Atire a primeira pedra quem nunca sofreu por amor, mas será que vale a pena por carência ou medo da solidão ir a fundo em relacionamentos efêmeros ou via internet ou ainda confiar em pessoas que você conhece há pouco tempo? O melhor é sempre colocar as barbas de molho, ou melhor, o coração e só se entregar a quem te merecer como reza um antigo pagode. Não é incomum pessoas acharem que sua cara-metade está apaixonada e depois se darem conta de que foram vítimas do golpe do amor ou de um estelionato sentimental.
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A arquiteta aposentada Georgiana Rodrigues, de 65 anos, lembra que ganhou um golpe e não era de uma pessoa desconhecida. "Trabalhava com um colega há cinco anos e de repente começamos a ficar mais próximos. Eu não estava nada bem naquela época e me lembro que acabei ‘dando’ para ele quase R$ 8 mil porque ele dizia que estava precisando e eu, num delírio, achei que estivesse apaixonada. Acabei pagando bem por isso. Eu estava era doente mesmo. Depois, entrei na justiça para ele me pagar. Até pagou algumas parcelas, mas depois não conseguiu cumprir o combinado e ele acabou morrendo vítima da Covid", pontua.
Ela conta que depois disso não confiou mais em ninguém e sempre fala a máxima: "Você pode enganar muitos por pouco tempo, você pode enganar poucos por muito tempo, mas você não pode enganar todos por todo o tempo". Ainda assim, é bom que homens e mulheres fiquem de olho nas atitudes de quem está se relacionando, pois como dizem: 'o golpe está aí, Cai quem quer'. Mas, não é bem assim. Afinal, ninguém quer entrar em barco furado, mas normalmente a pessoa se ferra porque ainda acredita no próximo.
Raiva, culpa, depressão e angústia
Centenas de mulheres como Georgiana Rodrigues têm história para contar nesse sentido. Duas nos deram depoimento, mas pediram para não serem identificadas. Vamos chamá-las de Kátia e Sonia.
O DIA: Como você se sentiu ao descobrir que estava sendo vítima do golpe do amor?
Kátia: O meu primeiro sentimento foi de desconfiança e repulsa pelo golpista. Quando tomei plena ciência do que havia acontecido, fui tomada por uma raiva avassaladora, a ponto de cogitar algo contra a vida dele e até contra a minha. Em meio ao desespero, cheguei a pensar em vender alguns pertences e, quem sabe, até o meu próprio corpo. A angústia era tão grande que, após colocá-lo para fora de casa, senti que precisava tomar uma providência drástica, já que ninguém da minha família poderia saber. Senti-me vulnerável, desacreditada, enojada pelo golpista e, mais do que nunca, menosprezei minha própria inteligência. Uma raiva jamais sentida tomou conta de mim, acompanhada por um desejo de vingança insaciável.
Sonia: Senti uma imensa vergonha por ter apresentado à minha família e amigos um homem que eu acreditava ser uma pessoa de bem, alguém com quem fiz planos de construir uma família. Senti culpa por não ter dado ouvidos aos conselhos de pessoas que já haviam percebido sinais de que ele não era quem demonstrava ser. O trauma foi devastador e me levou a uma profunda depressão, ao isolamento social e à síndrome do pânico. Cheguei ao ponto de planejar minha própria morte e tentei o suicídio por duas vezes.
A vergonha que senti era insuportável, uma dor na alma indescritível. Meu mundo desabou. Passei dois meses sem sair do apartamento, mergulhada em uma depressão profunda, consumida pela síndrome do pânico, pelo arrependimento e por uma culpa avassaladora. Sentia raiva de mim mesma por não ter enxergado a maldade que estava diante dos meus olhos.
Um sopro de esperança
O Dia: Apesar disso, você ainda acredita em relacionamentos saudáveis?
Kátia: Para ser bem sincera, inicialmente, eu não acreditava. A pancada surreal que o golpista me deu deixou marcas profundas. Fiquei tão fora de órbita que essa possibilidade sequer fazia sentido na minha vida. Na verdade, viver sozinha era a única opção que eu enxergava. Relacionamentos significativos pareciam algo fictício, coisa do passado ou de um bom livro de romance. Sentia nojo só de pensar que alguém pudesse me olhar, me tocar ou que eu mesma pudesse imaginar qualquer envolvimento íntimo. O que passei me congelou como mulher, e minha maior paixão, até o fim dos meus dias, seria eu mesma e olhe lá.
