Hoje, é mais fácil encontrar um torcedor argentino que considere Pelé melhor do que Maradona do que um eleitor brasileiro que confie nos institutos de pesquisa
Os números da pesquisa para o segundo turno das eleições presidenciais, divulgados pelo instituto Ipec na quarta-feira passada, parecem confirmar uma velha máxima do humorista Aparício Torelly, o Barão de Itararé. O problema do Brasil, para ele, não era a “falta de persistência, mas a persistência na falta”. Os dados do Ipec foram encomendados pela TV Globo e mostram Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com 55% das intenções de voto, dez pontos à frente de Jair Bolsonaro (PL), que tem 45%.
Nada indica que o levantamento, por si só, esteja errado — e muito menos que tenha sofrido qualquer tipo de manipulação capaz de dar a Lula, neste momento, a dianteira que ele ficou longe de conseguir no primeiro turno. O problema não é esse. O problema é que os números dessa pesquisa foram divulgados sem que houvesse qualquer explicação convincente sobre as falhas gritantes que houve com as pesquisas da reta final do primeiro turno. Sendo assim, como acreditar nesses números?
O debate sobre a credibilidade das pesquisas é antigo, costuma esquentar a cada eleição e atingiu sua temperatura mais elevada este ano. O artigo publicado neste espaço no domingo passado apontou falhas metodológicas e prováveis vícios na construção da amostra de eleitores consultados pelo Ipec — que não refletiriam exatamente a correlação entre os grupos da sociedade.
A amostra do instituto teria superestimado os grupos propensos a apoiar Lula. Sendo assim, qualquer tendência anunciada com base nos levantamentos estaria contaminada por um vício de origem capaz de distorcer o resultado final. Falhas semelhantes se repetiriam em outros institutos. Foram tantas que, hoje, é possível afirmar, considerando a “margem de erro”, que é mais fácil encontrar um torcedor argentino capaz de admitir que Pelé foi melhor do que Maradona do que um eleitor brasileiro que acredite nos institutos de pesquisa eleitoral.
“AÇÃO ESTRATÉGICA”
Ao invés de reconhecer a falha e manifestar a intenção de corrigi-la, os institutos tentaram jogar a culpa na realidade — e fizeram isso com base em argumentos tão fajutos que, ao invés de esclarecer, ajudaram a alimentar as dúvidas sobre sua competência. Ou sobre a seriedade de seu trabalho. E para aumentar as suspeitas, as pesquisas produzidas em parceria com órgãos de imprensa assumidamente hostis ao presidente Jair Bolsonaro (PL) estão entre as que mais erraram.
Na última pesquisa divulgada antes do primeiro turno, o Datafolha, que pertence ao mesmo grupo empresarial do jornal Folha de S. Paulo, cravou a vitória de Lula sobre Bolsonaro por 50% a 36% dos votos válidos — resultado que liquidaria a fatura a favor do petista já no primeiro turno. O Ipec, que é parceiro da TV Globo desde quando ainda se chamava Ibope, previu 51% para Lula e 37% para seu adversário.
Os dois levantamentos foram divulgados com estardalhaço por toda a imprensa brasileira na véspera da eleição. Na contagem final, no entanto, a votação de Lula, de 48% dos votos válidos, ficou abaixo do previsto pelos dois institutos. Os 43% dados a Bolsonaro, por sua vez, superaram todas as previsões. As explicações para o fenômeno foram mais estranhas do que a discrepância em si. A presidente do Ipec, Márcia Cavallari atribuiu o fato a “uma ação estratégica” do eleitor interessado em “impedir que a eleição acabasse no primeiro turno”.
Luciana Chong, do Datafolha, foi um pouco mais longe. Segundo ela, houve entre o meio dia de sábado (quando foi fechado o levantamento do instituto deu vitória de Lula ainda no primeiro turno) e o domingo da eleição uma forte migração de eleitores de Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB) não para Lula — como se esperava — mas para Bolsonaro. “Então, o voto útil que não aconteceu a favor de Lula aconteceu a favor de Bolsonaro na reta final”, disse ela.
CREDIBILIDADE DA FERRAMENTA
Ao cometer um erro da dimensão que cometeram e, mais grave ainda, ao tentar negá-lo com argumentos que soam como um insulto à inteligência de quem os escuta, os institutos estão, como se diz na gíria, atirando no próprio pé. E comprometendo a credibilidade de seu ganha-pão, uma ferramenta que, bem utilizada, é um instrumento valioso para medir tendências eleitorais e, também, para definir políticas públicas e orientar decisões comerciais e administrativas ancoradas na opinião da sociedade.
Ninguém aqui está defendendo que esses ou quaisquer outros institutos devessem se basear em amostra que privilegiassem, por exemplo, o segmento dos evangélicos — onde o prestígio de Bolsonaro é superior ao de Lula. O ideal seria que os números das pesquisas não pendessem para um lado nem para o outro e refletissem aquilo que realmente se passa na cabeça do eleitor.
