Arte coluna Nuno 29 janeiro 2023Arte Paulo Esper

A maior demonstração de selvageria e de falta de compromisso com a vida que pode ser dada por qualquer pessoa que tome conhecimento da tragédia vivida pelos Yanomamis é incluir o drama desses indígenas na disputa ideológica entre a esquerda e a direita que há anos domina a cena política brasileira. O povo Yanomami é um dos mais vulneráveis do mundo. Qualquer providência que se tome em relação a ele deve levar em conta essa realidade. Qualquer tentativa de tirar proveito político de sua situação é, no mínimo, covardia.
Arredio ao contato até mesmo com outros povos indígenas, os Yanomamis vivem há pelo menos mil anos numa área mais extensa do que são hoje o Norte do Brasil e o Sul da Venezuela. Suas únicas defesas e armas de autopreservação, durante séculos, foram o isolamento quase absoluto — que durou até se verem cercados por garimpeiros, madeireiros e traficantes de drogas que invadiram suas terras e os mantiveram sob uma ameaça constante, que agora atingiu seu limite máximo e foi exposta ao mundo como mais uma mancha na reputação do Brasil. A responsabilidade pela degradação das condições de vida do povo Yanomami não é desse nem daquele governo. É do Estado brasileiro.
A cada dia fica mais claro que o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, no bojo da política destrambelhada que adotou em relação à Amazônia, de fato fechou os olhos para o garimpo ilegal, que degradou e contaminou com mercúrio os rios da região e, com isso, privou os Yanomami de seu principal alimento — os peixes. O antigo governo também pecou ao se omitir diante dos mais de 50 pedidos de socorro que teria recebido na reta final de sua administração, com denúncias sobre a crise sanitária, a fome e as condições de vida deploráveis a que o povo Yanomami vinha sendo submetido.
Isso, sem dúvida, merece o repúdio de qualquer ser humano que tenha um mínimo de apreço pela vida. Mas daí a considerar Bolsonaro o único culpado pelas cenas cruéis expostas ao mundo nos últimos dias, e que mostram Yanomamis em condições semelhantes à das vítimas do nazismo nos campos de concentração, significa reduzir o peso da responsabilidade que cai sobre todos os governos que o Brasil teve desde 1976 — ano em que os Yanomamis entraram definitivamente no radar das autoridades do país e, pelo menos no papel, passaram a contar com sua proteção.
Aqui, cabe um alerta! Ninguém pretende comparar a tragédia yanomami com o holocausto que tirou a vida de milhões e milhões de judeus, ciganos e outros povos perseguidos durante a Segunda Guerra Mundial. São tragédias com pesos, dimensões e causas diferentes, mas isso não importa. O que importa é que bastaria a morte de um único Yanomami nas condições expostas ao mundo para despertar o repúdio de todo mundo que se considera civilizado. Não é aceitável que um único ser humano perca a vida em condições degradantes sem que o Estado que deveria protegê-lo aja para evitar a morte por fome ou por falta de condições sanitárias.
No caso dos Yanomamis, o problema se arrasta por muito tempo sem que o Estado brasileiro ou qualquer ONG que se dedica à causa indigenista na Amazônia tenha sido capaz (antes de Bolsonaro sequer pensar em se lançar candidato a presidente da República), de propor uma política sensata, factível e capaz de assegurar a sobrevivência e manter o estilo de vida e a cultura do povo Yanomami. E de garantir a preservação da saúde, da cultura e da dignidade desses indígenas que, na medida do possível, vivem hoje exatamente como viviam mil anos atrás.
A presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhado por vários ministros, na região no final de semana passado, pode ser vista como o ponto de partida para a solução do problema emergencial da fome e das doenças, mostrado de forma dramática pelas imagens de pessoas famélicas, agonizando em redes nas aldeias. Mas os Yanomami precisam de muito mais do que isso. Eles precisam da proteção do Estado, que chegou ao limite da omissão em relação a eles.

