede. Foi assim em todas as CPIs que se conhece. Inclusive naquele palco armado pelo estridente senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) em 2021, que se limitou a reproduzir no senado as notícias que a imprensa vinha publicando sobre as omissões do governo Bolsonaro no enfrentamento da pandemia de covid-19.
A contribuição efetiva daquelas tertúlias para o enfrentamento da pandemia foi zero ou menos do que isso. Mesmo assim, Rodrigues e seus pares cuidaram de manter o assunto em pauta pelo maior tempo que conseguiram. Agora, é a vez da arma ser tentada contra Lula.

PROGRAMA IMPRESCINDÍVEL — De acordo com a oposição, tirar do governo o monopólio da narrativa sobre o 8 de janeiro será importante para expor um fato que, no entender de alguns parlamentares que não rezam pela cartilha do Planalto, pode se tornar desconcertante com o passar do tempo. Esse fato consistiria em remover o biombo atrás do qual o governo esconde uma realidade que vem gerando cada vez mais desconforto: a imobilidade e a falta de rumos do governo federal.
O certo é que o governo pouco fez até agora. Sua medida mais vistosa foi a assinatura, no dia 2 de março, da Medida Provisória que oficializa a bolsa de R$ 600 para as famílias brasileiras em condições de vulnerabilidade (com acréscimos que dependem da quantidade de filhos das mulheres beneficiadas). Trata-se, sem dúvida, de uma providência importante, contra a qual ninguém tem o direito de se insurgir. Mas não custa lembrar, no entanto, que esse valor foi definido não por Lula, mas por Bolsonaro ainda no ano passado.
A verdade é que mais necessário que seja (e ele é imprescindível!), esse programa social — seja ele chamado Bolsa Família ou de Auxílio Brasil — está longe de resolver o problema do país. Para cumprir suas promessas de campanha, Lula precisa promover o crescimento da Economia e até hoje, faltando pouco mais de três semanas para os emblemáticos 100 dias de governo (que se completam no próximo dia 11 de abril), nada indica que o país esteja pronto para ingressar num ciclo virtuoso de crescimento e de geração de renda, empregos e oportunidades.

QUASE UM MILAGRE — Alguns dirão que é cedo demais para cobrar do presidente a prosperidade que ele prometeu ao longo de toda sua campanha eleitoral. Isso, em parte é verdade: Lula ainda tem muito tempo pela frente. Mas o certo é que, neste momento, ele dispõe de menos tempo do que tinha quando tomou posse e quanto mais tempo demorar, menor será sua possibilidade de alcançar o sucesso.
Chegará a hora em que os autoelogios, os discursos vazios e as promessas sem amparo na realidade deixarão de ser suficientes para satisfazer a sociedade. Para dar certo, o governo Lula — que carrega com ele a esperança do país inteiro num futuro mais digno e próspero — precisa saber em que direção está seguindo. Para isso, é preciso colocar todos os 37 ministros da Esplanada para caminhar na mesma direção. Num grupo tão heterogêneo, pouco harmonioso e com agendas tão desencontradas quanto a dos ministros de Lula, fazer com que todos tomem o mesmo rumo é necessário mais do que a habilidade política que o presidente tem de sobra. Exige quase um milagre.
Ao reunir quase todo o grupo no Palácio do Planalto para uma reunião ministerial na terça-feira passada, Lula disse que nenhuma medida deve ser anunciada pelo titular de qualquer uma dessas pastas sem a anuência prévia da Casa Civil. A descompostura passada por Lula aconteceu um dia depois do titular da pasta de Portos e Aeroportos, Márcio França, anunciar um programa destinado a oferecer passagens aéreas a R$ 200 — um valor inferior a US$ 40. Num momento em que um voo da Ponte Aérea entre o Rio de Janeiro e São Paulo dificilmente é vendida por menos de R$ 1 mil, esse é o tipo da proposta destinada ao fracasso e serve apenas para reforçar o caráter populista que muita gente no próprio governo pretende negar.

AMEAÇA DE RETROCESSO — O problema é que, a começar pela própria postura do presidente, muita coisa no governo parece reforçar essa percepção. Nenhuma das providências anunciadas até o momento indica uma orientação conjunta do governo na direção a uma Economia mais próspera e capaz de gerar empregos de qualidade e em quantidade suficiente para impactar de forma significativa as estatísticas sociais. Pior! Providências tomadas por governos passados e que vinham, de certa forma, contribuindo para a recuperação econômica, se veem sob ameaçada de retrocesso. Quer exemplos? Vamos a eles!
O novo Marco Legal do Saneamento, que vinha atraindo investimentos e avançando no sentido de proporcionar a universalização de um serviço essencial para a saúde da população, será alterado e nada indica que a mudança será para melhor. Outro ponto: uma Emenda Constitucional aprovada no final de 2021 permitia que as empresas que assumissem serviços públicos de infraestrutura utilizassem precatórios para pagar pelo direito de exploração das concessões — a chamada outorga. Uma portaria recente da Advocacia Geral da União (AGU) na prática suspendeu essa decisão soberana do Congresso Nacional e, na prática, inviabilizou o uso dos precatórios e desestimulou muitas empresas a manter seus programas.
Um último exemplo: aprovada ainda no governo de Michel Temer, a Lei das Estatais foi importante para manter as empresas públicas a salvo da rapinagem de que foram vítimas no passado. O atual governo, no entanto, quer porque quer voltar atrás e atrelar a gestão das empresas públicas a interesses políticos. Até já conseguiu que o Supremo Tribunal Federal (STF) reduzisse as restrições para o preenchimento dos cargos. Se isso acontecer, alguns investidores perderão a confiança e provavelmente recuarão em sua intenção de implantar projetos no país.
Há outros exemplos, mas é melhor parar por aqui... Seja como for, o caminho que vem sendo trilhado não parece ser dos mais promissores para ativar a Economia do Brasil. A menos que Brasília esteja guardando uma carta poderosa na manga, nada indica que o crescimento prometido por Lula e os empregos que darão ao povo dinheiro para comprar a picanha do churrasco do final de semana estejam a caminho de se tornar uma realidade... Tomara que seja apenas uma impressão. Tomara!...
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