Um hábito frequente entre os analistas e os políticos brasileiros consiste em manifestar surpresa diante de atos que, a rigor, não deveriam espantar ninguém. Um exemplo disso se deu na semana passada, quando o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP-AL), que demonstrava uma fidelidade inabalável ao presidente Jair Bolsonaro (PL) nos últimos anos, fechou um acordo com o PT, partido do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Lira, que disputará a reeleição para a presidência da Câmara na renovação da Mesa Diretora marcada para fevereiro de 2023, ouviu a promessa de apoio do PT a suas pretensões de permanência no posto. Em troca, se comprometeu a se empenhar para que tudo corra bem com a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que o governo pretende aprovar para ter como pagar o auxílio de R$ 600 no ano que vem.
Existe uma questão importante a se observar nesse fato. A reeleição de Lira será decidida pelos 513 deputados que tomarão posse no dia 1º de fevereiro do ano que vem. Entre eles, e sem considerar o partido a que pertencem nem a força de cada bancada na Casa, 284 já são deputados na atual legislatura. Foram reeleitos e retornarão a seus postos. Os demais 229 estarão chegando, a maioria pela primeira vez, para ocupar o lugar de outros 229 que são deputados hoje e deixarão de ser no dia 31 de janeiro. Para cumprir a parte que lhe cabe no acordo e ajudar Lula a conseguir os 342 votos de que precisa para apoiar a PEC, Lira terá que buscar apoio entre políticos que em menos de dois meses serão ex-deputados.
A disposição de Lira em fechar o acordo, por mais leal a Bolsonaro que ele tenha se mostrado desde que substituiu Rodrigo Maia na presidência da Câmara, há dois anos, não surpreende a ninguém. A princípio, nada de errado com isso. Mudanças de lado para apoiar um governo que está chegando são mais previsíveis em Brasília do que a seca que costuma castigar o Planalto Central entre os meses de maio e setembro. No caso de um político do PP, como é o caso de Lira, isso é menos surpreendente ainda. Ser governista está no DNA dessa legenda desde que ela surgiu com o nome de PDS no bojo da Reforma Partidária de 1979. Desde aquela época, o partido faz tudo o que estiver a seu alcance para estar próximo ao governo —qualquer governo — e desfrutar das vantagens que essa condição proporciona.
O partido e suas lideranças estiveram na base de apoio de todos os presidentes que passaram pelo Palácio do Planalto desde o general João Figueiredo. Com um detalhe: o PP sempre demonstrou uma fidelidade exemplar quando o governo está no auge de sua força, mas nunca hesitou em pular para o outro lado quando os ventos mudam e o presidente começa a perder prestígio. Ele agiu assim com Figueiredo, com José Sarney, com Fernando Collor, com Itamar Franco, com Fernando Henrique Cardoso, com Lula, com Dilma Rousseff e com Michel Temer. Por que faria diferente com Jair Bolsonaro?
DOIS COELHOS COM UMA CANETADA
A questão é que, desta vez, Lira encontrou pela frente um presidente que, mesmo tendo sido derrotado nas últimas eleições, parece disposto a governar até o último dia. E que, além disso, às vezes parece agir movido mais pela emoção do que pela razão. Na quarta-feira passada, um dia depois do PT ter anunciado o apoio a Lira, o presidente usou sua caneta para dificultar a vida do presidente da Câmara. E fez isso com requintes de crueldade ao atingir o grupo de parlamentares que pratica a política do “toma lá dá ca” em seu ponto mais sensível: mandou cancelar a execução das emendas do “Orçamento Secreto” que ainda estão para ser pagas. A decisão do presidente é a de que, enquanto ele tiver mandato, não sairá dos cofres públicos um único centavo para o pagamento das emendas de interesse dos aliados de Lira — que foi o padrinho e fiador do “Orçamento Secreto”.
