O acirramento da disputa entre os radicais da direita e da esquerda no Brasil está chegando a um ponto preocupante. É preciso, com urgência, apaziguar os ânimos
Durante muito tempo, os brasileiros se habituaram a olhar para a falta de segurança e para a violência que amedronta a população como se o problema começasse e terminasse no Rio de Janeiro. A realidade, porém, é muito mais dolorosa do que essa. Sem a intenção diminuir o tamanho do problema que a população fluminense enfrenta com as ações de criminosos, é preciso colocar o dedo na ferida e dizer que o país inteiro está padecendo do mesmo mal. É triste, mas a verdade é que o clima de insegurança vem se espalhando e trazendo junto com ele uma ameaça à estabilidade social do país.
A verdade é que o mito da cordialidade natural do brasileiro, descrito por Sérgio Buarque de Hollanda em seu clássico Raízes do Brasil, publicado pela primeira vez nos anos 1930, caiu por terra já há algum tempo. O país inteiro parece contaminado pela ideia de que, na falta de um Estado capaz de por a casa em ordem, cabe a cada um buscar por seus próprios meios as soluções para seus problemas. Ainda que, para isso, precise apelar para a ignorância e para a violência — que normalmente andam juntas. Isso tem sido a causa de crimes evitáveis e com razões cada vez mais fúteis que acontecem pelo país afora.
Mata-se por qualquer motivo e o perigo que existe por trás disso é muito maior do que pode parecer à primeira vista. A ideia de que é inútil apelar para as autoridades para resolver eventuais desavenças, somada à sensação de impunidade que encoraja os mais exaltados a resolver suas rixas por seus próprios meios, parece empurrar o país para uma Guerra Civil. Pode ser que haja algum exagero nisso! Mas, com os nervos à flor da pele como estão, a qualquer momento pode ser aceso um estopim capaz de descambar para uma revolta coletiva e daí para uma confusão monumental é um passo.
O ideal é que isso não aconteça. Ou melhor: pode até existir por aí algum maluco capaz de acreditar que a solução para os problemas nacionais pode estar num confronto generalizado. O melhor, no entanto, é apelar para o bom senso, fazer força para conter a exaltação e agir com todas as forças para que o clima de violência não se espalhe ainda mais pelo país e, principalmente, pela política. Todo brasileiro, neste momento, precisa por a mão na consciência e entender que ninguém tem a ganhar se essa tensão que existe agora aumentar na medida em que a eleição for se aproximando.
AMBIENTE CONTAMINADO
O recurso de se apelar para a valentia e resolver as divergências políticas a bala não é recente no Brasil. Ela sempre existiu e foi associada ao coronelismo que, mesmo após o fim da República Velha, sobreviveu por muito tempo nos rincões mais remotos do país. Todos já ouvimos histórias de bandos de jagunços que, a mando de algum chefe político, espalhavam o medo para garantir nas urnas os resultados que desejavam.
Também sempre houve no país políticos valentões, que achavam natural se apoiar nas armas para demonstrar sua força. No estado do Rio de Janeiro, muito antes das atuais milícias passarem a agir como um poder político paralelo, assentado sobre as ameaças e a truculência de seus integrantes, ficaram famosos casos como o do ex-deputado Tenório Cavalcanti. Conservador e populista, ele circulava por seus redutos em Duque de Caxias carregando a inseparável metralhadora “Lourdinha” escondida sob a capa preta. Se entendesse que deveria usá-la para resolver alguma desavença, usava sem a menor cerimônia. O problema é que esses exemplos, que deveriam ficar num passado cada vez mais distante, parecem estar voltando com força total.
Se o ambiente atual não estivesse tão contaminado pelo clima de ódio político que vem se espalhando pelo país, talvez não fosse necessário tantas voltas para falar do assassinato do guarda municipal de Foz do Iguaçu, Marcelo Arruda. Ele foi morto a tiros pelo policial penal federal Jorge Guaranho no sábado passado, durante a comemoração de seus 50 anos. Arruda era tesoureiro do diretório municipal do PT em Foz do Iguaçu. Sua festa de aniversário tinha como tema a possível volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao poder.
Guaranho, simpatizante assumido do presidente Jair Bolsonaro se achou no direito de acabar com a festa por sua própria conta. Chegou sem ser convidado, bateu boca com Arruda e, depois de ter sido expulso do local, voltou armado. Com sua pistola funcional — e, portanto, legal — ele atirou no aniversariante, que também utilizou a arma funcional para revidar. O petista morreu no local. O bolsonarista, em estado grave, foi levado para o hospital.
