A atriz Paolla Oliveira é Heleninha Roitman em 'Vale Tudo'Globo/ Marcos Serra Lima

Socialmente aceito, o álcool entra na casa das pessoas pela porta da frente de forma natural, é bem recebido, às vezes fica por mais tempo que deve, mas nem sempre as pessoas conseguem expulsá-lo. Muitas se apegam a uma garrafa de cerveja, de uísque, de vodca ou de cachaça como se não houvesse amanhã.Na novela Vale Tudo, que estreia seu remake nesta segunda-feira, a personagem de Heleninha Roitman, atualmente interpretada por Paolla Oliveira e na primeira versão da novela por Renata Sorrah, é dessas que tem grande apreço por beber, sem nenhum controle. Assim como na trama, na vida real o excesso de álcool atrapalha quem bebe, seja no trabalho, no relacionamento amoroso e com os amigos. Familiares tentam ajudar, mas nem sempre obtêm êxito.
De acordo com 'Global Burden of Disease' (2024), cerca de 2,9% da população brasileira apresentava um transtorno por uso de álcool (TUA) em 2021, o que equivale a aproximadamente a 6 milhões de pessoas. Dados da pesquisa nacional 'Covitel2023 -Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas não Transmissíveis em Tempos de Pandemia' indicam um cenário semelhante: 6 milhões de brasileiros adultos bebem num padrão com risco de dependência (6,6% entre os homens e 1,7% entre as mulheres) em 2023.
Em relação ao número de óbitos por alcoolismo, a publicação 'Álcool e a Saúde dos Brasileiros: Panorama 2024', do CISA (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool), aponta um aumento de 32,3% de mortes por transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool no primeiro ano de pandemia (2020) em relação ao ano anterior (2019). Em 2021, foi observado o recorde da série histórica (2010-2022), com 8.830 vítimas fatais no Brasil em razão do alcoolismo o que significa que o país registrou algo em torno de uma morte por hora em razão do alcoolismo.
Presidente executivo do CISA, o psiquiatra Arthur Guerra, afirma que o estigma e a desinformação que cercam a dependência do álcool prejudicam não somente a prevenção, como também a busca por tratamento. 
"Falar mais sobre o assunto, ampliando o diálogo e a conscientização da população a respeito do tema, é uma medida importante para começar a mudar essa realidade. Mais pessoas devem ter acesso à informação de qualidade e compreender que a dependência é uma doença e há tratamento para ela. Assim, avançaremos na prevenção, no reconhecimento dos problemas associados ao abuso de álcool e na busca por ajuda", pontua.

Trajetória de dor e muita luta

A dependência ao álcool pode vir de várias formas. Que o diga a jornalista Barbara Gancia, que por anos lutou contra a doença e não bebe há mais de 10 anos. Ela relançou o livro A Saideira, compartilhando a própria trajetória de luta contra o alcoolismo. Nas páginas, Gancia conta relatos íntimos de suas experiências como dependente, como ter provado bebida alcoólica pela primeira vez aos três anos de idade, os apagões de memória após as ressacas, as escapadas durante o expediente para encher o copo, as “grandes cagadas” que marcaram suas bebedeiras, o consumo de drogas e os flertes com a morte quando dirigia embriagada.
Ela escancara o próprio dilema de quem por muito tempo não se deu conta do problema e não se enxergava no estereótipo de alcoólatra gravado no imaginário popular. A autora diz que a situação ainda é preocupante. "Pouco mudou desde a primeira edição deste livro. Somos recordistas mundiais, ou assustadoramente perto disso, em acidentes de trabalho, acidentes de trânsito, DSTs, gravidez indesejada, mortes por motivo fútil e violência doméstica. Tudo isso está intimamente relacionado ao álcool", alerta.

'Estou sóbrio há 8 anos e 4 meses'

Nem sempre a ajuda vem dos familiares. O Alcoólicos Anônimos (A.A) tem uma grande importância na vida de quem resolve frequentar as reuniões para se livrar da dependência do álcool. Há oito anos limpo, Pedro (mantivemos o sobrenome no anonimato por motivos óbvios) enfrenta a doença e conversou via email com a reportagem do jornal O DIA.

O DIA: Como você começou a perceber que não conseguia mais parar de beber?

PEDRO: Percebi que não conseguia parar de beber quando fracassava miseravelmente nos acordos que fazia comigo mesmo. No final da minha 'ativa alcoólica', prometia a mim mesmo que não iria beber em determinado dia ou horário e, por algum motivo, eu abria mão dessa ideia e ia beber, independentemente dos prejuízos que isso fosse causar. Naqueles momentos em que a chave virava na minha cabeça, nada nem ninguém podia me parar; eu ia beber de qualquer jeito.

