"Ter ou não ter filhos?" Essa é uma questão que vem sendo discutida ao longo dos anos. Se antes a mulher não se sentia uma pessoa realizada por não vivenciar a maternidade, essa máxima vem, aos poucos, mudando conforme a sociedade evolui e novos formatos de família vão surgindo. No Brasil, está acontecendo uma queda expressiva na taxa de fecundidade. De acordo com o Observatório Nacional da Família, a média de filhos caiu de 2,32 por mulher em 2000 para 1,57 em 2023, com previsão de chegar a 1,47 até 2030.
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A escolha de não ter filhos, cercada por pressões sociais, inspirou a jornalista Amanda Dantas a escrever o livro 'Sem filhos, sem culpa! Uma análise sobre a decisão de não ter filhos'. Publicado pela editora Appris, a obra aprofunda esse debate em uma sociedade que ainda valoriza a maternidade. O lançamento aconteceu neste mês em Petrópolis, no Rio de Janeiro.
Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP), Amanda Dantas analisa, com base em ampla revisão de literatura e entrevistas, os fatores que influenciam homens e mulheres a optarem pela não parentalidade. Entre os aspectos abordados na obra, destacam-se o impacto da independência financeira e da ascensão feminina no mercado de trabalho, o papel da rede de apoio (ou a falta dela) e as pressões sociais enfrentadas por aqueles que optam por não ter filhos.
"A sociedade construiu a ideia de que crescer, casar e ter filhos é a única forma de alcançar a felicidade e a plenitude. Eu discordo. Não quero ter filhos, tenho muitos amigos que também não querem, e quis entender a fundo os processos decisórios por trás dessa escolha. Meu objetivo com essa obra não é criar um novo imperativo de que não ter filhos é o certo, mas sim abrir espaço para que as pessoas possam decidir livremente qual caminho seguir, sem culpa e sem julgamentos, incluindo os homens nessa conversa", afirma Amanda, também participante do Fórum do Campo Lacaniano Região Serrana do Rio de Janeiro.
"As histórias pessoais vão além de narrativas individuais e se conectam a questões sociais mais amplas, como o impacto do gênero nas expectativas da sociedade. Enquanto os homens enfrentam menos cobranças sobre a paternidade, as mulheres costumam lidar com um julgamento mais severo, sendo frequentemente questionadas sobre sua realização pessoal e futuro", explica Amanda.
O marcador social de raça também merece destaque nesse debate. As mulheres com mais probabilidade de adiar a maternidade são solteiras, brancas, moradoras de áreas urbanas, metropolitanas e da região Sudeste do país, motivadas por aumentar o tempo dedicado aos estudos e em alcançar estabilidade profissional. Já as mulheres negras enfrentam desafios adicionais relacionados ao racismo e à desigualdade social.
"Uma das entrevistadas expressou seu temor diante da maternidade, destacando o perigo constante enfrentado por pessoas negras na sociedade. Suas reflexões evidenciam como o racismo estrutural afeta não apenas a experiência cotidiana, mas também as decisões reprodutivas, criando um ambiente de insegurança e preocupação extras", completa a autora. Em entrevista ao jornal O DIA, a escritora Amanda Dantas falam porque resolveu abordar essa questão, que está em voga nos dias atuais.
O DIA: Você nunca teve vontade de ter filhos ou isso aconteceu com o decorrer do tempo? Atualmente, muitas mulheres não têm.
Amanda Dantas: Nunca tive vontade de ter filhos. Na adolescência, cheguei a considerar a possibilidade, mas apenas porque via a maternidade como um caminho “natural” da vida, já que quase todo mundo seguia esse roteiro. Mas nunca foi um desejo. Um dos mitos mais recorrentes sobre a não maternidade é a ideia de que, com o tempo, vem o arrependimento, especialmente para as mulheres, por conta do chamado 'relógio biológico'. Essa narrativa desconsidera que a parentalidade não se limita à reprodução. No livro, não há distinção entre filhos biológicos e adotados, justamente porque, se o desejo de ter filhos surgisse mais tarde, a adoção continuaria sendo uma possibilidade. O arrependimento simplesmente não aconteceu comigo, assim como não aconteceu com muitas pessoas entrevistadas na pesquisa que resultou no livro. Pelo contrário: a cada ano, elas reafirmam que não ter filhos foi a melhor decisão para suas vidas.
