Rio - Gleice Kelly da Silva, de 25 anos, que teve a mão e o punho esquerdos amputados após dar à luz em um hospital particular na Zona Oeste, ainda não conseguiu a prótese para retornar à rotina, um ano depois do ocorrido. Diante da falta de celeridade da Polícia Civil em concluir o inquérito contra o Hospital da Mulher Intermédica de Jacarepaguá, ela encara desafios diários para criar os três filhos. De acordo com a 41ª DP (Tanque), a investigação está em andamento e é acompanhada pelo Ministério Público do Rio (MPRJ).
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Gleice diz que por causa da amputação não conseguiu amamentar o filho recém-nascido e nem cuidar integralmente dele, como fez com os demais. A criança completa 1 ano no próximo dia 10, data que para ela marca uma mudança drástica em sua vida. Gleice tem outros dois filhos, de 5 e 9 anos, que também são criados por ela.
"Só quero colocar um ponto final nisso, mas enquanto o processo não andar não vai ter. Em um ano eu tive que me reinventar, tive que aprender a fazer o meu cabelo com uma mão só, aprendi a cuidar de um bebê de uma forma completamente diferente. Pequenas coisas fazem a diferença, como por exemplo eu me preocupar em comprar uma roupinha para o bebê que eu consiga colocar sozinha. Muita coisa mudou", desabafa Gleice.
Além das dificuldades nas tarefas diárias, a mulher também precisou ter um suporte psicológico constante para superar o trauma. Ela conta que no início o filho mais velho tinha receio de se aproximar dela por causa da amputação. "Meu filho não queria chegar perto de mim, eu também tinha muito medo de como as pessoas iam tratar eles por causa do meu estado. Isso tudo mexeu muito com meu psicológico, imagina você estar com o seu marido andando na rua e se sentir diferente? Isso hoje não me frustra mais, mas foram coisas que foram trabalhadas com psicólogos", diz.
Em fase de reabilitação, ela se questiona como vai conseguir passar pelo processo de adaptação sem a prótese. "Estou desde junho com o laudo do médico que indica que eu estou apta a usar a prótese, mas ainda não consegui", conta. A prótese custa cerca entre R$ 120 mil a R$ 300 mil e a Justiça ainda não determinou que o hospital particular disponibilize o equipamento à paciente.
A advogada de Gleice Kelly, Monalisa Gagno, explica que a defesa entrou com três liminares na Justiça pedindo o deferimento da prótese, mas não obteve sucesso. "Entramos com três liminares no processo judicial para conseguir a prótese, mas foi indeferido. O que a Justiça deferiu foi a reabilitação", diz. Para contornar a situação, Gleice tentou arrecadar dinheiro através de uma vaquinha online, mas não conseguiu atingir o objetivo por causa do alto valor.
Monalisa também reclama da demora no andamento do inquérito. "Ninguém mais foi ouvido. A policial que estava com o inquérito não está mais na delegacia. Está tudo parado desde janeiro", completa.
A 41ª DP registrou o caso como lesão corporal culposa. O Cremerj abriu no dia 16 de janeiro deste ano uma sindicância de ofício para apurar o caso e, após a conclusão da sindicância, um processo ético-profissional (PEP) poderá ser instaurado para julgar o ocorrido. O processo segue em andamento no conselho.
Procurado pela reportagem, o Hospital da Mulher Intermédica de Jacarepaguá afirmou que "segue garantindo à paciente Gleice Kelly da Silva as melhores condições de assistência à sua recuperação, abrangendo profissionais à disposição para prestar acompanhamento médico, apoio psicológico, serviços de fisiatria, deslocamento e alimentação até a presente data, bem como todo suporte necessário de acompanhamento médico para seu filho".
A unidade disse ainda que "permanece solidária com Gleice e sua família e segue disposta a prestar todo tipo de esclarecimento e apoio clínico". O Hospital ressaltou que não comentará questões processuais em curso em razão do processo estar em segredo de justiça.
Relembre o caso
Gleice Kelly estava grávida de 39 semanas quando deu entrada no Hospital da Mulher Intermédica de Jacarepaguá, no dia 9 de outubro do ano passado. O bebê nasceu no dia seguinte de parto normal e totalmente saudável, mas o procedimento provocou uma hemorragia interna na vítima. Para tentar conter o sangramento, a equipe médica fez um acesso venoso pela mão da paciente.
"A Gleice Kelly entrou na mesa de parto para ter o terceiro filho, de parto normal e foi um sucesso, a criança nasceu saudável, mas ela teve um sangramento, uma hemorragia que não conseguiam cessar. Então fizeram um acesso venoso e começaram a colocar bastante medicação ali para tentar conter a hemorragia. Só que, o que a gente entende é que esse acesso saiu da veia dela e começou a inchar a mão, trazer dores e inchaço, e ficou vermelho", disse a advogada Monalisa Gagno.
Monalisa ainda relata que, mesmo com pedidos da família, a unidade médica não buscou entender os motivos do inchaço na mão de Gleice Kelly. "Eles colocaram um balão de Bakri, que fica dentro do colo do útero da mulher, para tentar conter a a hemorragia. Eles se preocuparam com a hemorragia e não se preocuparam com o acesso venoso, que acabou saindo da veia e necrosando a mão dela, o que fez ela perder o membro e quatro dedos acima do do punho".
A jovem chegou a ser transferida para uma segunda unidade de saúde da mesma rede hospitalar, desta vez em São Gonçalo, na Região Metropolitana. No local, Gleice ficou internada no CTI e teve o membro amputado.
Laudo aponta omissão de hospital e demora no atendimento
De acordo com o exame do corpo de delito do Instituto Médico Legal (IML), ao qual o DIA teve acesso, não foi encontrado pelo perito registro de qualquer procedimento no membro superior esquerdo, como punção venosa profunda. Também não foi descrito no prontuário nenhuma anormalidade, sinais ou sintomas do membro na madrugada do dia 11 de outubro.
No entanto, Gleice afirma ter provas de que o membro foi submetido a um acesso venoso às 4h38 do dia 11 de outubro, horas antes de ser transferida para a unidade em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio. A paciente fez fotos do acesso venoso na mão esquerda.
O perito também apontou no laudo que houve demora no procedimento de emergência, tendo a urgência, então, da amputação do membro. "O longo tempo de evolução da isquemia [presença de um fluxo de sangue e oxigênio inadequado no membro, neste caso, na mão esquerda da paciente] até a realização do procedimento de emergência, cerca de 20 horas, impede que o quadro seja revertido. Nada mais podendo ser feito, a amputação é a única opção", escreveu o profissional.
O perito concluiu no laudo que a hemorragia uterina pós-parto e a isquemia do membro superior esquerdo causaram a necessidade da amputação da mão e punho da paciente.
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