Raquel Zeitouni, Clara Roizenblit e Hana Levi voltam de Israel em voos da FABMarcos Porto/Agencia O Dia

Rio – No último dia 23, pousou no aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador, Zona Norte, o oitavo e último voo de repatriação de brasileiros em Israel, enviado pela Força Aérea Brasileira (FAB) na Operação Voltando em Paz, com 209 passageiros, incluindo 12 crianças de colo, todos fugindo da guerra entre Israel e o grupo islâmico Hamas, iniciada no dia 7 de outubro.
"Sinto que estou abandonando Israel de certa forma, mas a situação está sem controle", desabafa a estudante Hana Levi, de 17 anos, que estava fazendo intercâmbio no país e teve que voltar às pressas para o Rio, sua cidade natal, no voo da FAB. Mesmo tendo vivenciado um cenário de guerra e vários disparos de sirene de alerta após lançamentos de foguetes e mísseis em direção a Israel, a jovem gostaria de ter continuado no país: "Meus pais estavam muito preocupados aqui no Brasil, então a decisão de eu voltar foi deles", completa.
Hana estava no meio de uma reza, em uma sinagoga da cidade de Haifa, no Norte, quando o Hamas, organização extremista do Estado da Palestina, iniciou os ataques ao vizinho árabe. Por ser sábado, chamado pelos judaicos de “Shabat”, dia dedicado ao descanso, os judeus, entre outras restrições, não trabalham e não podem utilizar o telefone. Por isso, Hana estranhou quando viu uma movimentação estranha no meio da reza, com pessoas fazendo uso do celular e também indo embora da sinagoga, principalmente homens. Ela sabia que algo grave estava acontecendo.
Em companhia da amiga Raquel Zeitouni, 17, também brasileira e intercambista, voltou para a casa da família israelense onde estavam hospedadas para o feriado de Sucot, também conhecido como "Festa dos Tabernáculos" ou "Festa das Cabanas" (ela e Raquel moram na cidade de Kfar Saba, na região central), para ajudá-la com o filho e a casa, já que o marido havia sido convocado urgentemente para o exército: "Ficamos muito aflitas e tensas. A situação foi tão grave que até os reservistas foram chamados", afirma Raquel. Nas primeiras 48 horas de guerra, Israel chegou a convocar 300 mil da reserva.
Com medo, Raquel e Hana ainda ficaram uma semana em Haifa, apenas com a roupa do corpo. Ensaiaram uma saída para levar doações para uma família que havia chegado do Sul, mas a sirene de alerta tocou no meio do caminho, e elas tiveram que se abrigar em um prédio em obras. Por conta do temor, voltaram para casa correndo. Só saíram de lá quando uma tia de Hana as buscou de ônibus e as levou para outra cidade: "Começamos a tremer e ficamos muito assustadas. Só confiamos na vinda da tia de Hana, pois tínhamos muito medo de infiltração de combatentes do Hamas dentro do território israelense", diz Raquel.
A jovem retornou ao Brasil no mesmo voo da Força Aérea Brasileira em que estava Hana: "A ideia da minha volta teve que ser amadurecida pelos meus pais. Mesmo sendo um país em guerra, eu me sentia muito segura lá em Israel. Ainda assim, meus pais me enviaram de volta em um avião da FAB. Porém, eu pretendo retornar para morar em Israel após tudo isso. O que me aflige é não ter ideia quando poderei voltar".
O clima do oitavo voo da Operação Voltando em Paz foi descrito pelas meninas como um misto de sentimentos:
"As pessoas estavam muito aliviadas e felizes, a maioria era residente de Israel que tinha uma oportunidade de voltar para casa", conta Raquel. Hana teve a mesma percepção sobre os passageiros do voo: "As pessoas estavam tranquilas que estavam voltando para casa, muitas pessoas que moram em Israel tomaram a decisão de voltar para o Brasil, mas ninguém sabia ao certo quando iria retornar para o Oriente Médio", afirma.
É o caso da professora de escola infantil Débora Gielman, 27, que retornou ao Rio no mesmo voo de Hana e Raquel, com o filho israelense de dois anos e sete meses, e que pretende recomeçar a vida no Brasil. Para trás, além da casa e do trabalho, ela teve que deixar a mãe, de 69 anos, que decidiu ficar em Harish, cidade a 400 metros da fronteira com a Cisjordânia, onde moravam desde 2015.
"Eu estava trabalhando com crianças, em uma creche do Governo, que fechou por causa da guerra. Mas as contas não pararam de chegar, não teríamos ajuda do governo e nem como conseguir trabalho, pois está tudo fechado. Minha mãe não trabalha, eu tomava conta de tudo sozinha. Então, não tinha muito o que fazer a não ser aproveitar o voo da FAB para voltar para o Brasil”, relata Débora. "A partir do momento que eu vi as notícias e li que o grupo extremista está procurando crianças, idosos e mulheres, percebi que a minha família estava em risco. Fora que o meu filho estava ficando machucado com a situação. Até para ir o parquinho, ele criou trauma, ficava tenso", completa.
