Nuno VasconcellosAgência O Dia

Mais uma semana se passou e a impressão continua sendo a de que os problemas do país se resumem às manifestações do dia 8 de janeiro e que sua solução se limita à identificação e à punição dos responsáveis pelos atos. Dia após dia, emissoras de TV e jornais de circulação nacional trazem alguma novidade a respeito da invasão do Palácio do Planalto, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal. A todo instante, um novo vídeo aparece para confirmar aquilo que já havia sido mostrado pelo vídeo anterior. E enquanto isso acontece, as necessidades do país vão sendo empurradas para debaixo do tapete — sem que nenhuma autoridade demonstre preocupação em dar o primeiro passo para resolvê-las.

Sem pretender diminuir a gravidade dos atos do dia 8, nem minimizar o peso das manifestações protagonizadas pelo bando de acelerados que saiu quebrando tudo o que encontrava pela frente — inclusive obras de arte e objetos históricos —, convém fazer um alerta. Por mais graves que tenham sido, os atos não podem servir de cortina de fumaça nem justificar a imobilidade e a falta de propostas que, com as raras exceções de alguns ministérios, vêm marcando os momentos iniciais do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

É importante, volto a dizer, não fechar os olhos para o que aconteceu no dia 8. Mas é preciso, da mesma forma, alertar para os riscos do tratamento que vem sendo dado ao fato. Há riscos que precisam ser evitados. Entre eles estão os que foram apontadas pelo ex-ministro Nelson Jobim, na quinta-feira passada.

Em evento virtual promovido pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso, Jobim lançou um alerta. “O resultado apertado das urnas não autoriza essa euforia petista, que pode ter consequências perigosas. A hora é de saber agir com tolerância e equilíbrio. Se o governo empreender uma retaliação generalizada, Bolsonaro e os grupos radicais que o apoiam podem se fortalecer a médio prazo”, disse o ex-ministro. Atenção! Essas palavras não saíram da boca de um bolsonarista! Quem as disse, foi deputado constituinte, ministro dos governos de Fernando Henrique Cardoso, de Luiz Inácio Lula da Silva e do Supremo Tribunal Federal. É bom levar a sério o seu ponto de vista.

A VOLTA DO CIPÓ DE AROEIRA — Foi justamente essa a linha de raciocínio adotada por esta coluna no artigo da semana passada. Como acontece no tratamento de qualquer doença, remédios em dose exagerada podem se voltar contra o paciente e se transformar em veneno. Esse episódio não deve ser conduzido com base apenas em demonstração de força. Dependendo das medidas que forem tomadas, há o risco de o cipó de aroeira, mais cedo ou mais tarde, se voltar contra o lombo de quem mandou bater. Ou, então, de, ao invés de unir o país em torno da condenação aos manifestantes, como aconteceu depois dos atos, aumentar a divisão que tem causado tantos problemas nos últimos anos.

Esse alerta não é dirigido só a Lula e a seu governo. Ele também se aplica à Justiça e a todos os que têm demonstrado a intenção de surfar na onda das trapalhadas feitas pelos manifestantes para, com isso, se aproximar do lado oposto do que defendiam meses atrás. Nesse grupo encontram-se, para citar os dois exemplos mais evidentes, o presidente da Câmara, Arthur Lira, e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Dentro de pouco mais de uma semana, os dois ex-bolsonaristas e atualmente lulistas estarão lidando com um Congresso de perfil muito diferente deste que está nos estertores de seus mandatos. Será que os parlamentares eleitos em outubro passado não cobrarão o preço pelo que os dois andaram dizendo nos últimos dias? É esperar para ver.

Por mais exemplar que deva ser a punição aos participantes dos atos de 8 de janeiro, não ficará bem para o governo nem para a Justiça se eles forem tratados com mais rigor do que aqueles que, no passado, também testaram os limites da democracia em seus protestos. Aqueles que, ao se manifestar, atentaram contra a vida e continuam por aí, livres, leves e soltos, sem sentir o peso da lei nem serem vítimas da execração pública patrocinada pelos meios de comunicação.

PESOS E MEDIDAS — Quer um exemplo? Vamos lá. Daqui a exatamente 15 dias completam-se nove anos da manifestação em que o cinegrafista da TV Bandeirantes Santiago Andrade foi atingido na cabeça por um rojão. O petardo foi disparado durante um ato promovido por grupos de esquerda, no Centro do Rio de Janeiro. Quatro dias depois, Santiago morreu na UTI do Hospital Souza Aguiar. Dois (apenas dois entre centenas) dos manifestantes que participaram dos atos e hostilizaram os jornalistas que registravam os fatos foram identificados e presos. Caio Silva de Souza e Fábio Raposo Barbosa passaram alguns dias na cadeia e logo ganharam o direito de responder em liberdade o processo pela morte do jornalista.
O que se viu naquele momento, ao contrário do que se vê agora, foi a tentativa de despolitizar o ato do qual participavam e de reduzir a responsabilidade pela morte de Santiago à ação isolada dos dois acusados. Ninguém se preocupou em saber quem estava por trás daquele movimento, nem em investigar quem financiou a compra dos rojões usados como arma pelos manifestantes. Ninguém chamou a dupla, nem os demais integrantes da turba que tirou a vida de um pai de família de forma covarde de “terroristas”, de “extremistas”, de “assassinos” ou de algo que o valha. Eles foram tratados pela imprensa como “ativistas”, “manifestantes” ou “black blocs”.

