Ocupação do Edifício A Noite pode incentivar serviços na região portuáriaDivulgação

Rio - Ao longo de décadas, o Rio de Janeiro foi na contramão da tendência mundial de revitalizar seu centro e priorizou a expansão para a Barra da Tijuca, na Zona Oeste. Por conta desse histórico, o trabalho que a prefeitura vem fazendo para atrair moradores para a região, especialmente com o programa Reviver Centro, é difícil e demorado. É o que avaliam urbanistas ouvidos pela reportagem.
O arquiteto e urbanista Sérgio Magalhães classifica a ocupação do edifício A Noite, na Praça Mauá, como importantíssima. O prédio inaugurado em 1929 e considerado o primeiro arranha-céu da América Latina foi vendido na terça-feira (25) por R$ 36 milhões para a empresa QOPP, que integra o Grupo Vetorazzo, e a carioca Konek Transformação Imobiliária.

"É extremamente importante para a cidade, inclusive para a revitalização do centro. Fortalece a ideia de que ali pode haver serviços. O prédio com aquela expressão e volume abandonado é muito grave, inclusive pro entorno. Contamina negativamente a vizinhança. O edifício tem grande importância arquitetônica e histórica", afirma o urbanista.

Atraindo moradores para os 424 apartamentos, o prédio pode provocar o surgimento de serviços familiares como padarias, drogarias, mercados, salões de beleza, importantes para dar vitalidade ao espaço, explicam os urbanistas.

"O que a gente observa é que projetos dessa natureza, de conversão de uso, levam um tempo de maturação muito longo, como foi em Barcelona, Londres. É preciso mudar quase que uma cultura para a família tomar a decisão de que aquele lugar vai ser bom para residir. Um bairro que é absolutamente novo e que hoje ainda não oferece esses serviços familiares", avalia a coordenadora da Comissão de Política Urbana do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio(CAU), Rose Compans.

O abandono do centro nos finais de semana, por exemplo, é resultado de uma política urbanística que proibiu construções residenciais na região. "É uma tendência reconhecida nas principais cidades o fortalecimento das áreas centrais históricas: foi assim em Paris nos anos 70, em Nova Iorque nos anos 60, em Londres, Barcelona. Cidades importantes constataram uma perda de vitalidade das regiões centrais e trataram de estabelecer políticas para fortalecê-las", explica Magalhães.

O projeto do arquiteto Lúcio Costa para a Barra da Tijuca a partir dos anos 60, no entanto, pretendia transferir o centro metropolitano e até a própria capital da Guanabara para o novo bairro da Zona Oeste. "Isso fez com que muita gente achasse que aquilo era o destino do Rio. Contaminou os investimentos na direção da expansão", explica Magalhães.

"Durante mais de quatro décadas a cidade trabalhou com o esvaziamento do Centro. Só muito recentemente houve uma modificação em parte dessa política. O Rio fez uma política suicida nos anos 70, quando proibiu moradia no Centro", pondera o urbanista.

Um dos elementos que atribui vitalidade a um bairro ou centro, é que ele funcione 24h. "Tendo gente morando, você vai ter comércio e serviços que dão apoio a essa população. Isso torna o convívio interessante nesse espaço público. É muito bom que o Centro tenha local de moradia alcançável para diversas classes sociais", analisa.

Apesar de ter sido anunciado como um empreendimento de luxo, os arquitetos discordam da categoria. "Os apartamentos entre 30 e 48 metros quadrados são pequenos. Dificilmente será de luxo. Pode ser para classe média", avalia o professor da UFRJ. O tamanho dos apartamentos comportam pessoas sozinhas ou casais.

A coordenadora de Política Urbana do CAU pondera que as dimensões são de estúdios e quartos e sala compactos. A arquiteta alerta que esse tipo de empreendimento pode atrair investidores, que coloquem os imóveis para locação, em vez de famílias.

"Os lançamentos que tem acontecido são estúdios muito pequenos que a gente vê como mais voltados para investidores, para aluguel de temporada. Isso não é suficiente para sustentar esses serviços familiares: livraria, restaurante, padaria. Ainda assim, existem outras ofertas de estúdios mais atrativas do que no Centro, como em Copacabana", analisa.