O DIA: Quantas coisas você perdeu por causa do alcoolismo?
PEDRO: Não é possível mensurar exatamente quantas coisas perdi. Mas posso garantir que perdi muitas oportunidades de carreira, relacionamentos e amizades muito importantes. Sobretudo, perdi a minha dignidade e a minha reputação. Virei motivo de chacota e preconceito para a maioria das pessoas, um "sem futuro", uma má companhia... Com o tempo, as pessoas importantes foram desistindo e se afastando de mim. Além disso, sequelas cognitivas e emocionais fazem parte do rombo que o alcoolismo causou na minha vida.

O DIA: Quando e por qual motivo resolveu procurar ajuda?

PEDRO: O dia a dia se tornou insuportável. Eu me metia em confusões e situações cada vez mais difíceis de resolver. A sensação de solidão, vazio, angústia, paranoia e depressão estavam tomando conta de mim. Eu só conseguia abafar esses sentimentos ingerindo mais álcool e buscando mais euforia. Só que se tornou uma bola de neve, porque quanto mais eu queria anestesiar, pior era o dia seguinte; assim, eu precisava abafar mais esses sentimentos. Quando descobri que um amigo que tinha os mesmos problemas que eu estava vivendo uma vida feliz, saudável e completamente diferente do que vivia, decidi perguntar como ele tinha conseguido deixar aquela vida. Foi então que pedi ajuda pela primeira vez.

O DIA: Como é sua vida no período de abstinência?
PEDRO: Estou sóbrio há 8 anos e 4 meses, o que significa abstinência total, sem ingerir uma gota de álcool. O primeiro ano é, sem dúvidas, o mais desafiador. Passar por todas as datas festivas, de 'celebração com o álcool', que a nossa sociedade considera normais, é difícil, mas possível. Com o tempo, fui encontrando uma nova maneira de viver... saudável, feliz, produtiva, íntegra e construtiva. Hoje, o álcool não me faz nenhuma falta, em nenhuma ocasião. Tenho liberdade para viver uma vida maravilhosa e fazer tudo o que quero, mesmo com a condição da doença incurável.

O DIA: Há quanto tempo você frequenta as reuniões de recuperação de A.A e de que forma vem te ajudando no processo de 'cura'?
PEDRO: Venho frequentando as reuniões de A.A e levando a recuperação a sério há 8 anos e 4 meses. A doença é incurável; sei que ela está adormecida porque estou em tratamento. Mas o mais interessante nisso tudo é que o tratamento pode ser muito prazeroso. Frequentar as reuniões e trabalhar o programa de 12 passos, um programa de autoconhecimento, é libertador. Conheci as pessoas mais incríveis da minha vida dentro dos Alcoólicos Anônimos e descobri os 'macetes' para viver de maneira mais leve e lidar com as minhas questões emocionais. Sinto-me preenchido e completo com o programa do A.A.

O DIA: Como era sua vida com o álcool e como ficou depois que você resolveu 'se tratar'?
PEDRO: Com o álcool, minha vida era um caos constante. Era só promessa não cumprida, vergonha e isolamento. Estava numa espiral, onde cada dia era pior que o anterior. Meus relacionamentos estavam ruins, não tinha chances profissionais, não durava um dia em um sequer emprego e eu me sentia completamente perdido e sem esperança. Depois que resolvi me tratar, a vida foi mudando. Entrei no A.A e me comprometi com a sobriedade, e comecei a reconstruir minha vida.
Minha vida agora é completamente diferente. Tenho relacionamentos saudáveis, sou casado e tenho um filho de 5 anos, que nunca me viu beber. Realizei o sonho de ter uma família. Estou em ascensão em uma carreira estável e principalmente, tenho uma sensação de propósito e felicidade que eu não sabia que era possível. O tratamento me deu ferramentas para lidar com as emoções e os desafios do dia a dia sem precisar do álcool. Me sinto livre e completo, vivendo uma vida que valorizo e que me traz alegria.

