O processo de transição avança e, faltando pouco mais de um mês para a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em seu terceiro mandato na presidência da República, ainda não é possível perceber com clareza o rumo que o governo tomará a partir de janeiro. Algumas declarações feitas por membros destacados do grupo numeroso nomeado pelo petista para levantar a situação das contas e dos programas implementados por iniciativa do governo Bolsonaro e, na medida do possível, antecipar medidas de interesse do novo governo dão a entender que muita gente conta com uma curva acentuada à esquerda, capaz de promover mudanças profundas na forma de se conduzir a política do país.
Outros sinais, porém, indicam um movimento diferente. As manifestações mais ponderadas feitas pelo grupo que segue a orientação do vice-presidente eleito Geraldo Alckmin sugerem que não haverá guinadas bruscas. As mudanças que houver a partir do dia 1º de janeiro se limitarão a levar bom senso e racionalidade ao governo. Tudo leva a crer que uma queda de braços vem sendo travada dentro do grupo de transição e que a trajetória de pessoas que tiveram vida curta na equipe encarregada de desenhar a nova administração sugere que todos ali dentro estão sob vigilância permanente e ninguém terá vida mansa nesse cenário.
Se a briga eleitoral acabou, a batalha interna pela definição do que será o novo governo está apenas começando a fazer suas primeiras vítimas — e dois exemplos de passagens breves pela equipe de Transição são suficientes para mostrar que ainda falta muito para o novo governo definir a face que terá depois da posse. O primeiro exemplo envolve um nome do círculo mais próximo de Lula que, por mais apoio e confiança que tivesse do presidente, teve que se afastar para não criar problemas nem para o novo governo e nem para ele mesmo. Trata-se do economista Guido Mantega.
Petista histórico e economista de prestígio na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, Mantega foi o ministro da Fazenda que mais tempo permaneceu no posto no país. Assumiu em 2005, antes da metade do primeiro governo de Lula — depois da queda de Antônio Pallocci nos rastros do escândalo da chamada “República de Ribeirão Preto”. Permaneceu no posto até o fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff, em 2013.
Conhecido pela forma serena de conduzir problemas complexos, Mantega foi envolvido, depois de deixar o governo, em algumas das investigações abertas contra os petistas. Mesmo sem condenação formal, a presença de seu nome próximo a Lula passou a ser questionado e a pressão foi forte o bastante para afastá-lo da equipe de transição semanas depois de nomeado.
Outro que também não resistiu foi o deputado federal Alexandre Frota (PSDB/SP). Suas posições políticas, bem como os trechos polêmicos de sua biografia como ator e bad boy, já eram mais do que conhecidos quando ele foi nomeado para um posto na equipe de transição responsável pela política cultural. Pois bem... A Cultura, como se sabe, é uma área conhecida pelo barulho que é capaz de produzir. Naquele universo, posições políticas se misturam aos interesses dos artistas que os artistas e intelectuais parecem ter nos patrocínios generosos das empresas estatais e nos programas de incentivo à Cultura. Imaginar que um estranho no ninho petista, como é o caso de Frota, sobreviveria nesse ambiente, seria no mínimo uma demonstração de ingenuidade

PREOCUPAÇÃO FORA DE HORA
Por que os exemplos de Mantega e Frota, com todas as suas diferenças, aparecem lado a lado no mesmo raciocínio? Muito simples. Se em circunstâncias normais a montagem de um governo já envolve pressões de toda natureza, com os diferentes grupos de apoiadores fazendo força e recorrendo a todo tipo de expediente para emplacar os nomes de seu interesse nos postos chave, o que esperar de um governo com as características do de Lula? O que esperar de um governo tão heterogêneo, que terá que contemplar os interesses dos grupos numerosos e nem sempre harmônicos entre si que elegeram o presidente? Haverá no governo lugar para todo mundo que esteve com Lula do palanque ou apenas os mais fortes sobreviverão? Este é o ponto que interessa. Quem estiver esperando de Lula um governo igual ao que foi prometido na campanha eleitoral pode se preparar para sofrer uma decepção.
Num cenário como esse e com o domínio que tem da arte de governar, Lula deveria ser o primeiro a colocar um freio de arrumação e proibir os militantes mais inflamados de antecipar qualquer medida antes que ela se torne oficial. O presidente eleito sabe muito bem que existem temas que, caso sejam mencionados fora de contexto, são capazes de despertar reações e de criar dificuldades para um governo que ainda nem começou. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a ideia extemporânea e anacrônica que foi defendida dias atrás pelo deputado eleito Guilherme Boulos (PSOL/SP). Se havia um tema com o qual Lula não precisava preocupar neste momento era exatamente o do bem sucedido pelo Marco Regulatório do Saneamento, que foi trazido à cena pelo inflamado Boulos sem a menor necessidade.
Em pouco mais de dois anos em vigor, a nova lei, que foi objeto de uma ampla negociação no Congresso, já atraiu mais de R$ 100 bilhões em investimentos para um setor importante que, antes, não recebia sequer R$ 5 bilhões por ano. Bastou que Boulos voltasse suas baterias para esse setor para que uma série de governadores, prefeitos e concessionários privados reagissem e começassem a se mover nos bastidores. O problema é que, como até agora nenhuma autoridade mais graduada do novo governo desautorizou as palavras de Boulos — e levando-se em conta que quem cala consente — é possível supor que foi criado um ponto de tensão desnecessária, que repercutirá numa instituição onde há muita gente disposta a criar problemas para Lula. Trata-se do Congresso Nacional. E é aí que está o problema.

