Alunos da oficina de leitura de Um Defeito de Cor posam com a escritora Ana Maria GonçalvesMarcos Porto / Agência O Dia

Rio - Já imaginou uma quadra de escola de samba com oficina de leitura? É o que vem acontecendo semanalmente na antiga sede da Portela, em Oswaldo Cruz, Zona Norte do Rio, por iniciativa de um projeto impulsionado pela rainha de bateria da escola, Bianca Monteiro. A atividade mergulha no livro "Um Defeito de Cor", escrito por Ana Maria Gonçalves. Fio condutor do enredo da agremiação para 2024, a premiada obra, de quase mil páginas, narra a trajetória de uma mulher negra em busca de um filho perdido, abordando temas como ancestralidade, religiosidade e escravidão.



O DIA acompanhou o primeiro encontro da oficina, na Portelinha, na noite da última terça-feira (18), quando a comunidade recebeu a visita ilustre da autora. Logo após o início do bate-papo, Ana Maria Gonçalves se emocionou as histórias de vida das participantes, que receberam a escritora com muita festa e um lanche especial, com bolos, empadinhas e refrigerantes.

A escritora contou que inicialmente não acreditou que sua obra seria tema da Portela, após receber um e-mail do carnavalesco André Rodrigues, que divide o cargo com Antonio Gonzaga, em fevereiro deste ano. "Demorei uns três dias para responder. Me pareceu algo muito doido, muito grande, não estava esperando", revelou.

Mineira, Ana Maria Gonçalves, que mora há anos em São Paulo, acredita que a ideia de abordar o tema no Carnaval, permite tornar o livro mais acessível a um público que, muitas vezes, não tem bibliotecas disponíveis nas regiões em que vive.

"Está atingindo um povo, que acho que não atingiria se não fosse através do samba. Me emociona muito as pessoas falando para mim, hoje, que a leitura transformou a vida delas. Muita gente fala que é uma pessoa antes e depois de ler o livro. Isso é a literatura. Impactar tanta gente que eu não teria contato se não fosse o livro. Ele dá essa possibilidade para que as pessoas se conheçam, por ele ter sido escrito num processo de autoconhecimento meu, muita gente se identifica também com esse processo de autoconhecimento."

Ana Maria demorou cinco anos para finalizar "Um Defeito de Cor", lançado em 2006. Foram dois anos de pesquisa, um de escrita e dois de reescrita. A publicação foi refeita 19 vezes até chegar ao resultado final.

Aluna chora ao ler obra: 'Ele conta a minha história'
Para Mariana de Almeida, 34 anos, aluna do projeto "Samba e Literatura", a identificação com o livro foi imediata. Ela chorou ao entregar uma placa em homenagem à autora. "Aprender literatura dentro de uma escola de samba é único! E ver a literatura alcançando tanta gente de uma maneira tão sentimental é muito bonito. Aprendi a gostar de livro na infância, fui me apaixonando, mas é uma coisa rara, nem todo mundo gosta. Hoje, ver minhas colegas, uma de 16 anos e outra de 64, mergulhando nesse livro, me emociona", disse.

Ela ainda não concluiu a leitura e explicou o motivo de precisar parar em alguns momentos. "Ele acessa vários lugares dentro de mim. Ele conta a minha história, aqui eu sei o que aconteceu com os meus. É história que a gente viveu lá atrás. Me emociono o tempo todo, em casa, na aula. Estou lendo e chorando. Ver a minha história sendo contada na Avenida não tem preço. As pessoas contam a nossa história de uma forma muito cruel. Aqui a gente vê que é cruel, mas o que essa oficina de literatura está fazendo, transforma, muda a nossa realidade", disse.