Mas, depois de alguns anos sozinha, por obra de Deus e do destino, hoje me encontro casada com um homem muito bom, amável, parceiro e cuidadoso. Tenho plena consciência de que tudo pode mudar e, respondendo à pergunta: SIM… Mas sem marcar dia, mês ou ano. O acaso, esse sim, conhece todos os tempos, tanto os de sabedoria quanto os de tormenta.
Sonia: Hoje, apesar de tudo o que passei, estou superando e acredito que ainda existem pessoas do bem! Desde que terminei esse relacionamento, não me envolvi com mais ninguém, mas tenho fé de que um dia encontrarei alguém honesto, verdadeiro e de bom coração. Quero, sim, casar e construir uma família. O bem sempre vence!
Gostaria de deixar um recado para todas as mulheres que passaram ou estão passando pelo que eu vivi: não se calem! Não tenham medo! Sejam fortes e destemidas! Não sintam vergonha, pois a vergonha deve recair sobre o agressor. Nós, mulheres, precisamos nos unir e, através do aprendizado, ajudar e incentivar outras mulheres a não sofrerem esse mal. Deixo aqui meu apoio e incentivo a todas as mulheres guerreiras: amem-se, valorizem-se! Cada dia é uma nova oportunidade de recomeço. Com força de vontade e determinação, podemos transformar nossas histórias!
Em entrevista ao jornal O DIA, Andressa Taketa, psicóloga especialista em relacionamentos, fala sobre o assunto.
O DIA: Por qual motivo as pessoas caem no "golpe do amor"? Está relacionado à carência?
Andressa Taketa: O chamado golpe do amor ou estelionato emocional acontece quando alguém finge sentimentos para explorar emocional e financeiramente a vítima. Normalmente, quem cai nesse tipo de golpe está em um momento de extrema vulnerabilidade emocional, seja após um luto, uma separação, uma crise de autoestima ou uma carência afetiva. Essas pessoas tendem a idealizar quem oferece atenção e afeto, porque estão sedentas por conexão. E é exatamente aí que o golpista entra: ele estuda os gostos, valores, sonhos e estilo de vida da vítima, e então se transforma em tudo o que ela quer. Ele preenche todas as suas lacunas emocionais e cria um vínculo intenso, gerando uma confiança quase instantânea. O que parece um amor arrebatador, na verdade, é uma armadilha calculada.
O DIA: É mais comum mulheres ou homens caírem nesse golpe?
Andressa Taketa: Historicamente, mais mulheres têm sido vítimas reportadas desse tipo de golpe, especialmente mulheres de meia-idade ou idosas. Porém, os homens também são alvos frequentes, e muitos casos masculinos permanecem subnotificados devido ao estigma e vergonha. Nos últimos anos, com a popularização dos aplicativos de relacionamento, tem havido um aumento significativo de homens vítimas. A diferença está mais nos métodos utilizados e nas vulnerabilidades exploradas do que na propensão por gênero.
O DIA: Você acredita que a baixa autoestima implica para que se acredite em pessoas que nunca viu na vida?
Andressa Taketa: Com certeza. A baixa autoestima funciona como um convite aberto para abusadores emocionais. Quando alguém não se sente bom o bastante, acredita que qualquer demonstração de afeto é uma chance única, mesmo que venha de um desconhecido na internet. A lógica interna é: 'Ninguém nunca me escolheu, então se essa pessoa está me dizendo que me ama, eu não posso desperdiçar.' Isso bloqueia o senso crítico e abre as portas para manipulações perigosas.
O DIA: Como essas mulheres e homens poderiam ficar mais alertas em relação ao estelionato sentimental?
Andressa Taketa:Primeiro: desconfie de intensidade sem vínculo real. Amor verdadeiro é construção e vem com tempo e conhecimento do outro. Relacionamentos que começam com promessas grandiosas, declarações rápidas ou planos de vida em poucos dias devem acender o sinal vermelho.
Segundo: preste atenção à coerência. Golpistas geralmente contam histórias mirabolantes, mas deixam pontas soltas. Verifique tudo. Peça uma chamada de vídeo, pesquise nas redes sociais, procure incoerências.
Terceiro: não mande dinheiro, nunca. Se alguém usa uma história triste para pedir ajuda financeira cedo demais, é golpe quase certo.
O DIA: A vida não tem manual, como reza um antigo ditado, mas você acredita que algumas dicas, tipo uma cartilha, poderia funcionar nestes casos?
Andressa Taketa: Embora a vida não tenha manual, como diz o ditado, conhecer os mecanismos e padrões desses golpes permite que as pessoas identifiquem sinais de alerta precocemente. Acredito que cartilhas, materiais informativos, campanhas educativas que desmistificam o estelionato sentimental e reduzem o estigma das vítimas são fundamentais. O conhecimento não elimina completamente o risco, mas certamente reduz a vulnerabilidade ao mostrar que esses golpes seguem padrões reconhecíveis.
