Nuno Vasconcellos: "O voto é uma espécie de procuração que passamos para alguém que agirá em nosso nome. Nos últimos anos, as pessoas se habituaram a olhar para as casas legislativas de Brasília como redomas sob as quais são tomadas decisões pelas quais o eleitor não tem a menor responsabilidade. Tem sim!"Daniel Castelo Branco/ Agência O DIA

Ao contrário das ditaduras, que perdem um pouco da força a cada erro, as democracias são capazes de se fortalecer quando alguma de suas instituições comete um equívoco. Ao contrário dos ditadores, que acham legítimo adotar medidas discricionárias motivadas apenas pelos benefícios que seu governo que obter com elas, as autoridades de uma democracia costumam ser cobrados caso suas decisões pareçam ter sido tomadas com base apenas nos próprios interesses. Enquanto nas ditaduras, o que vale é o silêncio, ainda que obtido à força, nas democracias o que importa é o debate — ainda que às vezes ele possa parecer acalorado demais.
Dito dessa maneira, e sem qualquer conexão com algo concreto, conceitos como esses não passam de filosofia miúda. Entretanto, quando utilizados para ilustrar um fato, ganham consistência e passam fazer sentido. É o caso, por exemplo, das conclusões que se pode tirar após a operação autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e conduzida pela Polícia Federal na terça-feira da semana passada.
O episódio foi fartamente noticiado pela imprensa, mas, para efeito de clareza, não custa voltar a descrevê-lo. Com a justificativa de coibir a disseminação de atitudes vistas como ameaçadoras ao processo eleitoral, Moraes, que acaba de assumir a presidência do TSE, autorizou ações de busca e apreensão nos endereços pessoais de alguns empresários conhecidos. Além disso, determinou o bloqueio das contas bancárias dos integrantes do grupo.

'DEFESA EXPLÍCITA'
A decisão do ministro, pelo que se comenta, se baseou numa reportagem assinada pelo colunista Guilherme Amado, do portal de internet Metrópoles, de Brasília, feita com base em mensagens trocadas num grupo privado do aplicativo Whatsapp. “A defeasa explícita de um golpe, feita por alguns integrantes, se soma a uma postura comum a quase todos: ataques sistemáticos ao Supremo Tribunal Federal (STF), ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE)” e a quaisquer pessoas ou instituições que se oponham ao ímpeto autoritário de Jair Bolsonaro”, escreveu o jornalista.
Sem se dar ao trabalho de investigar a natureza do grupo, que se chama Empresários & Política, praticamente toda a imprensa brasileira, no primeiro momento, assumiu como verdadeiras as afirmações de Amado. E foi com base nelas, apenas nelas, que Moraes, teria autorizado a operação. O Ministério Público, que por lei deve se manifestar em ações dessa natureza, sequer foi consultado.
A lista de denunciados é composta pelos empresários Afrânio Barreira, da rede de restaurantes Coco Bambu; André Tissot, do Grupo Sierra; Ivan Wrobel, da Construtora W3; José Isaac Peres, da rede de shopping Multiplan; José Koury, do Barra World Shopping; Luciano Hang, da rede de lojas Havan; Marco Aurélio Raymundo, o Morongo, da confecção de artigos de surf Mormaii e Meyer Nigri, da Tecnisa. Os integrantes desse grupo jamais fizeram segredo nem tanto da simpatia por Bolsonaro — mas de sua aversão a tudo o diz respeito ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a seus apoiadores.
O texto do Metrópoles se referia a uma discussão iniciada por Koury, do Barra World Shopping. Diante de comentários sobre os resultados das pesquisas de intenção de voto para as eleições presidenciais deste ano, ele disse que prefere um golpe à volta do PT ao poder.

