A ameaça da equipe de transição a leis bem sucedidas, como a do Saneamento, são muito mais nocivas ao novo governo do que as criticas de Lula ao mercado financeiro
As primeiras semanas do processo de transição têm sido marcadas por debates que, quanto mais se aprofundam, mais impedem que se se acenda a luz da esperança que o brasileiro esperava ver com a chegada do novo governo. O maior exemplo disso é o rumo que está tomando o debate em torno da Proposta de Emenda Constitucional, que a equipe do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva vem negociando com o Congresso. O objetivo declarado da PEC da Transição, como vem sendo chamada a medida, é obter recursos para o indispensável programa destinado a garantir um mínimo de comida na mesa das camadas mais vulneráveis da população.
Debater se o programa deve voltar a se chamar Bolsa Família, nome que recebeu ao ser criado no dia 9 de janeiro de 2004, no primeiro mandato presidencial de Lula, ou se manterá a identidade de Auxílio Brasil, que recebeu o presidente Jair Bolsonaro no dia 2 de abril de 2020 é, por si só, uma demonstração da mania de se perder tempo com debates secundários quando todas as energias neste momento deveriam estar concentradas nos pontos essenciais. Outra discussão fora de foco, e que contribui para dar a impressão de que tudo vai de mal a pior, gira em torno do valor pedido pelo governo para obter a segurança orçamentária necessária para bancar esse programa.
Defender essa suplementação não significa necessariamente, como os adversários de Lula insistem em dizer, demonstrar desapreço pelo princípio da responsabilidade fiscal. Dependendo da forma como o dinheiro suplementar venha a ser tratado pelo novo governo, os R$ 170 bilhões que estão sendo solicitados podem, no final das contas, não ter qualquer efeito nocivo sobre o equilíbrio das contas públicas no país.
Mas, no final das contas, a PEC da Transição pode acabar não tendo qualquer efeito negativo sobre as contas públicas do país. Esses R$ 170 bilhões parecem uma soma extraordinária de recursos são mesmo. Esse dinheiro equivale, numa conta superficial, a mais de uma vez e meia do orçamento de R$ 97,4 bilhões que o governador Cláudio de Castro espera ter para pagar todas as despesas do estado do Rio de Janeiro em 2023. Quem, no entanto, olhar com mais atenção e menos paixão política para as contas públicas brasileiras perceberá que esse número, por si só, não passa de uma gota no oceano fiscal brasileiro.
Calma! Ninguém está sugerindo, aqui, que esse dinheiro, por se tratar de um percentual discreto das contas federais, não deva ser tratado com zelo! Esta coluna sempre demonstrou apreço pelo trato correto do dinheiro do povo e não há razão para mudar de opinião só porque o governo mudou! Esse dinheiro, como já se disse, é essencial para as medidas governamentais de combate à fome. Justamente por isso, é necessário explicar com clareza o impacto dessa medida sobre as contas nacionais.
CANELADAS NO MERCADO
Vamos ao que interessa. A suplementação de R$ 170 bilhões proposta pela PEC da Transição nada mais é do que uma autorização para que o governo emita títulos da dívida pública. Uma vez emitidos, eles serão adquiridos pelo “mercado” — o mesmo “mercado” que, nos últimos dias, levou muitas caneladas do presidente eleito — e convertidos em dinheiro que, por sua vez, será usado para abastecer os cofres públicos.
É essencial que o governo mantenha essas operações sob o controle e não abuse desse mecanismo para não cometer o mesmo equívoco dos governos populista da Argentina —que lançaram mais títulos do que as condições fiscais do Estado permitiam e empurraram seu país para um buraco que parece não ter fundo. Se, porém, a capacidade de pagamento do Estado não for afetada e os títulos emitidos hoje forem resgatados no prazo marcado, não há problema algum em se apelar para esse mecanismo. Pelo contrário. Ele é útil, moderno e adequado a uma gestão pública eficiente.