A decisão de a mãe não retornar foi tomada pela própria no dia da viagem. Débora inscreveu a família para o oitavo voo na FAB e, já no dia seguinte, teve a notícia de que os seus nomes estavam na lista. A mãe de Débora, então, disse que não daria as costas para o país que lhe deu oportunidades. Débora retornou, pois não tinha emprego em Israel e por se sentir mais segura aqui:
"No sábado, no primeiro dia de ataque do Hamas, o aplicativo de sirene começou a apitar de uma maneira absurda e passou a apitar direto. Eu comecei a ter muito medo, a sentir aflição e aperto no peito. Pensava: 'deve ser só hoje, as coisas vão melhorar', mas as coisas só pioraram. Nunca senti um medo assim na minha vida. Guerra em Israel sempre teve, mas não estava preparada psicologicamente para o que aconteceu. O maior medo não é nem o míssil, pois 90% são interceptados, o problema é que Israel perdeu totalmente o controle. A gente se vira com os problemas daqui, com os problemas de lá não tem como se virar", diz a jovem, que está procurando vaga em creche, para o filho, e trabalho para ela, pois terá que pagar o aluguel e as contas da mãe que ficou em Israel.
Alguns meses antes, Débora havia contraído uma dívida devido a uma ligação clandestina de energia elétrica feito por um vizinho, morador do mesmo edifício onde residia. Ela descobriu sobre o 'gato' ao fotografar o relógio de energia durante uma mudança de prédio, e foi cobrada da companhia de energia elétrica o valor da luz furtada pelo vizinho. O procedimento da empresa foi bloquear cheques e cartões de Débora até ela quitar o débito. Sem dinheiro, Débora pediu ajuda aos amigos, que fizeram uma vaquinha e juntaram o valor. Porém, a brasileira contratou um advogado para retirar a dívida do nome dela e processar a dona do apartamento e o vizinho que furtou a energia. Ela só conseguiu vir para o Brasil porque não tinha mais essa dívida em Israel por conta da vaquinha, mas ainda assim o processo teve que ser deixado de lado.
No Rio, ela fez uma outra vaquinha online para pedir ajudar para se manter enquanto não consegue trabalho. Até a última quinta-feira (26), às 15h20, o financiamento coletivo já tinha arrecadado R$ 7.298.
Em um cenário de completa falta de perspectiva causado pelo conflito que não tem data para acabar, a oferta de voos da FAB também foi crucial para Clara Roizenblit, 17, que estava em Israel há um pouco mais de dois anos. A jovem estava cursando o terceiro ano do ensino médio em uma escola da cidade de Netanya e ainda não havia decidido se ficaria em Israel ou se voltaria para o Brasil. Muito da indecisão de Clara girava em torno do custo alto da passagem aérea, que a mãe não teria como arcar posteriormente. A insegurança da vida sozinha no país após os estudos somada ao medo da guerra fez com que a estudante optasse por voltar para o Rio: "Fico triste porque não vou voltar para Israel e não vou terminar os estudos na minha escola", relata.
Ela deixou muita coisa para trás, no dormitório estudantil, e pediu a uma amiga para doar ou jogar fora, uma vez que não conseguirá mais retornar.
Por conta do feriado do Sucot, Clara estava na casa de Samantha Wexler Blanc, 28, uma amiga brasileira, em Holon, no Sul, quando foi acordada por ela às 6h no dia 7 de outubro, por causa do disparo de alarme do aplicativo de sirene de alerta de mísseis do governo. Junto com outras pessoas que estavam na casa, desceram para o bunker, no subsolo do prédio, mas ainda sem imaginar a dimensão do ocorrido. "A gente desceu relativamente normal, foi calmo, pois já passamos por isso, já tivemos que fazer isso algumas vezes", diz Samantha. Quando subiram de volta para o apartamento, viram as notícias do que aconteceu na festa de música eletrônica Universo Paralello, um dos alvos do ataque do Hamas em território israelense e da invasão do grupo de combatentes. "Fiquei em choque, foi bem difícil. O governo começou a falar que era para não sair, ficar fechado em casa, não abrir a porta nem para a polícia, só para conhecidos. O pânico começou ali. Neste dia, tivemos que ir para o bunker sete vezes", lembra Samantha, que trabalhava em uma escola infantil.
Quando viu a possibilidade de voltar para o Brasil com a FAB, Samantha não pensou duas vezes, mesmo sem saber quanto tempo ficará no país: "Fiz uma mala pequena e vim, mesmo sem saber do futuro, quanto tempo essa situação vai durar. Isso que é o mais difícil, pois fiz a minha vida lá, morava sozinha, tinha o meu trabalho, e agora tive que voltar para a casa dos meus pais, sem ter onde deixar a minha cachorra. Estou bem triste, tentando seguir a minha vida aqui, sem saber o que pode acontecer, isso é o que mais me aflige. Penso muito nas vidas que se perderam e que estão sequestradas", desabafa Samantha. Em Israel, a jovem estava no processo de validação do diploma de arquiteta, adquirido no Brasil. "Meus dias eram muito cansativos pelo esforço físico do trabalho e o mental da língua, mas tudo o que eu mais queria era poder ter tudo isso de volta".