TAMANHO DE PORTUGAL — Algumas pessoas argumentam que a solução para o problema desse povo teria que ser compartilhada com o Estado venezuelano — onde vive pelo menos um quarto dos Yanomamis. Isso até poderia fazer algum sentido caso a ditadura de Nicolás Maduro tivesse a decência e assumir a responsabilidade por qualquer causa que não fosse a de se manter de pé à custa do sofrimento e da miséria de seu povo. Outros dizem que o território Yanomami, demarcado e oficializado em 1992, no governo do presidente Fernando Collor, é extenso demais para uma comunidade que tinha apenas 35 mil indivíduos na época do último levantamento populacional, feito em 2011. Com 96 mil quilômetros quadrados, o território é maior do que Portugal.
Esse é o tipo do problema que não pode ser tratado com superficialidade. Dizer que há muita terra para pouca gente pode até fazer algum sentido aos olhos de quem não conhece o modo de vida Yanomami. Eles dependem da terra extensa para viver. Quando saem em busca de alimentos, capturam peixes e colhem vegetais suficientes para alimentar o grupo por apenas um dia. Isso se deve obviamente à impossibilidade de conservar a comida — que no passado existia com fartura em seu território — por longos períodos. Por essa razão, um dia de pesca mal sucedida significa um dia de fome para toda a aldeia. Isso os torna totalmente dependentes de uma floresta saudável e preservada.
Indefeso e sem domínio do repertório de ações que o tornaria mais preparado para lidar com os desafios impostos pelo contato compulsório com o “branco”, esse povo é totalmente dependente do Estado para ter assegurado seu direito à vida. Para ele, a posse de um território extenso e protegido das agressões é condição essencial de sobrevivência. Sem isso, ele estará fadado ao extermínio. A questão é que, para o Brasil, essa preservação é também importante. Não apenas por razões humanitárias, que já seriam suficientes. Mas também por razões relacionadas com a nova ordem econômica mundial.
Qual a importância dos Yanomamis para os outros brasileiros? Seria possível tirar daquela região algum benefício maior do que sua preservação para uso exclusivo dos Yanomamis? Que outro uso poderia ser feito daquela terra senão o de mantê-las nas mãos de seus donos originais?
Dizer, por exemplo, que a terra pode ser usada para a lavoura é uma demonstração cabal de desconhecimento. A agricultura de larga escala necessita de grandes extensões de terras planas — e a área Yanomami se estende por uma região montanhosa. Além disso, as dificuldades logísticas da região inviabilizam qualquer projeto de exploração de grãos em larga escala. Sendo assim, o melhor uso que se pode fazer daquela terra é preservá-la e protegê-la.

LAVRA PREDATÓRIA — A primeira providência a ser tomada é a expulsão dos garimpeiros da região que, por ser rica em ouro e muito pouco vigiada pelas forças de segurança, foi dominada por bandidos que, além de destruir a fonte de alimentos dos Yanomamis, cometeu toda sorte de barbaridades — do estupro ao assassinato a sangue frio — contra o povo. Além disso, é preciso que as Forças Armadas marquem presença na fronteira. De acordo com órgãos internacionais de segurança, a fronteira entre o Brasil e a Venezuela é hoje uma passagem praticamente livre para o narcotráfico que opera em larga escala naquela região e, tanto quanto o garimpo, é uma ameaça permanente ao povo Yanomami. Isso é essencial, mas ainda não resolve o problema.
O Estado brasileiro precisa marcar presença no território. A princípio, o problema seria menor caso a exploração de ouro na região não fosse feita de forma predatória como acontece atualmente. Isso exigiria que o trabalho fosse realizado não por garimpeiros que empregam métodos rudimentares e predatórios de lavra, mas por empresa certificada, que adotasse as melhores práticas para a extração mineral e que, principalmente, pagasse royalties pesados pela operação. O dinheiro seria totalmente utilizado na recuperação das áreas degradadas e em políticas de proteção ao povo Yanomami. Fora dessas condições, o melhor a fazer é pura e simplesmente proibir a exploração e tratar como criminoso qualquer um que pretenda burlar a lei.
Num momento em que o mundo inteiro cobra do Brasil uma mudança na forma de lidar com a Amazônia, entregar um território do tamanho de Portugal a um povo que depende da preservação para manter seu estilo de vida é um ótimo investimento. Ele talvez seja capaz de gerar benefícios imediatos e vultosos, que podem fortalecer a posição do Brasil perante a América Latina e o mundo.
O presidente Lula acertou, em sua recente viagem à Argentina, ao propor providências que fortaleçam o comércio no continente e até mesmo a criação de uma moeda escritural que facilite as transações entre os países da região — uma ideia muito parecida, por sinal, com a que foi apresentada pelo ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, nos meses iniciais do governo Bolsonaro, em 2019. É lógico que o tema precisa ser conduzido com cuidado e qualquer decisão a esse respeito necessita se cercar de cuidados para que a situação fiscal mais do que precária vivida pela Argentina não contamine a Economia brasileira.
Seja como for, a simples menção a esse tipo de solução mostra que o governo está preocupado em buscar para a Economia soluções modernas e que podem ter um impacto muito positivo para a imagem e para o fortalecimento do país. Deveria fazer o mesmo em relação aos Yanomamis— cujas terras e florestas preservadas e monitoradas permanentemente poderiam lastrear, por exemplo, emissões de títulos de crédito de carbono no mercado internacional.
Isso, ajudaria a livrar o país dos efeitos negativos causados pela divulgação das imagens das aldeias Yanomamis transformadas em campos de extermínio pelo descaso de quem deveria zelar pela vida dos indígenas. E ajudaria a gerar recursos para assegurar a sobrevivência e a dignidade de um povo que, se não houver uma mudança radical na forma com que é tratado, pode estar marchando para o extermínio em pleno Século 21.