Os R$ 170 bilhões previstos da PEC da Transição são perfeitamente suportáveis pela realidade fiscal brasileira. Numa conta apressada, eles equivalem a mais ou menos 1,7% do PIB, que é de mais ou menos R$ 10 trilhões. Seu impacto sobre o estoque da Dívida Pública que, de acordo com dados da Receita Federal, girava em torno de R$ 6 trilhões em setembro deste ano, é, portanto, muito baixo.
Mesmo um crescimento modesto do PIB, como os 2,76% previstos no Boletim Focus, do Banco Central, de novembro, somado ao 0,7% estimado para 2023, já seria suficiente para diluir o impacto desses R$ 170 no estoque da Dívida. Além disso, há uma outra medida de política monetária que pode ajudar ainda mais a aliviar o peso dessa conta sobre o orçamento. Trata-se da redução da taxa Selic — que atualmente está em estratosféricos 13,75% ao ano.
É lógico que nenhuma medida em torno da taxa de juros deve ser tomada de forma atabalhoada. Mas se existe um consenso entre os economistas brasileiros é o de que a Selic está muito acima do patamar necessário para conter um eventual estouro da inflação. Há espaço para queda e essa realidade, com certeza, já foi captada pelo radar da equipe do economista Roberto Campos Neto que é, e pelo menos pelos próximos dois anos, continuará sendo, o presidente do Banco Central independente.
PODER DE COMPRA
Isso, na prática, significa o seguinte: a redução gradual de dois e meio ou três pontos percentuais na taxa nos primeiros meses do governo significará um alívio enorme para o caixa federal e praticamente fará desaparecer todo e qualquer efeito negativo que possa ser originado pela PEC da Transição. Mais do que isso, permitirá que o governo cumpra sem maiores esforços todos os compromissos que eventualmente tenha assumido em seus programas de inclusão e ainda tenha recursos para investimentos que ajudem a economia a crescer. Entre esses investimentos, além das obras de impacto social, estão os projetos de infraestrutura essenciais para o desenvolvimento do país.
Como se vê, portanto, os R$ 170 bilhões pedidos pelo governo podem, se tudo der certo, não ter qualquer impacto significativo sobre as contas do país. A pergunta óbvia diante dessa afirmação é: e se não der certo? Ou, ainda pior: e se raciocínios como esse, de que os R$ 170 bilhões podem ser facilmente absorvidos pela realidade fiscal do país, derem margem a novos e ainda mais vultosos pedidos de suplementação?
Se essa moda pegar e a solução passar a ser utilizada pelo governo para suprir toda e qualquer necessidade orçamentária que surgir, chegará o momento em que os cofres públicos não resistirão. Caso isso venha a acontecer, todo esforço pelo equilíbrio fiscal feito até aqui irá por água abaixo. O resultado, nesse caso, será o descontrole da inflação. Se isso acontecer, o prejuízo não será do “mercado” criticado por Lula. Os prejudicados serão justamente aqueles que Lula diz defender com o aumento de gastos.
Os prejudicados, no final das contas, serão os atendidos pelos programas assistenciais que verão o dinheiro da Bolsa ou do Auxílio que estiverem recebendo perder valor a cada mês sem que o governo consiga vier em seu socorro. Serão os assalariados — que, como já aconteceu no Brasil num período que parecia ter ficado para trás — verão o poder de compra de seu salário se reduzir a dia após dia.
Serão, ainda, os pequenos empresários que, impossibilitados de acompanhar a alta generalizada de preços e o aumento das taxas reais de juros farão demissões e fecharão as portas de seus negócios. Serão, finalmente, as médias empresas que verão sua competitividade cair diante da valorização das principais moedas estrangeiras que normalmente acontece nesse tipo de situação e também correm o risco de não resistir.
Quem mais ganhará, além do “mercado” que tira seu lucro das expectativas criadas no ambiente econômico e sabe lucrar com a alta ou com a baixa do dólar, são os grandes exportadores de commodities — inclusive os do agronegócio. Não deixa de ser irônico: esse grupo que nunca escondeu sua preferência por Jair Bolsonaro pode vir a ser um dos poucos que estarão a salvo caso o governo Lula perca a mão e não consiga controlar as contas e promover o crescimento.
