Eduardo Freitas, mais conhecido como Preá, faz sucesso por registrar e imortalizar diversos botecos do Rio Pedro Ivo / Agência O Dia

Rio - O botequim existe e resiste nas cidades, nos bairros e nas ruas. Mesmo sendo tão comum, o espaço ainda habita o imaginário popular cercado por simbolismos que limitam e, muitas vezes, menosprezam esse tipo de comércio. Ao ouvir a palavra, você pensa, por exemplo, em ovo colorido, cerveja gelada ou, até mesmo, banheiro sujo? Estabelecimentos que oferecem as suas mesas e balcões sem discriminação, os botequins estão longe de ser definidos com critérios objetivos e não são todos iguais, como se pensa.
Tanto que o sociólogo Eduardo Freitas, de 41 anos, tem um perfil no Instagram com mais de 4 mil fotos diferentes de botecos, a grande maioria do Rio (ele estima já ter visitado cerca de 500), e garante que o que faz o botequim ser diferente de bar é a validação de quem o frequenta. As fotos estão em @preah__.
"O meu olhar do botequim não é o olhar do curioso, do fetiche, do exótico. O meu olhar de botequim é de quem vem ao botequim, senta ou encosta no balcão, não conversa com ninguém, pensa sobre a vida", diz o servidor público, que completa: "Tem esse fetiche que se constrói, do botequim ser pé-sujo, ter ovo colorido, estufa. Para mim, um território passa por um tipo de processo de validação. Não se abre um botequim de um dia para o outro. Botequim é um tipo de território que vai ser validado pelos outros. Por quem? Pelas camadas populares, pelo cara que quer fugir do trabalho e tomar um conhaque, escondido lá no fundo do balcão, pois a dona do apartamento que ele está trabalhando pode passar, que tenha um rango rápido, farto, honesto, limpo", conclui Eduardo, mais conhecido como Preá, seu apelido de infância.
Na sua página do Twitter, Eduardo ainda escreve que "não é preciso muito para se vender cerveja e meia dúzia de petiscos - mas é preciso muita coisa para ser um 'butiquim'" (versão oralizada da palavra).
Em seus perfis nas redes sociais, onde se autointitula 'usuário de butiquim', há, principalmente, botecos do Rio, município onde mora, e de Volta Redonda, no Sul Fluminense, sua cidade natal.
Com frequência, recebe de seguidores solicitações de dicas de como apreciar um botequim: "Eu não dou dica para ninguém, não me importo com regras. Todas as minhas dicas estão no campo da ironia da dica, do tipo 'vai no boteco perto da sua casa, vai fazer o que você quer'", conta, rindo. A única orientação que ele leva a sério e repete com frequência é sobre não puxar assunto com ninguém. Recentemente, publicou na ferramenta 'stories', do Instagram, 'cinco dicas universais para não ser um cliente chato no boteco: 1) fique mudo, 2) fique calado, 3) não fale, 4) beba em silêncio, 5) saia à francesa'.
"Essa categoria que o povo tenta, de achar que botequim é onde sabem o seu nome, de ser chamado pelo nome, não existe. Tem lugar que eu vou há quatro anos e ninguém sabe o meu nome. Isso não é um problema para mim. Eu vou ao botequim não para trocar ideia, falar de futebol. Tem gente que vai, mas, para mim, botequim não é para isso. Por isso acho que esses botequins mais 'xexelentos', de bairro, você vê uns três, quatro idosos separados, sem falar um com o outro".
Umas das diferenças certas entre bar e botequim, para ele, passa justamente pela questão da quietude: "É lugar de sossego para mim. Eu falo isso, que o botequim tem uma serventia para cada um. Eu gosto dessa coisa da melancolia e da solidão. O lugar da alegria, da festa, do riso solto, é mais o bar, o barzinho, onde você junta mesa. Você não vê uma mesa de seis pessoas no botequim", destaca.
Em 6 de julho de 2022, quando Copacabana comemorou 130 anos, Preá deu de presente ao bairro onde mora um 'inventário' de seus botecos. Ele fez um levantamento ébrio-etnográfico de botequim por botequim, passando por todas as suas 65 ruas, 101 quarteirões, sete travessas, quatro ladeiras e três favelas. Só faltaram os botequins do Pavão-Pavãozinho, da Ladeira dos Tabajaras, do Morro do Cantagalo e do Morro dos Cabritos: "Conheço poucos e conheço ainda menos os espaços onde vivem milhares de moradores do bairro. É uma pena, uma lacuna a ser preenchida em outro momento", justificou no Twitter, onde publicou a lista dos botequins de um dos bairros mais famosos da cidade em uma série de postagens.