A pergunta é: qual o efeito dessa distorção? A divulgação dos números que davam a dianteira a Lula pode ter, por exemplo, aumentado a taxa de abstenção. Muitas pessoas podem ter desistido de sair para votar e enfrentar filas bem maiores e mais lentas do que as dos anos anteriores por considerar que não valia a pena participar de uma eleição que, afinal de contas, já estava decidida. Além disso, os eleitores que não estavam dispostos a votar em Lula nem em Bolsonaro talvez tenham desistido de votar diante da campanha pelo “voto útil” que foi alimentada, justamente, pelos números das pesquisas. Como seu voto não faria diferença, que sentido teria depositá-lo na urna?
HERANÇA MALDITA
Para recuperar o prestígio que jogaram pela janela no primeiro turno deste ano, os institutos precisam afinar seus instrumentos e apresentar resultados que, no segundo turno, se aproximem do que as urnas mostrarão. Se não fizerem isso, estarão dando razão a todos que os criticaram e, talvez, comprometendo seu próprio futuro.
A mesma oportunidade talvez não tenham os políticos que, depois de criticá-los de forma veemente no primeiro turno, passaram a defender o voto em Bolsonaro ou, mais ainda, em Lula no segundo turno. Cada cidadã ou cidadão tem, é claro, o direito de dar seu voto a quem desejar, de acordo com as próprias convicções, com os próprios interesses e com as próprias conveniências. Mas, com toda sinceridade, é difícil de entender os movimentos de políticos que, de uma hora para outra, parecem ter deixado de acreditar naquilo que defendiam com ardor poucos dias atrás.
Tome-se, por exemplo, os casos da senadora Simone Tebet (MDB) e do ex-governador Ciro Gomes (PDT). O dois passaram a campanha inteira sem medir palavras para criticar Lula. Ciro chegou a se referir ao ex-presidente como “chefe de quadrilha”. Simone, por sua vez, foi inclemente com a falta de propostas do ex-presidente, que parecia querer que a população desse a ele “um cheque em branco”. Pior ainda fazem os políticos tucanos que, ao invés do silêncio, resolveram declarar votos no PT.
A senhora, que votou em Simone Tebet, estaria disposta seguir a recomendação de sua candidata e votar em Lula? E o senhor, que votou em Ciro? Acha que ele está certo ao apoiar o candidato que tem criticado desde as eleições de 2010? Nada de errado com Lula nem com o PT — que sempre denunciaram a “herança maldita” que teriam recebido do PSDB desde que assumiram o governo pela primeira vez, em 2003. O problema é que, ao apoiar o petista, Simone, Ciro e os tucanos queimam os últimos navios que poderiam levá-los de volta ao eleitor que os abandonou justamente por não terem sido capazes de apresentar uma saída para a polarização entre Lula e Bolsonaro.
VOTO ÚTIL
Os 4,9 milhões de votos em Simone (que tinha como vice a senadora Mara Gabrilli, do PSDB) e os 3,6 milhões dados a Ciro foram dados por pessoas que se mantiveram fiéis a suas escolhas mesmo tendo sido submetidas na reta final à campanha pelo “voto útil”, que praticamente exigiu que votassem em Lula já no primeiro turno. A campanha foi intensa e desrespeitosa com o direito individual de escolha que acabou indicando uma tendência: quem tinha possibilidade de votar em Lula com base no argumento de que Bolsonaro é pior do que ele já fez isso no primeiro turno.
A decisão de apoiar o petista talvez não tenha efeito sobre o futuro político de Ciro. Com 64 anos, ele poderia muito bem voltar a disputar a presidência em 2026 — mas já anunciou publicamente que fez a última tentativa em 2022. É melancólico, portanto, que se despeça da política pedindo que seus eleitores esqueçam as críticas que ele se cansou de fazer a Lula e, mais ainda, a seu vice, o ex-tucano Geraldo Alckmin.
O caso de Simone é, talvez, mais delicado. Com 52 anos, ela teria a reeleição praticamente garantida caso quisesse continuar no Senado — mas preferiu se lançar à presidência. Para isso, precisou vencer as resistências de um partido retrógrado, cujos caciques se dividiram entre Lula e Bolsonaro apenas para ter o direito de se aliar a qualquer um que vier a vencer as eleições do dia 30
Resta saber como essa decisão será recebida pela base eleitoral de Simone Tebet. Como toda região do agronegócio, o Mato Grosso do Sul, o estado da senadora, mais do que bolsonarista, é antipetista. A decisão que ela tomou agora certamente será cobrada em seus próximos voos eleitorais. Seja como for, dar apoio a Lula ou a Bolsonaro no segundo turno é um direito de qualquer cidadã ou cidadão — inclusive de quem disputou a presidência no primeiro turno. Será que isso será útil a Lula?
É possível dizer que a eleição de Lula depende mais do caminho que sua campanha seguirá agora do que dos apoios que vier a angariar. Para conseguir os votos que faltaram para a vitória no dia 2, Lula precisa mudar o discurso, apresentar propostas e mostrar sinceridade ao negar os argumentos do “nós contra eles” que o PT sempre utiliza em suas campanhas. Precisa pedir desculpas sinceras pelos erros do passado — algo que nunca fez — e se lembrar do velho ditado que diz que não se atrai moscas com vinagre, mas com mel. Do contrário, corre o risco de ver o favoritismo que sempre lhe sorriu durante a campanha pender para o lado de Bolsonaro na reta final.
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