Nada como uma festa com a dimensão no carnaval para deixar claro o tamanho do estrago que a pandemia da Covid-19 produziu na economia do Brasil e, especialmente, do Rio de Janeiro. A cidade, que no ano passado viveu a experiência de ter dois carnavais — o “oficial”, fora de época, e o “proibidão” —, começa a perceber que, no caso da folia, quantidade não é necessariamente sinônimo de qualidade. Somados, os carnavais de 2022 não tiveram a força da folia deste ano, realizada no tempo e na hora certas.
Por toda a cidade, os hotéis estão lotados — como, por sinal, estiveram nos anos anteriores. A questão, porém, é que o dinheiro movimentado pela folia não se resume às diárias que os turistas de outros estados e de outros países investem na hospedagem. Ele também inclui o que se gasta nos restaurantes e nos bares. Inclui os serviços de segurança para os foliões, o transporte dos turistas, as compras nos supermercados e no pequeno comércio e no comércio ambulante. Também leva em conta o que se investe para por as escolas de samba na Marquês de Sapucaí e os ingressos para o sambódromo.
Ou seja, tanto os que sambam na pista quanto os que vão de galeria contribuem para o lucro da festa. Isso sem esquecer os recursos cada vez mais expressivos que o pessoal emprega para botar os blocos na rua. Em resumo, inclui todos os dentes da fantástica engrenagem que se move pela cidade e pelo estado durante o breve reinado de Momo.
A prefeitura do Rio estima que a festa deste ano movimentará algo em torno de R$ 4,5 bilhões — um valor 12,5% superior ao de 2020, último ano em que o som dos tamborins se espalhou pelas ruas da cidade sem as restrições sanitárias impostas pelo combate à pandemia em 2021 e 2022. Desse dinheiro, cerca de R$ 1,2 bilhão virá do carnaval de rua — um segmento que, no passado, era considerado marginal. Tudo isso, junto e misturado, significa mais lucro para os organizadores, mais renda para os trabalhadores, mais receita para o poder público, enfim: mais dinheiro circulando por uma economia que amargou a maior ressaca nos dois anos que atravessou sem curtir sua principal festa em toda sua plenitude.

LADO B
O mesmo otimismo que se vê na capital — onde se realiza o maior carnaval do mundo — se espalha por outros municípios do litoral e da região serrana do Rio (para onde as pessoas muitas vezes vão para fugir da festa). Os hotéis e pousadas da chamada Costa Verde, que inclui Agra dos Reis, Ilha Grande e Paraty, estão lotados. O mesmo acontece com a Região dos Lagos (com destaque para Búzios e Cabo Frio). Considerando tudo isso, fica evidente que o carnaval, além da alegria que a festa representa, traz de volta benefícios financeiros que superam os de qualquer outro evento e que são fundamentais para a economia fluminense.
É lógico que, como tudo que há de bom na vida, o carnaval, como os discos de antigamente, tem um “lado B” que também faz parte da festa. As vantagens financeiras geradas pela folia, é claro, são suficientes para compensar o aborrecimento que o morador da capital e das cidades mais procuradas pelos turistas pode ter quando se depara com uma rua interditada para a passagem de um bloco. Ou com a praia mais lotada do que o habitual. Mas há outros problemas, não tão simples, que precisam ser encarados para que as cinzas que só deveriam vir na quarta-feira não acabem com a folia antes da hora.
Por se tratar de uma festa que, para acontecer, exige aglomeração e descontração, o carnaval exige cuidados extras. É preciso manter os olhos abertos para se prevenir da ação dos punguistas e dos larápios de sempre — que hoje não se limitam a bater carteiras, mas, também, a clonar cartões e aplicar outros tipos de golpes. É preciso, mais do que isso, estar atento às importunações dos que confundem o ar de liberdade que se respira nessa festa e que faz parte da essência do carioca e do fluminense, com o direito de assediar e agredir quem só está lá para se divertir. Ou seja: no carnaval como em tudo na vida, sim é sim, não é não e estamos conversados!