A ideia de registrar cada um partiu de dois princípios: evitar o desaparecimento ao afirmar a existência deles e diferenciá-los um do outro, ao apontar e listar cada um.
Das curiosidades citadas no levantamento, destaca-se a que, das 65 ruas do bairro, 33 tem ao menos um botequim: "A chance de quem chega por aqui, estar ou passar por uma alguma rua com birosca é maior que 50%", escreveu. A rua com mais botecos é a Barata Ribeiro, com dez, seguida pela Siqueira Campos, que conta com oito.
Para explicar como a seleção foi feita, relata que "o butiquim que escolhemos aqui não é o barzinho, nem bar, nem bistrô, nem restaurante. Esses têm sua serventia, mas o interesse aqui é outro. É da porta que abre cedo, abrigo das camadas populares, que tem estufa, tem café, traçado e conhaque de gole apressado".
Os ambientes são registrados de acordo com uma forma: "Tem gente que tira foto da comida do botequim. É legal também, mas a minha parada sempre foi mais do todo, do balcão, de respeito com quem está do outro lado, trabalhando, de estar atento às pessoas", conta.
'Botequim é rede de segurança e afeto'
Frequentador assíduo de botequins desde a época da faculdade, Preá conta que estava sem os pais e o botequim foi uma espécie de rede de afeto e de segurança, e que isso faz de um lugar um botequim: "É claro que quando a gente tende a categorizar, a gente vai arrumar critérios. Pode ter botequim sem nada, sem balcão, sem nada na estufa, e ser um super botequim, com o dono que recebe as mesmas pessoas, a galera que bebe a mesma cerveja no mesmo lugar, que criou uma rede de segurança, afeto e sociabilidade”, reflete. "É uma parcela da população que sustenta o botequim, são os prestadores de serviço, a copeira, o taxista".
Mas botequim, como todos os lugares, também é um local de contradições, com coisas boas e ruins: "Claro que não é um lugar apenas com um lado romântico. Também é lugar do alcoolista e do conservador. Mulheres não podem ir a todo botequim e nem em qualquer horário", afirma.
Preá diz que tem pessoas que consomem o seu conteúdo no Instagram por gostarem da estética dos botequins brasileiros, dos códigos reconhecidos nas fotografias, como paredes com azulejos e cartelas com isqueiros coloridos. E há aqueles que são curiosos sobre o espaço botequim, mas não são consumidores do tipo de ponto de venda:
"Tem gente que consome o que eu publico de forma fetichizada, acha maneiro e nunca vai, e está tudo bem. O Rio tem muito isso. A sociedade carioca burguesa, a elite, a que versa com uma intelectualidade progressista, precisou de algumas categorias ao longo do tempo para se suavizar: praia, Maracanã, Carnaval e botequim, como se fossem os espaços de uma democracia, mas não são. O Maracanã, mesmo na época da geral (setor mais barato, que acabou em 2005), não era democrático, pois quem era da geral era o pobre. O rico estava na cadeira cativa. Alguns falam que o botequim é onde o juiz bebe com o gari, mas não é verdade. O juiz bebe no território, mas o gari está lá do outro lado do bar, com o suor do seu corpo preto, e o juiz do outro lado com o seu conforto, sua pasta. Existem essas categorias imaginárias e simbólicas", destaca.
Botafoguense que frequenta o Estádio Nilton Santos, no bairro Engenho de Dentro, Zona Norte, Preá fala com lamento sobre dois bares que frequentava antes do jogo, mas fecharam. Agora, encontrou a padaria da Dona Graça: "Uma delícia. A coxinha é nota 10, estilo recreio", avalia.
Nas redondezas, ele indica ainda o Bar do Américo, no Engenho Novo, na frente da estação de trem de mesmo nome: "Uma coisa linda, 'xexelenta', com reboco no teto".
Sobre qual é a melhor birosca do Rio, Eduardo também é categórico: "Aquela mais perto da sua casa, do seu trabalho e do estádio".