Últimas casas do Bairro de Fátima foram demolidas em 22 de maioPedro Ivo/ Agência O DIA

Rio - Incrustado no Centro do Rio, o Bairro de Fátima é um refúgio e motivo de orgulho para seus moradores. Quem vive por ali elogia a tranquilidade, a paz e o clima "interiorano" do sub-bairro, que tem como via principal a Avenida Nossa Senhora de Fátima, acessada pela movimentada Rua do Riachuelo. A bucólica Praça Presidente Aguirre Cerda, frequentada por crianças, adolescentes e idosos, é outro símbolo da região, que acaba de perder suas duas últimas casas. Após serem demolidas, elas darão lugar a um moderno empreendimento residencial com oito andares. 

As duas casas tinham dois andares e dispunham de quintal e árvores. O terreno já foi limpo e está cercado com tapumes para a construção de um edifício com 60 apartamentos. No local, um corretor de imóveis cadastra o nome e contato de interessados. 


O porteiro José Francisco, de 56 anos, cuidou por 12 anos de uma das residências que vieram abaixo. Ele, que mora e trabalha há 36 anos no Bairro de Fátima, conta que sentiu pena ao ver a demolição, mas acha que a região seguirá sendo a mesma.

"Fiquei com pena porque eu que tomava conta de uma. Era bonita! E eram as duas últimas casas daqui. Isso é a tecnologia mesmo. Não tem jeito. Eu acho que o bairro vai ficar a mesma coisa. Não muda nada. Muda só em termos de ter mais pessoas", afirma. Para José, o Bairro de Fátima é "bom demais, tranquilão e um dos melhores do Centro."

Apaixonada pelo bairro, a apostentada Lia Dalethese, que mora mora há mais de 15 anos na região, diz que o bairro ganha de "concorrentes" na Zona Sul, como Leblon e Copacabana. "Eu amo. É o melhor bairro que tem no Rio de Janeiro. Não tem Zona Sul, não tem ninguém. É tranquilão e tem tudo. Aqui nós somos uma família. Dessa rua até a praça, tem os bares, restaurantes e as comidas são as melhores", exalta.

Após a demolição, a moradora conta que sofre com a poeira dos escombros e teme perder o sol no seu apartamento com a construção do prédio. "Eu fiquei triste porque eu não gosto que derrubem as casas antigas. A poeira foi toda lá em casa. Essa casa tinha uma mangueira muito bonita lá atrás. Mas enfim, né? É construção moderna, a cidade está crescendo e o que vale hoje é o dinheiro. Só tô com medo de tirar o sol. Queria envelhecer na minha varanda pegando sol, mas vou ter que ir pra rua", lamenta Lia.

Quem está otimista com o novo prédio é o Irineu de Marchi, 67, conhecido como Gaúcho. O bar que ele mantém há 18 anos na Avenida Nossa Senhora de Fátima enche aos finais de semana por conta do churrasco, vendido na própria rua. "É que o churrasco gaúcho é o melhor que tem", diz o morador, natural de Sarandi, no Rio Grande do Sul.

Antes de ir para o bairro, Gaúcho trabalhou em churrascaria e padaria, tendo morado em Jacarepaguá, Laranjeiras, Copacabana, Tijuca e Ilha do Governador. "Aqui e na Ilha são os melhores lugares. Têm mais tranquilidade", explica. O dono do bar acha bem-vindo o novo prédio por trazer mais movimento ao bairro. "Vai ser melhor. Serão 58 famílias a mais. Pra mim aqui, é ótimo", comemora.

A cabeleireira Thais Andreia, 48, tem há 12 anos um salão em frente ao terreno onde será construído o novo prédio. Amiga de uma moradora das antigas casas, ela conta que foi triste ver a demolição. "As casas eram um escândalo de bonitas. As duas de dois andares. E com esse condomínio, vai tirar nosso sol e nossa lua". No entanto, Thais também acredita que o empreendimento será positivo pra região: "Vai ser bom pro bairro e pro salão. Coisas da vida."

O porteiro Renato da Silva, 62, trabalha em três prédios do Bairro de Fátima há 27 anos. Ele também conheceu os moradores das antigas casas e considera a venda natural, na medida em que a manutenção dos imóveis demandavam um alto investimento.

"Olha, eu não achei muito interessante não [a demolição das últimas casas]. Uma parte é boa porque vão surgir muitos apartamentos e vai ter opção para quem for morar aqui. Mas as casas eram patrimônio do bairro. Eram as duas únicas. Só quando o prédio estiver pronto a gente vai ver se vai mudar ou não. Mas nesse prédio da frente não vai ter mais vista para Santa Teresa, vento, nem sol", opina.

O professor universitário Rian Rezende, 39, é de Barra do Piraí, no interior fluminense, e conta que familiarizou-se com a região, onde mora há 15 anos. "Quando eu vim para cá me lembrou muito o interior. O fato das pessoas estarem sempre na rua, na praça conversando. É um bairro muito social. Todo mundo se conhece", conta.

O fato de ainda haver casas em pleno Centro do Rio aproximava ainda mais o sub-bairro ao clima de interior, avalia Rian. O professor acredita que a nova contrução pode afetar o espírito do local, se destoar do entorno.

"Adorava o fato de terem casas exatamente no Centro do Rio porque me remetia ainda mais ao interior. Tinha árvores no quintal de trás. Quando colocaram à venda eu já fiquei com o coração apertado porque dificilmente alguém manteria uma casa no Rio. Quando aconteceu a demolição, lembro de estar passando aqui. Eu achei bem violento. Não o ato de demolir, mas a demolição de algo que fazia uma referência para o bairro. Uma perda simbólica e da história", pondera.

A pesquisadora Andressa Piedade, 35, avalia que a substituição das casas por um prédio faz parte de um processo de gentrificação da cidade. O conceito trata da transformação e supervalorização de determinadas áreas urbanas.

"Vai encarecer todo o entorno. É uma questão do capitalismo. Talvez venha um público diferente. Vai depender também do layout do prédio: se vai dialogar com os outros, que tem uma estrutura mais antiga, ou se vai ser em um estilo meio de shopping. Talvez isso mude um pouco, mas acho que nada que comprometa [o clima do bairro]", observa.

O novo prédio ainda não está com apartamentos à venda. O anúncio de uma corretora no local indica que o edifício terá área de lazer completa, vagas para alguns apartamentos, e imóveis dos tipos quarto e sala, dois quartos e estúdio. A imagem das duas casas demolidas ainda aparecia no aplicativo de GPS Google Maps até a publicação deste texto (confira abaixo). Diante da proximidade da chegada dos novos vizinhos, os moradores só torcem para que o Bairro de Fátima continue sendo o "mesmo".
A imagem das casas demolidas ainda aparece no aplicativo Google Maps - Reprodução/ Google Streetview
A imagem das casas demolidas ainda aparece no aplicativo Google MapsReprodução/ Google Streetview