Um fato intriga (ou, pelo menos deveria intrigar) a todos os que analisam o panorama eleitoral procurando enxergar não apenas a corrida pela presidência da República — mas por todos os cargos em disputa. Esse fato é: o eleitor brasileiro é, acima de tudo, um desconfiado. Na hora do voto, ele se recusa a colocar todos os ovos na mesma cesta. A escolha de um político de esquerda para a presidência nunca o impediu de votar em um nome mais identificado com a direita para o governo do estado. E vice-versa.
Da mesma forma, o fato de digitar na urna eletrônica o número de um político de direita para o governo não o impede de votar num defensor das bandeiras da esquerda para a Câmara Federal ou para a Assembleia Legislativa. Tudo pode ser diferente nessas eleições, mas até aqui esse tem sido um hábito recorrente e há muitas explicações para ele. Parte do problema pode ser atribuído, por exemplo, à confusão que reina no quadro partidário brasileiro.
Com 32 siglas autorizadas a funcionar sem que haja clareza em relação às linhas que as separam, estranho seria cobrar do eleitor a coerência que falta aos políticos que lhe pedem o voto. Mas essa não é a única explicação para esse fenômeno; o eleitor brasileiro já agia assim muito antes da proliferação de partidos se tornar a bagunça que virou.
Nas eleições presidenciais de 1960 — as últimas que houve antes do movimento militar de 1964 — ficou famosa a dobradinha Jan-Jan. Tratava-se de uma aliança informal, construída de baixo para cima, que deu a presidência da República a Jânio Quadros (que tinha o apoio da antiga UDN) e a vice-presidência a João Goulart, o Jango, filiado ao PTB. Na época, os partidos não lançavam chapas fechadas que elegiam o presidente e o vice ao mesmo tempo. Os cargos eram disputados separadamente. O eleitor da época nem ligou para o fato dos partidos que apoiavam Jânio e Jango terem divergências profundas e de os dois serem inimigos figadais. Os colocou juntos no poder.

DENSIDADE ELEITORAL
No caso específico das eleições deste ano, existe um fenômeno que se espalha com maior ou menor intensidade pelas 27 unidades da federação: a escolha do nome para a presidência da República nem sempre beneficia o candidato a governador com quem ele tem afinidades políticas. A possibilidade de termos um governador que não afinado com o presidente que vier a ser eleito é especialmente rica no três estados de maior densidade eleitoral do país.
O primeiro deles é São Paulo, com seus 34,6 milhões entre os 156 milhões de eleitores, ou 22% do total do país. Depois, Minas Gerais, com 16,3 milhões de eleitores, ou 10% do país. Em seguida, o que mais nos interessa, o Rio de Janeiro, com 12,8 milhões de eleitores ou 8% do país.
“Se as eleições fossem hoje”, como se costuma ouvir nas divulgações das pesquisas de intenção de voto, 40% dos eleitores do Brasil teriam no governo de seu estado alguém que não rezará pela mesma cartilha do presidente da República. Falando por hipóteses, vamos supor, conforme mostrou a pesquisa Datafolha divulgada na última quinta feira, que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva vá com o presidente Jair Bolsonaro para o segundo turno. Embora eu, particularmente, olhe as pesquisas com alguma desconfiança, é pouco provável que isso aconteça.
Ainda falando por hipótese, vamos imaginar que Lula saia vencedor. Nesse caso, ele poderá ter que conviver com Tarcísio de Freitas ou Rodrigo Garcia no governo de São Paulo. Qualquer um deles, ainda conforme as pesquisas, tende a vencer o atual líder das pesquisas, o petista Fernando Haddad, no segundo turno das eleições. Em Minas Gerais, o atual governador Romeu Zema, que também não reza pela cartilha de Lula, tem 52% da preferência do eleitorado e deve, pelos números atuais, liquidar a fatura já no primeiro turno. No Rio, o governador Cláudio Castro tem 31% das intenções de votos, à frente do deputado Marcelo Freixo, com 26%.

