Músico Rafael Soares, 33, tatuou Zé Pelintra no antebraçoPedro Ivo/Agência O Dia

Rio - O Rio de Janeiro celebra pela primeira vez o Dia de Zé Pelintra, nesta sexta-feira (7). A data em homenagem a uma das entidades mais populares do Catimbó e da Umbanda entrou para o calendário oficial da cidade no ano passado, após um projeto de lei ter sido aprovado pela Câmara de Vereadores, em setembro. Chamado de Seu Zé pelos devotos, a comemoração ao símbolo da malandragem e da boemia é apontada como um importante reforço no combate à intolerância religiosa. 
Ao longo do dia, o Santuário de Zé Pelintra e Maria Navalha, nos Arcos da Lapa, no Centro, realiza celebrações e ações sociais para a população em situação de rua e vulnerabilidade. Segundo o diretor social e cultural do espaço, Fábio Feliciano, são oferecidos orientação para emissão de documentos, em parceria com a Fundação Leão XIII, testes de HIV, balcão de empregos, arrecadação de agasalhos e alimentos. Até as 22h também acontecem rodas de conversa sobre a cultura da malandragem e a história da entidade; apresentações da escola de samba Acadêmicos do Dendê, rodas de samba e maracatu; além de desfile de moda afro e trans. 
"A gente luta para desvincular o Zé Pelintra desse termo pejorativo de marginalidade, de boemia. Ele foi marginalizado porque, na época, o preto, o samba, o capoeira eram perseguidos, mas Zé Pelintra é amor, é caridadade. Ele gosta da parte social e a gente da diretoria do santuário, mesmo em festejo, sempre está procurando fazer essas ações sociais. O Zé Pelintra abraça todas as categorias, classes e gêneros. Zé Pelintra gosta da humanidade, do povo unido. A gente está muito feliz e sente essa energia aqui, porque além do festejo, tem ajuda ao próximo, que é isso que Zé Pelintra nos ensina e a gente tenta colocar em prática", afirmou o diretor. 
O músico Rafael Soares, de 33 anos, vocalista dos blocos Areia do Leblon e Vagalume, esteve no santuário nesta sexta-feira e disse que se sentiu emocionado por comemorar a data. Ele conta que Zé Pelintra sempre fez parte de sua vida, não só religiosa, mas profissional, já que seu início na música aconteceu depois que ele passou a frequentar casas de Umbanda. Como forma de demonstrar sua devoção, há três dias ele tatuou a imagem da entidade em seu antebraço. 
"Seu Zé, para mim, é um guia de extrema luz, me ajuda muito no meu dia a dia. Em tudo o que peço, em tudo que faço, eu peço ajuda para ele, proteção, para as pessoas que eu amo, também, e ele tem sempre me abençoado. Ele é tudo, é um guia que está comigo sempre, como sou músico, sou da noite, da boemia, do samba, Seu Zé está sempre comigo. Essa tatuagem eu fiz pela importância dele na minha vida, minha iniciação na música foi devido às casas de Umbanda, eu escutava os tambores, tocava, e fui iniciando a minha carreira na música", afirmou Rafael. 
Mineira, a cantora Mônica Sueli de Souza, 58, está no Rio para shows até o próximo domingo e aproveitou a passagem para ir até o santuário. "Seu Zé no sincretismo da Umbanda é o meu padrinho, meu conselheiro e protetor dos meus shows. Sou cantora e não começo um show sem pedir a benção e proteção de Seu Zé e do povo da Rua. Uma certa vez, fui cantar rouquinha, já tinha desistido de cantar, quando vi um cara sambando no salão de vermelho e branco e pedi que Seu Zé me orientasse e voltasse a minha voz. Consegui fazer 40 minutos de show e saí de lá aplaudida", relembrou. 
A cantora Margarete Mendes, conhecida como "Negona do Axé", ficou famosa na boemia carioca por suas apresentações com a presença de um bailarino interpretando Zé Pelintra. A artista afirmou que sempre sonhou em cantar nas casas de show da Lapa, principal reduto da boemia e do samba, e atribui seu sucesso e a carreira de mais de 30 anos na região à entidade. Segundo ela, desde a primeira, todas as suas performances são dedicadas a Seu Zé. 
"Seu Zé para mim é tudo dentro da religião, do que eu confio e tenho fé. Eu tenho gratidão dentro de mim por todos os Orixás e Exus e a Seu Zé, também, por tudo que eu tenho, que consegui e acreditei. É uma coisa de dentro para fora, é uma coisa muito forte. Seu Zé é sábio e eu amo, sou suspeita para falar. Eu pedi a Lapa, que é o reduto, para ele e ele me atendeu. Eu tenho 30 anos (cantando) na Lapa. A Lapa para mim é tudo, porque foi ele quem me deu, ele me sustenta. Eu canto em várias casas, mas eu não saio da Lapa", declarou Margarete, que disse ainda esperar que a data seja apenas mais um dia na luta diária contra a intolerância.