Cardiologista fala dos problemas acarretados pelo excesso de bebida

Especialista em cirurgia cardiovascular de adultos e crianças pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular (SBCCV) com pós-graduação em nutrologia médica pela Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN), o médico Edmo Atique Gabriel, fala da relação do alcoolismo com o coração. "Quando consumido em doses exageradas, o álcool causa uma inflamação importante no músculo do coração. Como consequência, as pessoas podem apresentar arritmias cardíacas e, em casos extremos, insuficiência cardíaca".
Segundo o profissional, nestes casos, a conduta é hidratação vigorosa , para eliminar os resíduos do álcool o mais rápido possível por meio da urina . "Pode-se usar também a vitamina B1 (tiamina) e glicose para reverter efeitos tóxicos do excesso de álcool. Em caso de insuficiência cardíaca, há necessidade de internação hospitalar e uso de medicamentos específicos para controle da pressão arterial e batimentos cardíacos".
De acordo com o especialista, estudos demonstram que o consumo exagerado de álcool ocasiona alterações metabólicas e inflamatórias em órgãos como coração e cérebro . "No coração, arritmias são muito frequentes mas, em casos extremos, pode ocorrer infarto e até morte súbita . No caso do cérebro, os efeitos tóxicos do álcool também são relevantes, podendo inicialmente ocorrer alterações da cognição, equilíbrio, convulsões e, em casos extremos, derrame".
O cardiologista afirma que o álcool é uma substância que é transformada em resíduos tóxicos no organismo, os quais normalmente são eliminados pelos rins e fígado. "Quando consumido de forma exagerada, estes resíduos ficam acumulados por mais tempo no nosso sangue e acabam impregnando no músculo cardíaco, causando um processo inflamatório chamado miocardite alcoólica. Esta miocardite pode causar uma série de efeitos, como arritmias , infarto e até morte súbita".
O profissional orienta a pessoas que estão em remissão a usar alguns remédios. "Neste caso, são usados medicamentos para fortalecer o músculo cardíaco, diuréticos para aumentar a eliminação dos resíduos tóxicos do álcool, vitaminas como a tiamina e vitamina D para melhorar a função do músculo cardíaco e bastante hidratação com água e sais minerais .

Veja como pedir ajuda para o Alcoólicos Anônimos

No Rio de Janeiro, tem o aplicativo AARJ, que pode ser baixado gratuitamente no Google Play ou App Store, sendo possível localizar os grupos de A.A., além dos dias e horários das reuniões de recuperação. Também há o site www.aarj.org.br e a Linha de Ajuda 24h: (21) 2253-3377.
Para quem está fora do estado, no site aa.org.br é possível encontrar grupos e reuniões em qualquer região do país. Alguns grupos fazem reunião até de madrugada, ou seja, se você precisa de ajuda ou sabe de alguém que precisa, há qualquer momento, será possível encontrar apoio orientação e uma reunião de recuperação, em Alcoólicos Anônimos. 

Um pouco mais sobre o trabalho realizado pelo Alcoólicos Anônimos

Em entrevista ao jornal O DIA, a psicóloga e amiga de Alcoólicos Anônimos, que foi vice-presidente da Junta de Serviços Gerais da instituição entre 2022 e 2024, Gabriela Henrique, fala um pouco mais sobre o trabalho desenvolvido pelo A.A.
O DIA: Sabemos que o alcoolismo é uma doença, mas a bebida é uma droga permitida. Como fazer para que as pessoas entendam que são dependentes de álcool?
Gabriela Henrique: Para uma pessoa entender que há uma compulsão na forma de beber é possível usar o folheto 12 perguntas de A.A, encontrado gratuitamente no site. Também é possível adquirir a versão impressa disponível para profissionais da saúde ou interessados em ajudar alguém que tem esta dúvida. Neste questionário, a pessoa avalia sobre sua forma de beber; sobre como tem sido vista sob a ótica da família e de amigos; sobre os resultados sociais, após ingerir bebida alcoólica e somando os pontos, terá uma visão mais certeira sobre o que fazer.
O DIA: O trabalho feito pelo A.A é de excelência. Quantas pessoas vocês atendem mensalmente? E os profissionais são todos voluntários?
Gabriela Henrique: É interessante informar que o Alcoólicos Anônimos não faz estatística e não contabiliza membros, mas que está em constante atração de novas pessoas que buscam a recuperação, através da abstinência da bebida alcoólica, com a prática dos famosos 12 passos, neste programa de mútua ajuda. Cada vez mais, jovens e mulheres têm aparecido nas reuniões online e nos grupos físicos buscando manter, diariamente, um novo propósito de viver, não ingerindo nenhuma bebida com teor alcoólico.
Em Alcoólicos Anônimos, o único requisito para ser membro é o desejo de parar de beber. Todas as pessoas têm equidade e as reuniões são conduzidas pelos próprios membros, não havendo preferência por profissões e qualificações de seus membros.
O DIA: Normalmente, as pessoas procuram ajuda sozinhas ou os familiares também levam seus entes para o A.A?
Gabriela Henrique: Ambas as situações são recorrentes, ou seja, é comum a chegada de membros que buscam ajuda por conta própria e pela indicação de familiares ou amigos. Transmitir que em Alcoólicos Anônimos se propõe abstinência e que muitas pessoas se livram da dependência química, do alcoolismo, ou dos prejuízos de um beber excessivo é o melhor presente que se pode dar a quem se ama!

