Era provável, mas não era desejável, que a previsão feita neste espaço na semana passada se confirmasse. Mas não tão cedo. Com o país dividido meio a meio pela menor diferença eleitoral já registada na história (de pouco mais de dois milhões de votos em favor de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que ficou com 50,9% do total), os ânimos se mantiveram exaltados após o fechamento das urnas. E tão logo o resultado foi anunciado, surgiram as primeiras notícias de bloqueios nas rodovias do país.
Foram tantos que ninguém sabe dizer exatamente o número de trechos interrompidos. A Polícia Rodoviária Federal, acusada pela imprensa de fazer corpo mole diante dos manifestantes, afirmou em nota ter coibido quase 800 tentativas de obstrução do tráfego em pelo menos 12 estados do país. Outros, algo em torno de 200 e 300 bloqueios, foram encerrados por iniciativa dos próprios manifestantes depois que o presidente Jair Bolsonaro divulgou um vídeo com um apelo para que fossem interrompidos.
O fato é que os bloqueios existiram e, neste clima que tomou conta do país, podem ser retomados a qualquer momento ao longo dos próximos meses. Assim como, no passado, militantes petistas ocuparam a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para pedir a cabeça do ex-presidente Fenando Henrique Cardoso antes que ele tomasse posse para seu segundo mandato, pode ser que os militantes bolsonaristas façam outros protestos até a posse.
Seja como for, e inconformados com a derrota milimétrica para o agora presidente-eleito Lula, apoiadores de Bolsonaro se valeram da mesma tática que os ativistas do Movimento dos Sem Terra e de outras organizações esquerdistas se utilizavam no passado — e que eles tanto criticavam. Fizeram barricadas, atearam fogo em pneus, interromperam o trânsito, impediram a livre circulação de pessoas e de mercadorias e causaram prejuízos em diversos pontos do país. Se os protestos se prolongassem, a conta, mais uma vez, estouraria nas costas da parte mais vulnerável da população — que ficaria sem combustível, veria aumentar o preço dos alimentos e, no limite, teria dificuldades para trabalhar.

VOLTA AO PASSADO
As manifestações nas estradas foram as mais incômodas, mas não as mais grotescas que se viram no país desde o dia 31 de outubro, o day after da eleição. Na quarta-feira, dia 2 de novembro, data que a tradição religiosa reserva para o culto à memória dos mortos, milhares de pessoas foram às ruas e demonstraram que, no Brasil recente, a principal morte a se lamentar é a do bom senso. Aos gritos de “eu autorizo”, militantes bolsonaristas vestidos com camisetas amarelas e empunhando a bandeira nacional se reuniram para estimular as Forças Armadas a intervir na política e assumir o controle do Estado.
A maior de todas essas concentrações foi a que aconteceu no Rio de Janeiro, em frente ao Palácio Duque de Caixas, que abriga o Comando Militar do Leste. Não poderia haver local mais emblemático. O prédio — que em 1964 era a sede do Ministério da Guerra — aquartelou os comandantes que tramaram e deflagraram o movimento que derrubou o presidente João Goulart. Os militantes atuais, ocuparam a praça em frente ao prédio no dia de finados , assim como ocuparam outras diante de diversos quartéis do país, e pediram a reedição daquele movimento.
É preciso ter a cabeça em outro planeta para imaginar que os militares, a esta altura do Século 21, estariam dispostos (para recordar as palavras do deputado Eduardo Bolsonaro, ditas antes da eleições de 2018) a mobilizar “um cabo e um soldado” num jipe para fechar o Supremo Tribunal Federal ou qualquer outra instituição brasileira. Por mais que a oposição tenha apontado, ao longo dos últimos quatro anos, o risco de as Forças Armadas agirem como uma espécie de “guarda pretoriana” do governo, o certo é que não foram elas, mas os eleitores de quatro anos atrás, que puseram e mantiveram Bolsonaro no poder.
Por outro lado, é preciso reconhecer que uma parte dos militantes situacionistas também levaram essa possibilidade a sério essa possibilidade e sonharam com uma quartelada ao melhor estilo das republiquetas latino-americanas do século passado. Isso, porém, não acontecerá. Por, pelo menos, três razões. A primeira é que os militares são os primeiros a rejeitá-la. Eles nunca demonstraram o menor interesse nessa solução nem fizeram, desde a redemocratização, qualquer movimento que sugerisse a intenção de um golpe. Será que a “autorização” dada pelos bolsonaristas é suficiente para tirar as tropas dos quartéis. Certamente, não.
A segunda é que, em 1964, os militares não agiram sozinhos — e, sem apoio civil, a chance de um golpe dar certo é tão remota quanto a do restabelecimento da monarquia no Brasil. Naquele momento, eles contaram com a simpatia, com o apoio e com a adesão da classe média, de empresários e da imprensa da época que os ajudaram a tramar e, em seguida, a legitimar o golpe. Se alguns desses órgão de imprensa, por conveniência ou por convicção, mudaram de ideia nos anos seguintes e passaram a defender a democracia, é uma outra história. O certo é que, em 1964, eles eram aliados fiéis do movimento que pôs uma pedra sobre o Estado democrático de direito no país.
Por último, mas não menos importante, existe a razão econômica. A economia brasileira, ao longo das últimos 58 anos, tornou-se mais diversificada, menos concentrada no Sudeste, mais internacionalizada e menos disposta a acertar uma imposição de cima para baixo do que era naquele momento. Um país como este tem muito a perder caso perca a conexão com o mundo. Qualquer tentativa de romper a ordem institucional no momento atual afastaria o país do mercado internacional e tornaria ainda mais difícil a conquista do objetivo que deveria ser a prioridade de qualquer governante neste momento.