Clara voltou para o Brasil no segundo voo do programa de repatriação. Um pouco antes de embarcar, enquanto passava a bagagem pelo aparelho de raio-x, uma equipe do aeroporto ordenou, aos gritos, que a fila fosse desfeita e todos se jogassem no chão. Algumas pessoas, assustadas, correram para o bunker do local, mesmo sem saber o que estava acontecendo. Só após o ocorrido que Clara teve conhecimento de que um míssil iria cair perto do aeroporto, mas foi interceptado a tempo. No avião, as pessoas estavam gratas ao Itamaraty pela viagem de volta, mas ainda assim ninguém estava tranquilo: "Nós tínhamos que sair de Israel primeiro, pois o avião poderia ser atacado. Quando já tínhamos saído do território israelense, olhamos para trás e vimos clarões de bombas e mísseis no céu. Nesta hora, as pessoas ficaram muito aliviadas por terem saído do país", conta.
O carioca Allan Chor, 22, voltou ao Brasil no mesmo voo de Clara. Estudante de arquitetura, ele estava há seis meses em Israel, fazendo estágio na área: "Eu voltei pela família, nada mais, pois eu estava preocupado com eles. Os meus pais estavam desesperados com a situação", afirma. Por meio de desentendimentos com amigos brasileiros e israelenses que estão no exército, Allan ficou receoso de contar que estava saindo de Israel: "Eu tinha acabado de falar com amigos que estavam fazendo patrulha na Faixa de Gaza, e eu não queria falar com eles que eu estava voltando. No fim, eles entenderam a situação de risco e não me julgaram".
A sua percepção de clima na viagem de volta foi diferente da de Clara: "A atmosfera estava dividida. Os judeus estavam muito tristes, ninguém sorrindo, nem cantando, mas os turistas cantavam aliviados. Os judeus acham que estão abandonando a sua terra", diz.
O Ministério das Relações Exteriores anunciou, na última segunda-feira (23), que não prevê mais voos adicionais para brasileiros em Israel. A alegação do Governo Federal é que a operação do aeroporto de Ben Gurion segue regular. A orientação é de que todos os brasileiros que possuem passagens aéreas, ou condições de adquiri-las, embarquem em voos comerciais. O oitavo e último voo de repatriação de brasileiros em Israel pousou, na madrugada de segunda, no Rio. No total, desde o dia 10 de outubro, 1413 pessoas, incluindo 3 bolivianas, além de mais de 50 animais domésticos, deixaram Israel em voos da FAB na Operação Voltando em Paz.
O jornalista Gustavo Gandelman Schtruk, 28 anos, que mora em Israel há três, se inscreveu para voltar para o Brasil em um voo da FAB, com a mãe, mas não conseguiu vaga. Ele decidiu se mudar para Israel por ter mais oportunidades de trabalho do que teria no Rio e por ter vivenciado violência urbana, furtos e assaltos na cidade. Chegou a se tornar israelense, um direito dos judeus: "Não me arrependo de ter vindo morar em Israel. A questão de ir para o Rio é tranquilizar a minha família que está lá, poder abraçar o meu pai e a minha avó. Porém, os valores das passagens aumentaram muito, elas já eram caras antes do conflito, agora estão inviáveis", afirma.
Sobre a guerra, ele lembra que, no início, ficou sem entender o tamanho da conjuntura: "Não sabia se era algo pontual ou se era uma guerra. Passava isso pela minha cabeça, se iria parar ou continuar. Sempre tem mísseis perto das festas islâmicas, os islâmicos costumam lançar ou fazer atentados nesta época, mas desta vez não estava perto de nenhuma festividade, então era estranho o que estava acontecendo. Assisti aos noticiários, vi que não eram só foguetes, tinha também invasão por terra, algo era sem precedentes, que ainda não tinha acontecido nessas condições, algo desesperador", descreve.
Gustavo lembra de uma situação de risco que passou nesta guerra: "Eu estava com um amigo brasileiro em um ônibus, em Tel Aviv, quando o aplicativo do governo, que por meio de uma sirene alerta sobre um míssil, começou a tocar. Pedimos, então, ao motorista que abrisse a porta, saímos correndo e um monte de gente correu para um lugar seguro. Fomos juntos, para o mesmo abrigo das outras pessoas do ônibus. Foi aí que ouvimos o 'bum' do míssil sendo interceptado. Depois disso, todo mundo entrou de volta no ônibus e seguiu a vida".
Seguir com a vida, em Israel, é um desejo de Hana e Raquel quando a guerra acabar: "Eu estou muito mal, muito aflita. A primeira coisa que faço quando acordo é olhar o meu celular, as notícias sobre o que está acontecendo. Estou muito ansiosa com isso, e os meus pais deixaram claro que eu não volto com a situação de agora”, diz Raquel. "Mas somos um povo de muita fé, independentemente de qualquer coisa, meus familiares sentem que o lugar mais seguro pra estar é em Israel, e cuidar da nossa terra", finaliza Hana.