NÃO SE MEXE NO QUE DÁ CERTO
No final das contas, o que sobra de tudo o que foi dito até agora, é que o novo governo tem tudo para dar certo. Para isso, o que ele não pode fazer é queimar a largada ao criar, desde antes da posse, um clima de tensão que dá a impressão que tudo está indo de mal a pior. Um dos maiores erros que Lula e sua equipe poderiam cometer, agora, é oferecer a seus adversários o combustível que eles precisam para manter os ânimos inflamados, manter o país em clima de política eleitoral e, nos limites da democracia, criar os constrangimentos que dificultem a vida do novo governo.
Alguém deveria informar ao presidente eleito que essa história de ficar a toda hora batendo no “mercado” soa como uma sinfonia aos ouvidos do “pessoal da Faria Lima” — numa referência à avenida de São Paulo que hoje abriga os operadores mais afoitos das mesas de investimentos. Lula é experiente o bastante para saber que, se dólar subir e a bolsa cair, esse pessoal lucra. Se acontecer o contrário, lucra também.
O maior prejudicado por esse frenesi que tem tomado conta da praça por esses dias, e que ajudaria a manter o clima de nervosismo e reforçar o otimismo necessário para dar ao novo governo a tranquilidade para implantar suas políticas, será justamente o novo governo. Na equipe de transição de Lula, porém, tem gente que não perde a oportunidade de abrir mão do silêncio e criar animosidades mesmo antes de tomar posse. Alguns apoiadores de Lula deveriam manter silêncio em torno de suas escolhas ideológicas e se comprometer a não mexer no que vem dando certo.
ESGOTO A CÉU ABERTO
Veja, por exemplo, o caso de Guilherme Boulos (PSOL-SP). Eleito deputado federal com pouco mais de 1 milhão de votos, ele foi chamado para integrar a equipe de transição do governo e sempre que a oportunidade se oferece, ele não perde a chance de dar uma declaração que em nada ajuda o presidente eleito. Na semana passada, por exemplo, ele manifestou a intenção de mexer em um dos mais bem sucedidos programas do governo de Jair Bolsonaro.
Boulos falou e não foi desautorizado por ninguém que o novo governo pretende mexer no Novo Marco Regulatório do Saneamento. A lei, que foi sancionada em 15 de julho de 2020, tem por objetivo melhorar as condições de saúde e higiene de mais de 100 milhões de brasileiros que não dispõem de uma rede de esgoto e mais de 35 milhões que não têm acesso a água tratada.
Antes da implantação do Marco Regulatório, os investimentos da União, dos estados e dos municípios em programas de saneamento giravam em torno de R$ 4,5 bilhões por ano. Desde que a lei passou a valer e que as empresas estatais de saneamento perderam os privilégios que tinham, perto de R$ 100 bilhões já foram destinados ao setor. Isso gerou milhares de empregos e contribuiu para a melhoria das condições básicas de higiene de uma população que quase 20 milhões de pessoas.
A abertura do setor para as empresas privadas, no entanto, parece ter agradado ao futuro deputado Boulos — que, ao incluir o Marco do Saneamento entre seus alvos, dá a impressão de preferir ver crianças expostas ao risco de contaminação pelo contato com esgoto a céu aberto do que vê-las bem atendidas por um empresas privadas de saneamento, concedidas e fiscalizadas pelo Estado.
Esse é o ponto que interessa. Em termos efetivos, o efeito negativo da ameaça feita por Boulos de rever o Marco do Saneamento é muito mais nociva à população brasileira do que os conceitos que Lula emite sobre o mercado brasileiro. Se Lula quiser tomar posse no clima de otimismo e esperança que prometeu ao eleitor, ele precisa escolher se governará para todos os brasileiros ou se vai dar ouvidos apenas aos grupos mais radicais de seus velhos aliados. Esse é o xis da questão.
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