Mariana lembrou, ainda, do caminho percorrido por seus ancestrais e comparou com os desafios enfrentados pela sociedade atual. "É força todos os dias, batalha, história... Hoje, a gente tem voz, a gente não deixa se machucar, a gente responde, a gente grita."
Portelense há mais de 50 anos, Cleide Ferreira, 65 anos, professora de dança e aluna da oficina, destacou a a importância do enredo. "É um legado vivenciar a ancestralidade, a cultura negra, todo sofrimento, escravidão e o negro nunca sendo reconhecido. Só os brancos que tinham esse merecimento, o negro sempre ficava de escanteio, não tinha direito a nada", refletiu.

'É sobre desvendar e resgatar a nossa história', diz rainha 

Desde 2017 no posto de rainha de bateria, Bianca Monteira explicou que a ideia do projeto é aproximar o popular e o acadêmico, criando um ambiente em que "o samba entre na literatura para narrar suas histórias e a literatura utilize do samba como tema".

"Ano passado, na primeira turma, falamos de ancestralidade e da história da Portela. Nesse ano, temos esse potente livro e resolvemos fazer uma leitura coletiva. A cada aula o professor traz um trecho e a turma debate", contou.

A ideia de unir samba e literatura, segundo Bianca, surgiu por uma dificuldade que percebeu na escola a necessidade de poderem contar as suas histórias. "O samba é muito mais que um estilo musical e o carnaval é muito mais do que um desfile. Descobrir quem somos é o que faz 'Samba e Literatura'. A leitura de 'Um Defeito de Cor' é sobre desvendar e resgatar a nossa história, de um Brasil, do povo negro, do sambista e da sambista."

A oficina também é importante para formar novos apaixonados por literatura. "Tem gente na oficina que nunca leu um livro na vida e hoje tem a oportunidade te dizer a todos que está lendo a história de Kehinde, a nossa história, em um livro bem grosso. Isso para nós representa sucesso, uma vitória do grupo", completa Bianca, que é presença confirmada nos dias de oficinas. Além da leitura, a comunidade tem aulas de dança, maquiagem, entre outras atividades.

"A gente vai mais longe quando vai junto. O livro fala muito sobre afeto, espiritualidade, família, ancestralidade, apagamentos e, claro, a cruel e violenta escravização do povo negro. O samba e o carnaval que vemos hoje vem deles. Somente olhando o passado que entenderemos o presente e mudaremos certos destinos futuros", completou a rainha.

As inscrições para a leitura coletiva de "Um Defeito da Cor" estão abertas na quadra da Portelinha (Estrada da Portela 446, em Oswaldo Cruz), todas as terças-feiras, a partir das 18h, com entrada franca. A iniciativa integra o projeto Oficina de Artes Paulo da Portela. 
Exposição no MAR até agosto
O livro que inspirou o enredo da Portela também é o mote de uma grande exposição homônima, no Museu de Arte do Rio (MAR), na Praça Mauá. A mostra, que foi prorrogada devido ao sucesso, fica em cartaz até o dia 27 de agosto, de terça a domingo, das 11h às 18h. Cerca de 120 mil pessoas já conferiram as obras. 
Dividida em dez núcleos, espelhados nos dez capítulos do livro, a mostra fala de revoltas negras, empreendedorismo, protagonismo feminino, culto aos ancestrais, África contemporânea, entre outros temas. 
"É uma exposição que mantém o sucesso do livro e amplia os possíveis leitores, estimulados pela exposição. Essa linda notícia de que o livro inspirou o enredo da Portela contribui para o sucesso e acho que o contrário também. Ter a mostra e o diálogo que estamos abrindo com o carnavalesco é muito importante", pontou Marcelo Campos, um dos curadores da mostra.
 
Segundo Marcelo, o museu tem ficado lotado e com fila na porta durante o período de férias escolares. "A satisfação e popularidade da mostra é imensa frente ao público que assiste à exposição. É um gesto muito importante esse diálogo que tivemos com Ana Maria Gonçalves, que foi curadora conosco", comemorou, que também antecipou que a mostrar percorrerá outros lugares ao deixar o MAR.
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