ENREDOS SEMELHANTES
Esse enredo não começou a ser escrito agora. Ele é anterior às eleições de 2018 e nesse debate, dependendo do narrador, a razão muda de lado com a maior facilidade. Nesse ponto, lembra o roteiro de Glauber Rocha para seu filme O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de 1969. Nele, o personagem Antônio das Mortes, vivido por Maurício do Valle, anos depois da vitória sobre Corisco (mostrada no clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol) vai a um vilarejo perdido no sertão para enfrentar o cangaceiro Coraima, vivido por Lourival Pariz.
Tanto Antônio das Mortes quanto Coraima acreditavam estar fazendo o melhor para o sertão. O primeiro, por perseguir e matar cangaceiros. O outro, por enfrentar os coronéis, os latifundiários e seus jagunços. No meio dessa luta, quem sofria era o povo... Essa é a semelhança com o enredo da batalha atual. Os dois lados se julgam com a razão e um culpa o outro lado pelos excessos no campo de batalha. No meio deles, o eleitor é bombardeado por todos os lados e sofre para formar sua opinião.
No embate entre Moraes contra o grupo de empresários, os dois lados estão certos, dependendo da maneira que se olhe a cena. E antes que me acusem de ficar em cima do muro em torno de uma questão tão sensível — que, ao fim e ao cabo, diz respeito ao duelo eleitoral em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pelo PT, enfrenta o presidente Bolsonaro, do PL — vou logo me explicando: a análise de um episódio como esse não pode ser feita ao sabor do mesmo estado de ânimos que o motivou. É preciso tirar a paixão de cena e por a razão para funcionar.

'VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA'
Os apoiadores de Bolsonaro podem dizer (e aliás, estão dizendo) que Moraes agiu com parcialidade e rigor desnecessário contra os empresários — sendo que um deles, Luciano Hang, da Havan, que integra o grupo, sequer havia se manifestado na discussão iniciada por Koury. Ou seja: estaria sendo punido pelas ideias que defende e não por participar do ato que motivou a operação. E mais: ainda que esse ato pudesse ser visto como crime — algo que, para os apoiadores do presidente, não tem qualquer cabimento —, a providência em relação a ele deveria ser tomada por um juiz de primeira instância. Afinal, nenhum desses empresários ocupa o cargo que lhes dê foro no STF.
“Crimes contra o Estado Democrático de Direito pressupõem uma violência ou grave ameaça, contudo, não se tem notícia que os empresários (senhores de 60, 70 e 80 anos) praticaram essas condutas contra qualquer Poder da República”, diz uma mensagem que circulou depois da operação.
Os apoiadores de Lula, por sua vez, aprovaram o ato de Moraes. Ao invés de avaliar a legalidade da decisão, dizem que qualquer medida no sentido de se evitar a disseminação de fake news e de se preservar a democracia é válida. E que, na condição de presidente do TSE, o ministro nada mais fez do que agir contra pessoas que tramavam contra a democracia. Para os mais inflamados entre os militantes da esquerda, o simples fato de criticar Lula e defender Bolsonaro é suficiente para transformar uma pessoa em golpista.

AÇÃO CONCRETA
Como colunista, como empresário e como cidadão, acompanho essa batalha com muito interesse. Até porque sou integrante do grupo Empresários & Política, em que as mensagens foram trocadas. Trata-se de um grupo que reúne mais de 70 empresários e, embora muitos defendam pontos de vista que possam ser considerados “conservadores” ou “de direita”, nem todos são bolsonaristas. Alguns até fazem críticas ácidas ao presidente.
Pela mesma razão que aceitei o convite para participar do Empresários & Política, também participo de grupos identificados com posições do centro-esquerda. Entrei naquele grupo por concordar com as duas regras que orientam os debates. A primeira é que todos ali são absolutamente livres para se expressar e apresentar suas ideias. A segunda é que tudo o que for dito naquele ambiente não pode ser levado para fora do grupo. As discussões devem, pelo menos deveria ser assim, começar e terminar ali dentro. Eu mesmo travei debates com os defensores de ideias mais conservadoras e nem por isso fui excluído do grupo ou desenvolvi inimizade com qualquer um deles. Pelo contrário, ganhei respeito e confiança.
Se faço referência a esse fato é porque jamais (vou repetir: jamais!) acompanhei ali uma única discussão que fizesse, como afirma o jornalista do Metrópoles, “a defesa explícita de um golpe”. Mesmo a frase atribuída a Koury, dentro do contexto em que foi dita, está mais para um recurso de retórica do que para a expressão de uma intenção golpista.
Ainda que pudesse ser considerada mais do que um exagero verbal, ela não se materializou em qualquer ação de articulação ou financiamento de atividades golpistas — como fizeram, por exemplo, os empresários que apoiaram o movimento militar de 1964 no Brasil (entre eles, muitos que, depois, passaram a se dizer defensores da democracia). Sendo assim ela não pode, segundo um grupo respeitável de juristas, ser considerada hostil à democracia.