O DIA: Muita gente opta por não ter filhos, mas algumas pessoas afirmam que a mulher biologicamente foi preparada para ter os seus rebentos e que isso é balela. O que você diria para a pessoa que tem essa opinião?
Amanda Dantas: Para mim, ter um filho deve ser fruto de um desejo. Se esse desejo existe, ter filhos é uma escolha válida. Da mesma forma, não tê-los também é uma decisão legítima. Todos os dias fazemos inúmeras escolhas, e a parentalidade é apenas uma delas, não um destino obrigatório. Durante minha pesquisa sobre a não parentalidade, constatei que o debate sobre ter filhos ainda é fortemente influenciado por conceitos cristãos de reprodução, que associam a maternidade e a paternidade a um dever quase inquestionável. Mas existem inúmeras outras religiões e filosofias com visões distintas sobre família e propósito de vida.
O DIA: Antigamente todos diziam que quando você não é mãe falta algo a ser realizado, você acredita que essa ‘’fala’’ foi por água abaixo ou ainda existe muito preconceito com as mulheres que não têm filhos por opção mesmo?
Amanda Dantas: Essa fala persiste, mas gosto de questioná-la com algumas reflexões: todas as mães do mundo se sentem plenamente realizadas? Para mulheres e homens que têm filhos, não há faltas? A ideia de que apenas quem não tem filhos sente alguma ausência ignora que todas as pessoas têm suas próprias faltas, que variam de acordo com seus desejos e prioridades. Não ter filhos não significa uma falta, assim como tê-los não garante plenitude.
O DIA: Apesar de a taxa de fecundidade ter caído, percebemos que as classes menos favorecidas continuam tendo mais filhos do que as outras. Você acha que seria necessário um planejamento familiar?
Amanda Dantas: Sem dúvida o planejamento familiar é importante, mas a desigualdade social no nosso país é profunda e vai muito além da questão do planejamento familiar. A educação sexual nas escolas, por exemplo, é fundamental para que meninas e meninos compreendam desde cedo não apenas a biologia da reprodução, mas também questões sobre consentimento, métodos contraceptivos, construção de relacionamentos saudáveis etc. Em Sem filhos, sem culpa!, apresento dados que evidenciam transformações importantes no cenário da parentalidade, entre eles a redução do número de filhos entre mulheres mais jovens e, em contrapartida, o aumento da maternidade após os 40 anos. Esses dados revelam que a decisão de ter filhos está cada vez mais ligada a condições individuais e estruturais, como estabilidade financeira e avanços da reprodução assistida, mostrando como as escolhas reprodutivas estão em constante mudança e precisam ser analisadas de forma ampla e contextualizada.
O DIA: Você vê como um desafio 'bancar' a ideia que a mulher pode, de fato, ser feliz sem a maternidade?
Amanda Dantas: Ter ou não filhos não define caráter, bondade ou realização pessoal. O que nos torna melhores ou piores não é a parentalidade, mas sim as escolhas que fazemos e o impacto que deixamos no mundo. Então, acredito que o verdadeiro desafio está em desconstruir as expectativas impostas sobre as mulheres, para que possamos fazer escolhas sem culpa, sem medo do julgamento e, principalmente, sem a obrigação de justificá-las. Desde que comecei a divulgar o livro, tenho recebido inúmeras mensagens de mulheres com relatos como: 'Ouço que não sou mulher de verdade porque não sou mãe' ou 'Dizem que vou morrer sozinha por não ter filhos'. A pressão social é evidente e desigual. Já fui questionada sobre não ter filhos até no velório do meu avô. Meu marido estava ao meu lado, mas ninguém fez a ele a mesma pergunta. Isso evidencia como a maternidade ainda é vista como uma obrigação majoritariamente feminina, enquanto os homens têm sua identidade e valor desvinculados da paternidade.
Muitas pessoas baseiam seu julgamento em uma régua moral subjetiva, sem qualquer fundamento real. Se ter filhos fosse um indicativo de caráter, bastaria olharmos para figuras como o padre Júlio Lancellotti, que não tem filhos e dedica sua vida ao cuidado dos mais vulneráveis, ou para Martin Luther King, que teve quatro filhos e deixou um grande legado. Da mesma forma, a história nos mostra que pessoas que causaram destruição, como Adolf Hitler, não tiveram filhos, enquanto outras que também carregam um histórico questionável, como Donald Trump, os têm.