Com esse gesto — que, por sinal, também não surpreende a ninguém —, Bolsonaro acertou dois coelhos com uma canetada só. Para começar, deixou Lira desgastado junto aos deputados e aos partidos com quem tinha compromisso na atual, e não na próxima legislatura. Além disso, empurrou para o próximo presidente o ônus de honrar os compromissos do “Orçamento Secreto”, que Lula tanto criticou ao longo da campanha. O presidente da Câmara, é claro, acusou o golpe. Ele sabe que, sem a execução da emenda, seu poder sobre a bancada se reduz.
Queixando-se do que considerou uma traição, ele tentou sem sucesso conversar com Bolsonaro — que não atendeu nem retornou seus telefonemas. Também não foi bem sucedido na tentativa de falar com Valdemar Costa Neto, presidente do PL, o partido que cedeu a Bolsonaro a legenda para disputar a presidência. E que, em troca, formou a maior bancada na Câmara na próxima legislatura. Como última saída, Lira ameaçou romper definitivamente com Bolsonaro num momento em que ele precisa mais do presidente do que o presidente precisa dele.
Quem acompanha com um mínimo de atenção os movimentos dos políticos em Brasília sabe que a política depende do momento e, neste instante, a ameaça de Lira não assusta a Bolsonaro — que, ao congelar as emendas secretas já deixou claro que já não vê Lira como aliado. O fato, porém, é que, por mais previsível que seja, o roteiro, alguns detalhes desse enredo não deixam de ser originais.
LENHA NA FOGUEIRA
Negociações em período de transição são comuns e necessárias. Inclusive, já houve no passado casos em que o governo que saindo fez ao que estava chegando favores que passaram por cima de todos os desentendimentos que havia entre o presidente em exercício e o presidente eleito. A situação atual, porém, é diferente da que se viu em outras transições.
A impressão que se tem hoje é a de que há um só Congresso para dois governos que estão funcionando simultaneamente. E, mais do que isso, cada um desses governos parece disposto a fazer tudo que estiver a seu alcance para atrapalhar a vida do outro. Num cenário como esse, o melhor que o presidente do Congresso teria a fazer seria trabalhar para apaziguar os ânimos. No entanto, seus movimentos recentes dão a entender que ele parece disposto a colocar mais lenha na fogueira para, depois, tirar alguma vantagem do incêndio que se formará.
A pergunta é: não teria sido melhor para o PT e para Lira manter reservas em torno dos entendimentos e deixado para anunciar o acordo em janeiro, depois que Bolsonaro já não estivesse mais no Planalto? Se o que estivesse em causa fosse a eleição da Mesa Diretora da Câmara, a resposta fatalmente seria sim. Acontece, porém, que o problema está longe de ser esse. O fato é que nunca antes na história deste país, um governo que está chegando dependeu tanto dos deputados que estão saindo como o que tomará posse no dia 1º de janeiro de 2023.
QUEBRA CABEÇAS
Para que Lula tenha os recursos que garantirão o cumprimento das promessas feitas em campanha, e que são essenciais para um bom início de governo, ele precisará aprovar uma Emenda à Constituição e isso exige dois terços dos votos em cada Casa do Congresso. Ou seja, precisará dos votos de 342 dos atuais 513 deputados. É aí que entra a força dos 229 parlamentares que estão saindo. Ainda que todos os 284 deputados reeleitos concordassem em apoiar o pedido de Lula e votar pela aprovação da PEC (o que é impossível) o presidente eleito ainda teria que obter 58 votos dos que estão saindo para formar a maioria de que necessita.
Que garantia os deputados que estão saindo e que viram as emendas secretas de seu interesse congeladas terão de que o próximo governo cumprirá o compromisso que foi assumido pelo atual? Nenhuma. Esse quebra-cabeças só será resolvido se Lula conseguir, antes da posse, fazer com que deputados que não terão mandato no ano que vem (e que, portanto, perderão valor no tabuleiro em que se decide o jogo político) acreditem que ele honrará em janeiro os acordos de um “toma lá dá cá” que foram feitos para beneficiar Bolsonaro. O presidente eleito é um craque da política e certamente saberá conduzir esse processo. Mas a solução desse problema ficou mais difícil do que parecia há uma semana, não há dúvida.
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