Como não poderia deixar de ser, o crime comoveu o país e causou indignação na maioria da população que, seja da esquerda ou da direita, abomina a banalização da violência e não gostaria que as divergências políticas chegassem ao ponto que infelizmente têm chegado com uma frequência assustadora. A imensa maioria da população não está nem aí para a simpatia que os esquerdistas mais extremados têm pelo governo da Venezuela ou de Cuba, assim como também não se importa com a preferência dos aliados mais radicais do atual governo manifestam por políticos autoritários e regimes de força. Mas, da forma com agem os radicais dos dois lados, assuntos como esses têm presença cada vez mais destacada no debate eleitoral.
Aí é que está o xis da questão. Por mais barulhentos que sejam, os radicais de um lado e do outro, que são capazes de protagonizar situações de violência em nome de suas posições políticas, são uma minoria. Se repararmos bem, notaremos que eles formam uma minoria mesmo entre os 20% da população que votariam em Lula em qualquer circunstância. O mesmo vale para os outros 20%, se tanto, que fecham com Bolsonaro sem pensar duas vezes. Ou seja, são a minoria da minoria. Mesmo assim, seu poder destrutivo pode ser enorme.
FAKE NEWS
A grande maioria da população, claro, nada tem a ganhar com isso. Tudo o que uma pessoa comum deseja é um emprego decente, salário em dia, moradia digna, serviço de saúde eficiente, boas escolas públicas para os filhos, transporte público de qualidade e sensação de segurança. Para as alas mais radicais dos dois lados, porém, as necessidades reais do dia a dia parecem secundárias e o aprofundamento das divergências ideológicas se mostra muito mais importante do que as propostas para conter a estagnação da economia, controlar a inflação, gerar empregos de qualidade em grande quantidade e voltar a crescer.
O pior de tudo é que as minorias barulhentas defendem suas ideias com tal estardalhaço que deixa a maioria silenciosa sem espaço ou sem disposição para defender seus pontos de vista. A pergunta é: por que não aparece alguém capaz de representar esse grupo? Por que não surge alguém para falar em nome dos que sofrem com os efeitos de uma crise que, queiram ou não os petistas, começou com os equívocos econômicos da ex-presidente Dilma Rousseff e, queiram ou não os bolsonaristas, se aprofundou com os do atual governo?
A verdade é que, enquanto não surgir um homem ou uma mulher capaz de falar em nome desse grupo e de aglutiná-lo a ponto de mostrar que é mais forte e poderoso do que os extremos dos dois lados, o clima de confronto se aprofundará e casos como o de Foz do Iguaçu — independente da ideologia de quem puxe o gatilho ou de quem perca a vida — correm o risco de se tornar cada vez mais frequentes.
Sim. Na medida em que as eleições se aproximam, percebe-se no ar uma tentativa de se atribuir motivação política a qualquer ato de violência que se cometa no Brasil. A situação chegou a tal ponto que houve até mesmo uma tentativa de ligar o anestesista Giovanni Quintella Bezerra, preso por estuprar uma mulher durante o parto em São João do Meriti, na Baixada Fluminense, ao presidente Jair Bolsonaro — fato que não se confirmou.
Foi, evidentemente, um erro intencional dos antibolsonaristas (ou uma fake news para usar a expressão corrente), motivado pelo clima de confronto que o país está vivendo. Na mesma linha, Bolsonaro também errou ao associar o ato criminoso de Bezerra à ideologia que o anestesista teria assimilado na escola. “O que mais foi ensinado na faculdade para ele? Qual era a ideologia dessas universidades?” perguntou Bolsonaro em conversa com um grupo de apoiadores na terça-feira passada.
O presidente não ganha nada se envolvendo nesse debate — a não ser o aumento da simpatia daqueles que estão dispostos a votar nele faça chuva ou faça sol. O mesmo vale para o ex-presidente Lula. Situações como essas deveriam merecer um “basta!” sonoro dos líderes políticos. Mas isso, infelizmente, nunca acontece e os dois favoritos a chegar ao segundo turno nas eleições de outubro parecem até tirar proveito desse clima de confronto.
A cada dia que passa fica mais evidente que Bolsonaro e Lula podem até ganhar alguma coisa com essa situação — até porque, ao mantê-la, um sempre pode jogar nas costas do outro a culpa por tudo o de ruim que existe no Brasil. O certo é que o clima de confronto permite que ambos se esquivem do debate que realmente interessa e livra tanto um quanto o outro de dizer como pretende resolver os problemas do Brasil — como se a população não precisasse participar da discussão sobre seu próprio destino.
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