"A data de hoje é mais para fazer com que as pessoas respeitem, então é bem-vinda. Mas, para mim, Seu Zé é todo dia, não é só dia 7. Hoje é a festa, todo mundo fala, mas e depois? Eu gostaria que essa data não ficasse só registrada hoje, porque vai além do Zé Pelintra. Seu Zé não é só uma data, a entidade tem que ser respeitada todos os dias, ela tem que ser falada, tem que ser contada a história, Seu Zé tem uma história que não se resume a 7 de julho. Eu fico feliz com essa homenagem, mas eu vou ficar muito mais se não for só hoje". 
Luta contra a intolerância
Segundo o Babalawô, Dr. Prof. do Programa de pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), Ivanir dos Santos, o Dia de Zé Pelintra é não só marcado por comemorações dos praticantes do Catimbó e da Umbanda, mas também da luta contra o preconceito.
"É uma significativa homenagem à entidade espiritual brasileira que forjou as identidades nacionais, principalmente de matrizes africanas. Assim, a data torna-se um ponto de referência, fé e resistência na luta contra todas a intolerância religiosa e debates em prol das diversidades", afirmou Ivanir dos Santos. 
Para a jornalista e diretora do Instituto Expo Religião, Luzia Lacerda, a data é uma reparação pelos ataques que as religiões de matriz africana e seus adeptos vêm sofrendo ao longo dos anos. Ela afirma que é necessário que todas conquistem seus espaços e tenham direito à celebração de suas crenças. 
"É uma data de reparação, pelo tempo que ele (Zé Pelintra) foi demonizado. Uma data de homenagear e para se festejar, mas também é uma data para se lembrar do erro que foi cometido quando se demonizou não só Zé Pelintra, como qualquer entidade das religiões afro. Para mim, que trabalho com 28 religiões, não tenho que me preocupar com os feriados católicos, eu tenho que conquistar para aquelas que ainda não têm, por isso, o dia de hoje é tão importante", explicou Lacerda, que ainda destacou a importância da homenagem para a cultura do Rio. 
"Essa data faz uma homenagem devida a uma entidade que é muito cultuada no Rio de Janeiro, poderia dizer que diariamente. É um reconhecimento merecido. Eu creio que o Rio de Janeiro seja um dos estados que mais homenageia o Zé Pelintra, mais até do que o estado de origem dele. Mas, creio que o principal desse dia é a desconstrução de que Zé Pelintra ou que qualquer Exu seja um diabo, não existe essa ligação. O diabo ele vem do cristianismo. Matriz africana de Umbanda e o Catimbó, de onde ele realmente é originário, não se fala em diabo".
Presidente do Santuário do Zé Pelintra, Diego Gomes, conhecido como Don Malandro Juremeiro, também ressaltou a importância da celebração. "O dia do Zé Pelintra é a união dos povos de matriz africana e de todos que amam a liberdade. Agora, todo 7 de julho representa a liberdade de terreiros e a luta contra a intolerância religiosa! Saravá!", declarou.
"É mais um grito de liberdade para a gente somar contra a intolerância religiosa. A gente jamais imaginou que poderia comemorar no reduto dele com tanta liberdade e união, sem medo de opressão, de discriminação. E hoje, Zé Pelintra dá essa força para a gente, para quem é devoto dele, se assumir como tal, não ter medo da intolerância religiosa", disse o diretor do santuário, Fábio Feliciano. 
Zé Pelintra
Apesar de ser uma entidade bastante cultuada, Seu Zé não é um Exu ou Orixá, mas José Pereira dos Anjos, nascido no sertão de Pernambuco. As histórias sobre Zé Pelintra contam que, por conta da seca, precisou se mudar com a família para Recife, mas seus pais e irmãos morreram acometidos por uma doença. Sozinho e muito novo, passou a viver nas ruas e cresceu em meio ao ambiente noturno, de jogatinas e da arte da sedução. Além disso, era muito habilidoso com facas, sabendo defender-se muito bem, o que o tornou temido.
Ainda jovem, alguns contam, teria decidido mudar-se para o Rio de Janeiro, onde rapidamente ficou famoso nas áreas boêmias. Andava trajado com um terno branco, gravata vermelha, chapéu panamá e uma longa bengala. José teve um destino trágico, sendo assassinado com um golpe nas costas, e histórias afirmam que no momento da sua morte, teria virado um espírito de luz. Hoje, é cultuado em algumas religiões de matriz africana, mas principalmente na Umbanda e no Catimbó, que acreditam que a entidade trabalha em favor daqueles que são marginalizados pela sociedade.
Programação
Salve a malandragem - Homenagem a Zé Pelintra
Local: Casa de Malandro - Rua Clara Nunes, nº 61, ao lado da quadra da Portela - Madureira. 
Data e horário: 7 de julho, às 20h. 
Roda de conversa com Diego Juremeiro
Local: Praça da Harmonia - Gamboa.
Data e horário: 8 de julho, às 13h. 
Salve Malandro
Local: Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (MUHCAB) - Rua Pedro Ernesto, nº 80 - Gamboa
Data: 16 de julho, das 10h às 17h30.