INSÍPIDA E INODORA
Ninguém deve esperar dos parlamentares eleitos em 2022, muitos deles umbilicalmente ligados à trajetória política de Jair Bolsonaro, a mesma postura insípida, incolor e inodora que marcou a oposição aos primeiros governos petistas. Para quem não se recorda, o Congresso que tomou posse em 2003 estava repleto de políticos que, mesmo tendo sido eleitos por partidos que divergiam do PT, se mostraram incapazes de erguer qualquer obstáculo a qualquer projeto apresentado por Lula. Havia, também, os que aceitavam mesadas em troca do apoio ao governo — numa postura que deu origem ao escândalo do mensalão.
As características da bancada que tomará posse no dia 1º de fevereiro de 2023 e as mudanças que houve no ambiente político de lá para cá indicam que as dificuldades de agora serão muito maiores do que as do passado. Por que? Bem, é preciso ter claro que não houve, até prova em contrário, qualquer mudança na qualidade pessoal dos parlamentares eleitos agora em relação aos que exerciam seus mandatos naquela época. Os políticos atuais, na média e sem negar a existência no Parlamento de centenas de pessoas que se guiam pelas próprias convicções e que honram os votos que receberam do eleitor, são tão capazes quanto os daquela época de fazer acordos pensando mais nos próprios interesses do que nos cidadãos que os elegeram. Que mudança, então, nos autoriza a afirmar que a vida de Lula, agora, será mais difícil do que foi no passado?
A principal mudança, sem dúvida, não se deu entre os políticos, mas na sociedade. Em 2003, os grupos sociais ligados aos partidos de esquerda eram os únicos capazes de pressionar seus representantes a ponto de força-los a agir com coerência e de respeitar os compromissos que assumiram na campanha eleitoral. Hoje não é mais assim — e a prova disso está justamente na trajetória de deputados como o já mencionado Alexandre Frota e a paulista Joice Hasselmann. Eleitos com votações consagradoras em 2018, eles romperam com Bolsonaro, caíram em desgraça junto aos próprios eleitores e no pleito deste ano ficaram fora da lista de escolhidos.

NADA COM A DUREZA
Tudo isso para dizer o seguinte: os deputados e senadores que venceram o pleito de 2022 alinhados com as ideias de Bolsonaro não foram eleitos para exercer um mandato. Eles foram escolhidos para cumprir uma missão — que é justamente a de defender as bandeiras conservadoras e de direita. Ai daquele que, em nome de negociações ou de interesses pessoais, se esquecer desse fato e abraçar teses diferentes das que os elegeram!
Em resumo, Lula não terá vida fácil. Uma mostra do clima que aguarda a ele e a todos aqueles que os eleitores da direita consideram simpáticos à causa petista, como é o caso dos ministros do TSE e do STF, foi dada pela adesão a um pedido para abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito apresentado pelo deputado Marcel van Hatten (Novo/RS). Numa demonstração de disposição rara para ser dada poucas semanas antes do recesso parlamentar do fim de ano e numa altura do campeonato em que, nas transições anteriores, os parlamentares já não queriam mais nada com a dureza, Van Hatten, que uma estrela em ascensão entre os políticos conservadores foi atrás e conseguiu reunir 185 assinaturas para abrir uma CPI encarregada de investigar o que ele considera abusos do Poder Judiciário.
O efeito prático da medida é nenhum. Não há tempo sequer para a tramitação do pedido de abertura de uma CPI este ano. Qualquer iniciativa nesse sentido terá que espera pela posse dos parlamentares de 2022, o que só acontecerá em 1º de fevereiro de 2023. O significado político, no entanto, não podia ser mais claro. Em primeiro lugar, mostra que a direita não está disposta a dar trégua a seus adversários. Em segundo lugar, serve de aviso aos interessados em formar as mesas diretoras da Câmara e do Senado para 2023.
Se o senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG) ainda alimenta o sonho de conservar o posto na próxima legislatura, ele terá desde já, que incluir entre as promessas de campanha para sua reeleição a mudança de postura em relação à conduta que teve até agora. Pacheco não deu andamento a um único entre as centenas de pedidos de impeachment que recebeu contra integrantes do Poder Judiciário. Será que ele ou qualquer outro que vier a ocupar seu lugar será capaz de resistir a esses pedidos nesse novo ambiente? O jogo está começando e o melhor que os apoiadores de Lula poderiam a fazer neste momento é não ter atitudes que possam ser tomadas como provocação pelos adversários e que aumentarão as dificuldades na largada do novo governo.