O DIA: Como são realizadas as reuniões ? Vocês conseguem bons resultados?

Gabriela Henrique: Em Alcoólicos Anônimos, as reuniões são diárias, participação voluntária e por meio das trocas de experiências e superações, embasadas nos 36 princípios que regem a instituição. As pessoas que se dedicam permanecem sóbrias e alcançam novos e promissores objetivos na vida. Trata-se de um programa de recuperação que existe há quase 90 anos e se mantém recuperando vidas e transformando famílias, apenas com adaptações de tecnologia, é algo mais do que constatado e comprovado.
Em seu último relatório, de junho de 2024, a Organização Mundial da Saúde aponta que A.A é de longe a fonte mais amplamente utilizada de ajuda para pessoas com problemas com bebida. Vários estudos bem concebidos e em grande escala sugerem que A.A. pode ter um efeito incremental quando combinado com tratamento formal, e a frequência de A.A., por si só, pode ser melhor do que nenhuma intervenção.
O DIA: Muitas pessoas convivem com alcoólatras e é bem doloroso. O que familiares e amigos podem fazer?
Gabriela Henrique: Para os familiares ou amigos que sofrem com o beber excessivo de alguém, existe Al-Anon. Uma associação também de mútua ajuda, voluntária e baseada nos 12 passos para a recuperação, onde é possível entender que se cuidando, você ajuda muito mais um portador do alcoolismo. As reuniões são pautadas em troca de vivências, aprendizados, reuniões temáticas, baseadas em livros da própria associação que favorecem uma mudança de mindset, promovendo comportamentos mais saudáveis, favorecendo a saúde mental e o convívio fraterno. Diminuindo as características de codependência, de quem frequenta estas reuniões. Também existente mundialmente e online.
'Colcha de Retalhos de AA': atenção às mulheres

Com início em 2012, a Colcha de Retalhos de A.A. é uma ação de voluntárias alcoólicas de Alcoólicos Anônimos (A.A.) do Brasil, que tem como objetivo transmitir a mensagem de recuperação em A.A., com especial atenção à mulher alcoólica. Entre as ações promovidas estão a realização a cada dois anos do evento Colcha de Retalhos, com sexta edição programada para 2025, em Recife (PE), e eventos mensais com profissionais da saúde sobre a temática do alcoolismo entre as mulheres, além de coordenar as atividades destinadas à criação, manutenção e fortalecimento das reuniões de A.A. para mulheres em todo o Brasil.
Apagões de memória, violência e transformação

Mariana, 48 anos e 21  e meio de recuperação, participa das reuniões de composição feminina, além das reuniões mistas. "Ingressei em Alcoólicos Anônimos com 26 anos, depois de diversos episódios de bebedeiras e perda de memória, que chamamos de 'apagamentos alcoólicos'. Nesses apagamentos, eu permanecia ativa pelo Rio de Janeiro, dirigindo, conversando, me locomovendo, mas não lembrava de muita coisa no dia seguinte, apenas flashes do que se passou na noite anterior e muitas vezes não lembrava até mesmo de nada a partir de determinado momento.
Durante esses apagões, estando muito bêbada, eu ficava vulnerável e inconsciente. Muitas vezes sofria violências, muitas vezes era violenta, ou vivia situações humilhantes. Por isso, pessoas foram se afastando de mim, e eu fui me isolando e me sentindo diferente, sozinha. Foi esse sentimento que me levou a pedir ajuda aos meus pais, que me direcionaram a uma terapia de 12 passos, e lá me indicaram A.A. Desde que ingressei em A.A., vivo uma verdadeira transformação.
Eu falo que vivo uma nova vida em vida. Por meio da sobriedade contínua e da prática dos 12 passos tive a oportunidade de crescer espiritualmente, desenvolver uma fé que funciona, mudar meus valores, ficar atenta ao egoísmo e a outros defeitos, fazer reparações dos danos que causei no meu passado e ser verdadeiramente livre para ser quem eu sou. melhor de tudo: com milhares de amigos, membros de A.A de diversos locais do Rio e do Brasil, frequentando as reuniões e podendo ajudar outros com a minha experiência”.
Perfil das vítimas fatais do alcoolismo no Brasil*

- 90,9% são homens e 9,1% são mulheres
- 52,9%das mortes são entre pessoas de 55 e mais anos, seguida pela faixa etária entre 35 e 54 anos, que representou 42,8% desses óbitos
- Entre as brasileiras vítimas fatais de alcoolismo, 72% são pretas e pardas
* 'Álcool e a Saúde dos Brasileiros: Panorama 2024' (CISA, 2024), com dados de 2022