'Não sinto nenhuma culpa'
A também escritora Roberta Escansette, de 43 anos, é bem desencanada em relação a não ter filhos. E não sente culpa nenhuma porque não se rendeu à maternidade. "Acho que foi o destino me conduzindo. Até os 35 por uma questão social, e ainda fiquei na dúvida se eu engravidava ou não", diz ela, que resolveu focar em outras coisas. "Também comecei a ver um mundo tão doido. Acabou virando uma escolha. Estamos trabalhando muito e aí existe uma questão do cansaço dos pais muito grande. Para conseguir ficar mesmo atento aos detalhes de dia a dia de um filho, eu acho um desafio muito grande", avalia.
A profissional vê essa coisa da obrigatoriedade de ser mãe como pressão. "Sou bem resolvida quanto a essa questão, mas a mulher se casa e já perguntam quando vai ter filho. A pressão é maior para nós do que para os homens. Hoje em dia as mulheres estão optando em não ter filhos até por causa da questão financeira. Acho que é uma questão de escolha que deve ser respeitada e não nos diminuindo enquanto mulheres’’.
Especialistas abordam o tema polêmico
O profissionais Adriana Santiago, psicóloga especialista em Neurociência e escritor, Matheus Karounis, mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC - Rio), e Andréa Vicente Barreiro, psicóloga clínica e formada em Terapia Familiar Sistêmica, falam, em entrevista ao jornal ODIA, sobre o assunto.
O DIA: Muitas mulheres optam por não ter filhos e são criticadas por essa decisão. Do ponto de vista psicológico, existe algum motivo para essa decisão?
Adriana Santiago: a pergunta quem é que critica, que tipo de sociedade ou o que restou de uma sociedade tradicional patriarcal? Porque a gente está num franco processo de mudança de mentalidade, e ainda bem. As mulheres agora realizam por outros viéses, por exemplo, com a profissão, com a vida acadêmica, então há uma realização que se dá não necessariamente na criação de um filho, não é verdade? Até porque as mulheres que não têm exatamente talento e eu chamo de talento mesmo e disposição para ter filhos optam por não ter porque muitas mulheres sem esse talento tiveram filhos e deixaram marcas indeléveis na criança porque não tinham a vontade. Existe a crença que cai por terra que é quem vai cuidar de mim. As mulheres atuais elas pensam o seguinte vou guardar um dinheiro e quando eu precisar de alguém que cuide de mim eu contrato uma enfermeira.
Matheus Karounis: Existem diversos motivos psicológicos válidos para uma mulher optar por não ter filhos. Entre eles: priorização do desenvolvimento profissional, desejo de manter independência e liberdade pessoal, ausência do instinto maternal (que não é universal nem obrigatório), consciência sobre a responsabilidade que a maternidade exige, experiências prévias familiares que influenciaram esta decisão, ou simplesmente a realização pessoal não estar atrelada à maternidade. É fundamental entender que esta é uma escolha individual e legítima, que merece ser respeitada.
Andréa Vicente Barreiro: Quando nasce uma mulher, nasce uma mãe? Há uma ligação direta entre mulher e mãe? Essa ligação é uma construção social. Fato! O fato de se nascer uma mulher não faz dela uma mãe e a mulher é dotada de uma subjetividade que pode decidir ou não ser mãe. Podem existir várias causas conscientes e inconscientes que provocam essa tomada de decisão, causas conscientes que podem ir de questões financeiras, o fato de não querer passar pelas transformações que a gravidez provoca no corpo físico, dentre outros. Fatores inconscientes relacionados a questões familiares.
O DIA: O livro Sem Filhos, Sem Culpa, da jornalista Amanda Dantas, faz uma análise dessa decisão tanto para pais quanto para mães. Na atualidade, pode acontecer de a mulher se sentir culpada porque optou por não ser mãe?
Adriana Santiago: Depende do comprometimento emocional que ela tem. Que culpa é essa? Vem de onde? Quais foram as expectativas que ela não conseguiu cumprir, provavelmente em relação à sua família de origem que cobra isso dela. Então depende do nível de saúde mental dessa mulher porque quando uma mulher, de fato, decide não ter filhos ela está amparada por questões contundentes da vida dela, por escolhas de acordo com a condução individual que ela quer dar à sua própria vida. Ela não fica ali dependendo do desejo da cultura para se realizar. Ela mesma faz seu caminho. A gente está nesse momento muito bacana de desenvolvimento.