CHUVAS DE VERÃO
Um outro ponto precisa ser observado. Por maior e mais esplendorosa que seja, e por mais vantagens que traga para o Rio, a folia de Momo não pode, de maneira alguma, servir de desculpa para que as pessoas se esqueçam dos problemas que causados por fenômenos que, como o carnaval, acontecem todo ano. O principal deles, como se sabe, são os temporais de verão — que, por mais previsíveis que sejam, sempre pegam as autoridades de surpresa.
Isso mesmo! As primeiras cartas que o Padre José de Anchieta escreveu para seus superiores da Ordem de Jesus depois de chegar ao Brasil em 1553, já mencionavam as chuvas torrenciais que, nos meses mais quentes do ano, caiam sobre a Serra do Mar e causavam enchentes que punham em risco tudo o que encontravam pela frente. De lá para cá, as chuvas continuaram a cair e não perderam a força. Mas o caminho das enxurradas muitas vezes se viu obstruído por construções erguidas em áreas de risco por pessoas que não tinha acesso a um lugar mais seguro para instalar suas moradias.
Na última quarta-feira passada, dia 15 de fevereiro, para citar apenas um exemplo recente, completou-se um ano da tragédia que se abateu sobre a cidade histórica de Petrópolis, na serra fluminense. Castigada pela chuva e com a cobertura natural substituída por construções irregulares, uma encosta da região conhecida como Morro da Oficina deslizou e arrastou com ela dezenas de moradias. O Quitandinha, o Palatinato e o Piabinha, três rios que cortam a cidade, transbordaram, arrastaram carros e ônibus e causaram destruição.
A tragédia de Petrópolis, uma das maiores já vistas no verão fluminense, causou mais de 230 mortes e faz parecer pequena a destruição vista dias atrás no município de São Gonçalo — quando duas pessoas morreram e outras duas continuavam desaparecidas no momento em que este texto foi escrito. Não importa se o número de mortes causadas por tragédias desse tipo se contabiliza por unidades, por dezenas ou por centenas. O que importa é que a existência de uma única pessoa ameaçada por um fenômeno previsível, que se repete ano após ano no estado do Rio de Janeiro, significa que o poder público fracassou em uma de suas atribuições básicas — que é a de garantir segurança e bem estar a todos os cidadãos.

FIM DE TARDE
Atenção! Ninguém aqui está dizendo que a culpa pelo problema é municipal, estadual ou federal. O que está sendo dito é que o problema é conhecido e previsível demais para que não provoque uma mudança de hábitos generalizada nem altere a rotina de quem lida com eles. No calor da comoção pelas mortes em Petrópolis, no ano passado, as autoridades se apressaram em prometer obras de urgência capazes de conter a fúria das águas no Morro da Oficina. Tudo isso para que as cenas trágicas do ano passado não se repetissem nem cobrassem o mesmo preço que cobraram em vidas humanas dos moradores da região.
Pois bem. Um ano se passou e pode-se dizer que o cenário no Morro da Oficina é exatamente o mesmo!
Nada mudou! Se a concentração de chuvas sobre Petrópolis este ano tivesse sido a mesma do verão passado, novos deslizamentos poderiam ter acontecido e mais vidas teriam se perdido. Das obras necessárias para evitar novos deslizamentos, algumas atolaram na burocracia e nem mesmo tiveram o processo de licitação concluído. Outras só foram iniciadas agora, em pleno período de chuvas — quando a prudência, a geologia, a meteorologia e a lei da gravidade recomendam que este não é o melhor momento para esse tipo de trabalho. O ideal seria trabalhar a partir de abril — depois das águas de março fecharem o verão e reduzirem o risco da movimentação de terras numa área sujeita a deslizamentos.
Ninguém, aqui, está querendo estragar a festa, trazendo um assunto pesado como esse para ser tratado neste texto. Um texto que começou exaltando a beleza de uma festa que, ao recuperar seu vigor, injeta ânimo e otimismo numa economia que, nos últimos anos, colecionou mais decepções do que o Pierrot maltratado pela Colombina. O que se pretendeu mostrar foi que não basta chorar pelas vítimas das tragédias. É preciso honrá-las tomando providências para se evitar que se multipliquem o número de mortos de uma tragédia que produz vítimas desde a fundação do Rio.
Antes de se encontrar uma solução para o problema, há uma série de providências que podem ser tomadas. Algumas delas são relativamente simples. Um artigo assinado por Paulo Kendi Massunaga, presidente da Associação dos Engenheiros do Rio de Janeiro e publicado por este jornal na sexta-feira passada, chama atenção para “uma lamentável coincidência” no que diz respeito à capital. Essa coincidência é o “fato de chover normalmente no fim da tarde, quando ainda não foi feita a coleta de lixo pela companhia municipal responsável. Ou seja, é muito lixo pelas ruas que acaba sendo arrastado durante o temporal. Facilmente os bueiros acabam entupidos”.
Algumas providências em relação a isso poderiam ser tomadas. Uma delas, diante da impossibilidade de obrigar a chuva a cair em outro horário ou local, seria antecipar a coleta do lixo em duas ou três horas, fugindo dessa maneira da “coincidência” apontada no artigo. Outra seria cuidar para que as galerias estejam sempre limpas e desobstruídas — para que não haja alagamento por impossibilidade de escoamento.
Medidas de outra natureza também poderiam ser tomadas. Uma delas é reconhecer o caráter de emergência desse tipo de ocorrência e desobstruir não apenas bueiros e galerias, mas, também, os canais burocráticos que muitas vezes representam entraves para a solução do problema. Poderia, por exemplo, ser criado um grupo com representantes dos Tribunais de Contas da União, do Estado e do Município, do Ministério Público, do Executivo e do Legislativo federal, estadual e municipal. Essa comissão teria a obrigação e o poder de tomar providências para apressar o processo licitatório para obras como as de Petrópolis — cujo atraso pode custar vidas e causar transtornos capaz de estragar qualquer festa. Tudo isso para que a alegria do carnaval se estenda além da quaresma e prove, como a letra da marchinha que dá título a este texto, que este ano não precisa ser igual àquele que passou.