SISTEMA CONFIÁVEL
Todos os temas tratados no Empresários & Política, ainda que gerem discussões acalorados, são postos à prova dentro do próprio grupo. Foi, por exemplo, de um debate travado nesse ambiente que recolhi alguns dos elementos que me levaram a escrever o artigo publicado neste espaço no último dia 31 de junho, em que discuti a segurança das urnas eletrônicas.
Ouvi argumentos dos dois lados, conduzi minhas próprias pesquisas sobre o tema e, no final, argumentei que o sistema de votação no Brasil é seguro e confiável (embora em nenhum lugar do mundo exista um processo eleitoral que possa ser considerado 100% livre de fraudes). Depois de publicado n’O Dia, o artigo foi postado naquele grupo e, mesmo defendendo uma posição diferente da que Bolsonaro expressou na reunião com os embaixadores no Palácio do Planalto, não recebi uma única crítica.
Voltando ao cerne da discussão, que é a operação ordenada por Moraes, insisto num ponto importante. Qualquer afirmação tirada do contexto em que foi dita e transformada em notícia — ou melhor, em denúncia — corre o risco de virar um pagode. Naquilo que me diz respeito, afirmo com todas as letras: eu detesto as fake news. Mas se tiver que escolher entre elas e um ato de força patrocinado pelo Estado, que impeça a livre circulação das ideias, eu fico com as fake news.
Entendo que essa minha preferência não me torna defensor de fake news. Creio que o debate e a boa argumentação acabam por desmascarar qualquer tentativa de disseminar notícias falsas e tirar proveito delas. Essa preferência não me torna, insisto, um defensor desse tipo de prática. Da mesma forma, o fato de pessoas ligadas à esquerda terem dito publicamente que “preferiam” a facada levada por Bolsonaro em Juiz de Fora na campanha de 2018 o tivesse matado e impedido que ele chegasse à presidência não fez com que o único juiz acusasse alguém por defender a prática de assassinatos como arma política.

TERMOS INCONVENIENTES
Não se discute aqui o mérito da decisão do ministro, que merece todo meu respeito, mas suas consequências. Ao invés de comemorar, as pessoas contrárias a Bolsonaro e a seu grupo deveriam estar preocupadas com os desdobramentos eleitorais dessa atitude — que, ao final, acabarão por beneficiar o grupo de empresários e dar mais projeção a suas ideias. Moraes não é do tipo de magistrado que se dobra a pressões, mas, assim como qualquer juiz do mundo, ele pode formar sua convicção a partir dos humores do ambiente que o cerca.
Está cada vez mais claro que, em Brasília, partidos e parlamentares, sem representatividade suficiente para ver suas ideias transformadas em leis, têm abusado do expediente de recorrer à Justiça para tirar proveito político das decisões que vierem a ser tomadas. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), por exemplo, não perde uma oportunidade de agir assim — e chegou a defender a prisão dos empresários por entender que, em liberdade, eles poderiam atentar contra a democracia. Resta saber o que é mais grave e atentatório à democracia: defender as ideias que professa ou querer mandar para a cadeia os que pensam diferente.