SALVAÇÃO NACIONAL
Que objetivo é esse? Elementar: deixar a crise para trás, fazer o país crescer, gerar empregos e oferecer oportunidades de uma vida mais digna e mais próspera a toda população, que merece acesso de qualidade à educação, à saúde, à alimentação, à segurança, ao lazer e à habitação. Para alcançá-lo serão necessárias providências que, até segunda ordem, não estão na alça de mira do governo recém-eleito, assim como não estavam na do candidato derrotado. Quanto mais tarde o governo e a sociedade acordarem para esta realidade, mais difícil e onerosa será a solução.
Em resumo, o que está sendo proposto aqui é uma medida radical, que leve em conta a gravidade e a profundidade da crise que o país atravessa e implante algo parecido com um “Governo de Salvação Nacional”. Nele, todos terão que abrir mão de alguma demanda para que, juntos, todas construam ma solução de longo prazo. A busca dessa solução deve partir da constatação de que, com apenas 2.139.645 votos a separar o primeiro do segundo colocado, no universo dos mais de 124 milhões de brasileiros que foram às urnas, o equilíbrio é delicado e todo cuidado é pouco.
Qualquer tentativa de impor a pauta mais radical do lado vencedor sobre os adversário derrotado servirá apenas para prolongar esse clima de disputa que, embora não tenha força suficiente para desencadear um golpe de Estado, pode dificultar o encontro das soluções dos problemas que de fato interessa. Ou então — o que pode ter consequências ainda mais nefastas para o país e sua população —, alimentar a prática do Toma-Lá-Dá-Cá que só interessa aos políticos espertalhões. E essa prática, pelo visto, já ganhou forças antes mesmo do novo governo começar.

“TCHUTCHUCA DO CENTRÃO”
Quer um exemplo? Pois bem. Para cobrir os gastos necessários para pagar as promessas feitas ao eleitor durante a eleição, a equipe de transição para o novo governo, comandada pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, já sabe que precisará de uma suplementação orçamentária vultosa. O pagamento do Auxílio Brasil de R$ 600 e de outras promessas eleitorais exigirá gastos não previstos na proposta de orçamento, que ficarão entre R$ 160 bilhões e R$ 200 bilhões.
Para conseguir esse “estouro de teto” sem cair na malha da Lei de Responsabilidade Fiscal (ou seja, sem cometer, já no primeiro ano de governo, o crime que serviu de base para o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff) será necessária a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional que, antes mesmo da posse, pode transformar o governo Lula em refém do famigerado “Centrão”. Em troca da aprovação da medida que permitirá a Lula bancar o Auxílio Brasil e pagar outras promessas de caráter assistencial, essa turma, que não brinca em serviço, já mandou avisar que exigirá a manutenção do Orçamento Secreto.
O problema é que Lula também prometeu em sua campanha acabar com o Orçamento Secreto, um mecanismo pelo qual os parlamentares têm autoridade para decidir sobre bilhões e bilhões em gastos públicos. Essa prerrogativa, em qualquer país que leve a sério o equilíbrio fiscal, é exclusiva do poder Executivo. Mas como, infelizmente, esse não é o caso do Brasil, e como o que não falta entre nós é político procurando um jeito de facilitar seu acesso aos cofres públicos, o mais provável é que os lulistas, por mais que tenham festejado quando alguém chamou Bolsonado de “Tchutchuca do Centrão”, logo verão o presidente que elegeram seguir pelo mesmo caminho. É esperar para ver.