A demanda de moradores do Centro não é de alto luxo, mas de famílias de classe média que querem melhorar a qualidade de vida, diminuindo o tempo gasto no trânsito, explica a arquiteta. "Estúdios são empreendimentos mais para investidores do que para famílias. O perfil que gostaria de morar no Centro é classe média baixa, que não corresponde ao valor oferecido nesses empreendimentos", ressalta Rose.

Se de um lado a classe média não pode pagar a faixa de R$ 13 mil por metro quadrado, a classe alta tenderia a optar por imóveis na Zona Sul, avalia Rose. "Quem tem recurso para comprar o metro quadrado desses novos empreendimentos dificilmente optaria pelo Centro, a não ser que seja investimento. O lugar não tem nada para oferecer: supermercado, farmácia, padaria, cabeleireiro. Até que a classe média se disponha a residir no centro, é preciso que haja a transformação", comenta.

O programa Reviver Centro fez dois anos em julho e o processo de transformação é lento, trabalhoso, mas não é impossível. "Foram tantos anos de proibição de residências no centro para que fosse um centro de negócios e financeiro, que houve essa dificuldade para implementar moradias. Com demanda para imóveis comerciais, o mercado imobiliário só consegue viabilizar esses estúdios pequenos, que não comportam a família e que têm valor alto para quem gostaria de morar no Centro", finaliza Rose Compans.

Venda do 'A Noite'

O Edifício Joseph Gire, conhecido como 'A Noite', na Praça Mauá, no Centro do Rio foi vendido pela prefeitura do Rio. O imóvel foi adquirido do Governo Federal no dia 31 de março por R$ 28,9 milhões. Agora, conforme estimado em contrato, o grupo ganhador da concorrência deverá repassar à prefeitura metade dos lucros que forem gerados pelos incentivos do projeto municipal Reviver Centro, cerca de R$ 24 milhões.

Em suas redes sociais, o prefeito Eduardo Paes comentou o investimento e rebateu as críticas da época em que o prédio histórico foi comprado.

"É um passo decisivo para a revitalização da região central e da Zona Portuária. Quando a gente comprou, teve um monte de gente que reclamou que a prefeitura estava gastando para comprar prédio. Resolvemos documentação e vendemos. São 31 milhões que vão entrar na conta da prefeitura para a gente investir em Saúde, Educação, Transportes, revitalizando a região", afirmou o prefeito.

Durante a apresentação do projeto luxuoso, os arquitetos responsáveis Duda Porto e André Alvarenga mostraram que o prédio terá 424 apartamentos entre 30 e 48 m², 23 unidades duplex no 21º andar, implantação de um bar no 22º andar com lounge aberto ao público, salão gourmet, salão de jogos, cinema, spa e academia exclusivos para os moradores.

O projeto prevê ainda acesso público ao terraço, em um futuro restaurante com vista para a Praça Mauá, e um centro cultural da Rádio Nacional.
Construído na década de 1920, o edifício é tido como um dos grandes marcos da arquitetura brasileira. Considerado o maior prédio da América Latina na época da sua inauguração, em 1929, foi batizado em referência ao jornal homônimo sediado no local. O arranha-céu de 22 andares e 102 metros de altura, em estilo art déco, também foi a casa da vanguardista Rádio Nacional, emissora de maior audiência do país na época, além de consulados e do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

Inaugurado de frente para a Praça Mauá e com o cenário da Baía de Guanabara ao fundo, o edifício foi projetado pelos arquitetos Joseph Gire, nome por trás do Copacabana Palace e do Hotel Glória, e Elisiário Bahiana. Em 1936, recebeu a moradora mais ilustre: a Rádio Nacional.

Pelos corredores dos quatro andares ocupados pela emissora passaram nomes como as cantoras Emilinha Borba, uma das intérpretes mais populares da Rádio Nacional, e Marlene, além de outros grandes artistas da música popular brasileira como Dalva de Oliveira, Luiz Gonzaga, Cauby Peixoto e Elizeth Cardoso.

Foi no ano de 1940, por conta de dívidas com o Governo Federal, que o prédio passou a ser propriedade da União. Tombado em 2013 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) pelas suas características arquitetônicas e históricas, tornou-se ícone da região portuária da cidade.