TRABALHAR JUNTOS
O fato é que, faltando menos de um mês para a disputa eleitoral e ainda que isso seja possível, é cada vez menos provável que o cenário sofra uma alteração mais significativa — a ponto de incluir no radar eleitoral alguém que até agora não perfilou entre os favoritos. Isso significa que o próximo presidente deve ser Lula ou Bolsonaro. A pergunta é: o que acontecerá com o Rio caso o ex-presidente Lula seja eleito e o governador Cláudio Castro, identificado como bolsonarista, chegue ao poder? Ou, ainda, o que acontecerá caso Bolsonaro seja eleito e Marcelo Freixo, com suas posições progressistas, chegue ao governo do estado?
A resposta é simples: uma vez no governo, não restará ao presidente, quem quer que seja ele, nem ao governador, independente do nome que venha a ser eleito, outra possibilidade que não seja a de trabalharem juntos para recuperar a economia estadual que foi mais devastada pelos desacertos dos últimos anos. Pela importância do Rio no cenário nacional e pelas vantagens de sua economia (puxada por setores estratégicos como a indústria de óleo e gás e por vocações indiscutíveis, como o turismo de massa), o Brasil tem muito a ganhar quando o Rio vai bem. E muito a perder quando o Rio vai mal.
A questão é: como conseguir fazer com que adversários históricos trabalhem juntos? Em primeiro lugar, é preciso não esquecer de que, no final das contas, estamos falando de política e, quando as divergências nesse campo são conduzidas em alto nível, todos saem ganhando. Se o alinhamento automático com o Palácio do Planalto, por um lado, pode garantir ao governador condições privilegiadas de diálogo com o poder nacional, o fato de os dois não falarem a mesma língua, por outro lado, permite reivindicações mais firmes por providências que gerem benefícios para o estado.
A história está aí para nos mostrar que isso é possível. O fato, por exemplo, de ser um crítico de primeira hora do presidente Fernando Collor de Mello, no início dos anos 1990, não impediu que o governador do Rio, Leonel Brizola, obtivesse vantagens superiores às que foram concedidas a outros governos estaduais comandados por políticos que apoiavam a administração federal desde o primeiro momento. Àquela altura, é bom lembrar, o caixa federal estava praticamente zerado e não havia recursos para quase nada. Mesmo assim, Brizola foi a Collor, pediu, negociou e conseguiu, por exemplo, financiamento para a implantação da Linha Vermelha.
Por menor que pareça para quem a vê nos dias de hoje, é preciso recordar das circunstâncias em que aquela obra foi tocada. Vital para desafogar o trânsito na Avenida Brasil, a Linha Vermelha foi revolucionária em sua época não apenas pelo projeto de engenharia que permitiu sua construção em tempo recorde mas, também e principalmente, por se tratar do primeiro contrato para financiamento de infraestrutura assinado pelo BNDES. Todos os funcionários do governo federal que se envolveram na negociação reconhecem que o papel desempenhado por Brizola naquele momento foi fundamental para que o Rio tivesse um projeto daquela envergadura num momento em que praticamente não havia obras federais em andamento no país.

VANTAGENS ESTRATÉGICAS
Por histórias como essa é possível afirmar que uma eventual vitória de Lula, com Castro no governo estadual, pode, ao invés de gerar problemas, trazer benefícios para o Rio. Na mesma medida, a vitória de Bolsonaro com Freixo no Palácio Guanabara também não seria, por si, só, um problema. Pelo contrário. Pode ser até uma solução num momento em que o país inteiro precisa crescer e o Rio, além das vantagens estratégicas que oferece, tem necessidades mais urgentes do que a dos demais estados.
Isso mesmo! Embora seja um dos estados mais ricos do país, o Rio precisa se livrar dos problemas que têm impedido seu crescimento. Para isso, o estado precisa ter clareza em relação a uma agenda de prioridades que deve ser posta em prática e levada ao governo federal independente dos nomes que venham a ser eleitos.

DESTEMOR POLÍTICO
A prioridade número 1, na qual o próximo governador precisa depositar toda a força do mandato que vier a receber das urnas, é a questão fiscal. O Rio de Janeiro carrega uma dívida pesadíssima com a União, decorrente de problemas que se arrastam desde a fusão mal conduzida de 1975. Isso mesmo: há quase meio século, o estado do Rio, com todo seu potencial de arrecadação e toda sua capacidade de gerar riquezas, não tem autonomia para investir em projetos voltados para a área social, para a infraestrutura e para a segurança.
Independentemente de quem venha a ser eleito, o novo governador do Rio precisa se valer do mesmo destemor político que deu a Brizola autoridade para negociar com a União no início dos anos 1990. E que permitiu ao Rio obter vantagens que, depois, foram estendidas ao país inteiro.
Uma sugestão, nesse sentido, é a de se apoiar no peso do estado para liderar uma campanha nacional em que os governadores exijam do governo federal não apenas condições especiais ou redução no valor do pagamento. Mas o perdão puro e simples das dívidas que consomem boa parte das receitas estaduais.
Não importa o valor atual dessas dívidas. Somadas e cobertas pelo Tesouro, o perdão não geraria grande pressão sobre o Tesouro Nacional. Por outro lado, ele significaria um alívio enorme para os caixas estaduais. O importante será criar uma regra que impeça a utilização dos recursos liberados por esse mecanismo para a cobertura das despesas de custeio. Eles devem ser totalmente destinados para investimentos capazes de contribuir para a geração de empregos e para ajudar a nossa economia a se mover.
Outro ponto que o novo governador, independente de quem seja, precisa trabalhar em sintonia com o governo federal, independente de quem seja eleito, é o da segurança. Já passou da hora de percebermos que a falta de articulação entre os órgãos federais e os órgãos estaduais responsáveis pela segurança do cidadão tem apenas um beneficiado: o crime organizado.
Quanto mais tempo demorarmos a colocar em prática uma estrutura unificada, com uso intensivo de inteligência e ferramentas modernas de tecnologia, mais tempo manteremos a população do Rio refém das quadrilhas que dominam, principalmente, as comunidades mais vulneráveis. Tudo isso, posto dentro de um planejamento estratégico que indique ao Rio a direção em que ele deve crescer, pode fazer uma diferença enorme. E ajudar a fazer com que o eleitor recupere a fé na política e se torne menos desconfiado em relação aos políticos.