Outro ponto: enquanto os procedimentos contra os manifestantes de Brasília seguem (como deveriam seguir) em ritmo acelerado e com base nas medidas legais mais rigorosas, os dois acusados de matar Santiago (que respondem pelos crimes de homicídio qualificado e de explosão — sem qualquer agravante de natureza política), estão há nove anos à espera de julgamento. O caso chegou a ser discutido no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, que tomou a decisão de devolvê-lo à primeira instância do Rio, onde deverá ser submetido ao Tribunal do Juri.
Houve, nesse período, uma série de chicanas — que é a gíria utilizada no direito processual para se referir às artimanhas que dificultam a tramitação de um processo a partir de detalhes secundários ou de pontos irrelevantes. Atualmente, quase uma década depois do disparo que tirou a vida de Santiago, a Justiça ainda espera pelos resultados de uma perícia do Instituto Carlos Éboli para verificar a autenticidade de alguns vídeos sobre as manifestações. Nove anos! É tempo demais para um simples laudo, não parece?

Onde se pretende chegar com essa comparação? Em primeiro lugar, aos olhos da lei, não deveria haver distinção entre militantes ligados à esquerda ou à direita que, ao exercer seu direito de manifestar, ultrapassem os limites estabelecidos em lei. A impressão que fica é a de que existe um sistema de pesos e medidas diferente para avaliar os atos de um lado e do outro. A pergunta é: o que teria acontecido se um jornalista tivesse sido morto nos atos de Brasília? Com certeza, estaria sendo tratado com um rigor muito maior do que vêm sendo tratados os “ativistas”, “manifestantes” ou “black blocs” que um dia, talvez — quem sabe? — virão a ser julgados pelo assassinato de Santiago.

DESEMPREGO — Enquanto a questão das manifestações continua no centro da pauta, a ideia de que o governo Bolsonaro errou em todas as medidas que adotou vai servindo de desculpas para todos os problemas do país e, em alguns casos, justificando a imobilidade de quem precisa agir para que a situação piore. Na semana passada, o IBGE divulgou os dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios, a PNAD Contínua, e confirmou o que já se esperava. A taxa de desemprego, depois de recuar por seis trimestres consecutivos, chegou a 8,1%, a mais baixa dos últimos anos.

É voz corrente entre os empresários e especialistas no assunto que a redução gradual do desemprego verificada nos últimos anos se deveu a dois fatores. O primeiro foi a flexibilização das regras trabalhistas estabelecidas pela reforma de 2017 e mantidas pelo governo passado. O segundo, o aumento dos negócios gerados, entre outros fatores, pelos programas de concessões e privatizações levados adiante nos últimos anos. Apenas a privatização da Cedae, no Rio, foi responsável pela criação de mais de 40 mil empregos diretos — sem contar os milhares e milhares de postos de trabalho indiretos gerados pelos fornecedores, no setor de serviços e no comércio, a partir do aumento do poder de consumo que veio no rastro da assinatura dessas carteiras.

O que isso tem a ver com o quadro atual? Tudo! Os mesmos especialistas em mercado de trabalho que vinculam o aumento da taxa de emprego à redução dos custos trabalhistas promovidos pela reforma temem que, nos próximos meses, o desemprego volte a aumentar. E parte dessa reversão de tendência se dever ao receio diante das declarações que o ministro do Trabalho nomeado por Lula, Luiz Marinho (PT), vem dando desde sua posse. Ex-sindicalista, Marinho não esconde de ninguém a intenção de recuar da Reforma Trabalhista e voltar a onerar os empregadores com uma carga tributária superior àquela que qualquer empresa do mundo é capaz de suportar.

Outro ponto que tem dado o que falar diz respeito ao tratamento que as privatizações receberão no atual governo. No que diz respeito especificamente ao Rio, o ministro dos Portos e Aeroportos, Márcio França (PSB), deixou claro na semana passada que, se não houver um acerto em torno dos critérios para a devolução do Tom Jobim Galeão pela atual concessionária, não descarta a possibilidade de reassumir o aeroporto e devolvê-lo à administração da Infraero.
É o tipo da medida de força que, ao invés de resolver, pode empurrar o problema para uma disputa judicial interminável em torno da quebra de contrato. Quem pagará pelo impasse será o Rio, que permanecerá sem um aeroporto internacional de boa qualidade enquanto os estados à sua volta vão se consolidando como hubs de entrada e saída de estrangeiros no Brasil. Não seria melhor avançar com as negociações que vinham sendo conduzidas pelo governo anterior e privatizar logo o Tom Jobim e o Santos Dumont?

O tema, como não poderia deixar de ser, desperta o interesse das autoridades e já motivou até a reunião marcada para o último sábado entre o prefeito Eduardo Paes, França, a ministra do Turismo, Daniela Carneiro, e o presidente da Embratur, Marcelo Freixo. Tomara que esse tenha sido o primeiro passo para a solução definitiva do problema. Ter aeroportos modernos e bem administrados é a chave para o incremento de uma das maiores vocações econômicas do Rio, o Turismo. Para que isso aconteça, é preciso deixar para trás as questões ideológicas e avançar com o modelo de privatização desenhado pelo governo passado. Quem tem a ganhar com isso é o Rio e o Brasil.
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