Quando o amor para no tribunal
E não é só do ponto de vista psicológico que a vítima pode ser lesada. Muitas vezes como o caso da personagem que está nessa matéria o negócio para nos tribunais. O advogado Nardenn Porto é especializado em estelionato sentimental e fala sobre a questão que atinge muito mais gente que se imagina.
O DIA: Do ponto de vista jurídico, como as pessoas que já foram lesadas no "golpe do amor" devem proceder?
Nardenn Porto: Se alguém foi vítima de estelionato sentimental, ou conhecido como Golpe do Amor, deve, registrar um boletim de ocorrência na delegacia (de preferência na especializada em crimes digitais, se o golpe ocorreu online) se for presencial, pode ser na delegacia comum. A pessoa deve reunir todas as provas: mensagens, e-mails, extratos bancários, recibos de transferências, cartinhas de amor, e-mails, fotos e qualquer outra evidência que comprove a fraude e a relação. Ademais, necessário se faz procurar um advogado especializado para ingressar com ação na esfera cível e criminal. Na esfera criminal, pode-se enquadrar no mínimo como estelionato (art. 171 do Código Penal). Na esfera cível, é possível pedir indenização por danos morais e materiais. Por fim, cabe denunciar o perfil do golpista em redes sociais e aplicativos para evitar que outras pessoas sejam enganadas.
O DIA: É possível reverter o jogo? Se as mulheres ou homens forem enganados e entrarem na justiça há chance de ganhar?
Nardenn Porto: Sim, é plenamente possível. O sucesso da ação depende das provas concretas. Se for comprovado que houve engano premeditado, com promessas falsas e intenção de obter vantagens financeiras, o golpista pode ser condenado criminalmente e obrigado a ressarcir os valores. Além disso, até o banco pode ser responsabilizado, pois houve falha na prestação do serviço ao permitir a abertura de uma conta fraudulenta para o golpe. Se for demonstrado que a instituição não adotou mecanismos adequados de segurança para evitar a criação de contas fraudulentas, ela pode ser condenada a indenizar a vítima. Já existem decisões favoráveis na Justiça reconhecendo essa responsabilidade
O DIA: Como você daria o alerta para que as pessoas não caíssem nesse golpe?
Nardenn Porto: Desconfiar de histórias muito trágicas ou emocionantes, pois golpistas criam enredos dramáticos para gerar empatia e conseguir dinheiro Nunca enviar dinheiro para alguém que nunca foi encontrado pessoalmente. Se conheceu a pessoa e deseja emprestar dinheiro, fazer um contrato de empréstimo ou manter conversas claras no WhatsApp, que possam ser usadas como prova caso seja necessário cobrar depois. Pesquisar a identidade da pessoa, utilizando a busca reversa de imagens no Google e demais aplicativos de busca para verificar se as fotos são de terceiros ou não.
Pedir até mesmo o CPF da pessoa para verificar se ela realmente existe e conferir informações básicas nos sites dos Tribunais. Exigir uma vídeochamada antes de se envolver emocionalmente, pois golpistas evitam aparecer ao vivo e sempre arrumam desculpas para não falar por vídeo. Desconfiar de declarações de amor rápidas e intensas, já que golpistas tentam criar um vínculo forte em pouco tempo. Prestar atenção ao pedido de dinheiro, pois eles sempre têm desculpas para precisar de ajuda financeira
O DIA: A que você atribui o estelionato sentimental? Já defendeu algum caso? Era homem ou mulher? Quem se sente mais culpado?
Nardenn Porto: O estelionato sentimental é um crime baseado em manipulação emocional e ganância. Os golpistas exploram a vulnerabilidade da vítima, seja por carência, fragilidade emocional ou desejo de um relacionamento estável, induzindo e mantendo a vítima em erro até que consigam obter todas as vantagens ilícitas possíveis e almejadas.
Nos últimos 10 anos, o escritório já atendeu mais de 4 mil vítimas de estelionato sentimental, tanto homens quanto mulheres.As vítimas, em sua maioria, são mulheres, que se sentem mais culpadas por terem acreditado na farsa e possuem coragem de contar, de ir à delegacia e de demandar o Poder Judiciário para tentar reaver o prejuízo. Já os homens, muitas vezes, sentem vergonha e sequer registram ocorrência, tornando os casos denunciados por eles bem mais raros. Eles acabam ficando no prejuízo.
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