Matheus Karounis: O sentimento de culpa pode surgir devido à forte pressão social e aos padrões culturais que ainda associam a realização feminina à maternidade. Muitas mulheres enfrentam questionamentos constantes e julgamentos de familiares, amigos e até desconhecidos, o que pode gerar ansiedade e dúvidas sobre sua escolha. No entanto, é importante ressaltar que não existe um modelo único de felicidade ou realização pessoal. O trabalho terapêutico ajuda essas mulheres a fortalecerem sua autoestima e segurança em suas decisões.
Andréa Vicente Barreiro: A mulher pode se sentir culpada na medida em que se sinta vulnerável às influências do meio em que vive, fato esse que denota uma fragilidade emocional.
O DIA: Hoje é bem comum ver mulheres na faixa etária entre 50 e 60 anos que não tiveram filhos. A que isso se deve? Uma mudança, inclusive, na forma da mulher pensar? A senhora já atendeu casos de pessoas que se sentiam pressionadas a ter filhos e não queriam?
Adriana Santiago: Está acontecendo uma mudança de transição de mentalidade. Estamos saindo de um regime patriarcal onde as mulheres, inclusive, tinham filhos para agradar os seus maridos e ficavam tomando conta da prole e não podiam trabalhar. Não estamos falando de muito tempo, mas de 1970 e 1960. Aí elas ficavam ali tomando conta dos filhos, enquanto os caras saiam e tinham amantes e faziam o que queriam . A gente está numa transição de mentalidade, e como toda transição de mentalidade, não acabou uma forma de pensar e começou outra, a gente ainda tem aqui nessa sociedade atual várias misturas de pensamento.
Então mulheres que ainda têm filhos por pressão da sociedade e outras que já entenderam que elas são seres únicos, individualizadas e podem escolher, inclusive, não parir, não ter filhos porque essa não é uma obrigação. Ninguém é mais ou menos mulher pelo fato de ter ou não filhos. Na verdade, o filho, quando nasce, é filho da mãe, o pai participa eventualmente como coadjuvante, essa é uma realidade, e quando participa, o pai ainda se acha o grande herói. Nas separações, o que é comum de acontecer? A guarda fica com a mulher, e o pai vai de 15 em 15 dias, pega no final de semana, tira uma foto, e fica tudo certo, para ele não há nada demais. Se a mulher inverte esse papel, ela é absolutamente condenada como uma mãe que não é mãe de verdade.
As mulheres que entre 50 e 60 anos não tiveram filhos pensaram sobre isso e eu acho que viveram ali justamente essa época de um movimento de liberdade muito maior, da pílula anticoncepcional que permitiu que nós, mulheres nessa faixa, decidíssemos sem sucumbir à pressão social então nós somos frutos desse movimento que traz a pílula anticoncepcional que se queima o sutiã e que diz para gente: você pode escolher, não precisa ser mãe para ser mulher inteira ser mulher grande, ser mulher de verdade.
Matheus Karounis: Esta tendência reflete mudanças sociais significativas das últimas décadas: maior acesso à educação, independência financeira, métodos contraceptivos e mudança de valores sociais. As mulheres conquistaram mais espaço para fazer escolhas baseadas em seus desejos genuínos, não apenas em expectativas sociais. Na prática clínica, atendo frequentemente mulheres que sofrem com a pressão familiar e social para ter filhos. O papel da psicoterapia é auxiliá-las a identificar seus reais desejos, fortalecer sua autonomia e lidar com as pressões externas de forma saudável.
Andréa Vicente Barreiro: O papel da mulher na sociedade vem mudando muito. A mulher de hoje tem uma liberdade de pensar, de agir, de ser bem diferente das mulheres de décadas atrás. A mulher tem conquistado essa liberdade. No passado, os casamentos eram arranjados, sendo as mulheres submetidas a atender o desejo da família, levadas a se casar e ter filhos, seguindo os padrões sociais. Com isso, muitas mulheres para não sofrer preconceito, discriminação e até para não perderem prestígio dentro da família se sentiam forçadas a cumprir essa norma por pressão. Isso tudo ocorria para não perderem seu lugar na família, sendo assim o que pode ser percebido é um adoecimento psíquico.
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