Rio - O Méier, na Zona Norte do Rio, completa 136 anos nesta terça-feira (13) e vai comemorar exaltando uma de suas principais características: a cultura. Bastante residencial e com um comércio amplo - entre lojas de diversos setores, restaurantes, padarias e serviços -, o bairro é também um verdadeiro palco das artes, com um dos mais famosos centros culturais da cidade, o Imperator, e foi o lar de muitos artistas da literatura, música e dramaturgia.
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Para celebrar o legado cultural do bairro, a livraria Belle Époque promove um evento, a partir das 18h30, que também vai comemorar os 144 anos do escritor Lima Barreto, que viveu no Méier e o retratou em seus contos e crônicas, e o dia dos Pretos Velhos. A celebração terá a aula "Lima Barreto: um intelectual negro e suburbano", da professora Elaine Brito, mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Em seguida, os moradores terão mais uma aula, com o tema "Um Grande Méier de histórias", do professor Rafael Mattoso, mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Às 19h30, haverá apresentação do grupo Afrotelúrico, com participação de Macedo Griot. Por fim, às 20h30, é a vez do show de Alexandre Lloro.
A Belle Époque fica na Rua Soares, nº 50. Segundo Ivan Costa, fundador da tradicional livraria, a ideia surgiu como um evento pequeno. Entretanto, depois que a Associação de Moradores e outros coletivos do bairro não conseguiram realizar uma festa junto com os órgãos municipais, decidiram se unir para promover uma comemoração maior para os moradores.
"Eles decidiram unir forças comigo para a gente conseguir fazer uma programação um pouquinho maior (...) Vamos fazer uma festa mais intimista, porém linda, em homenagem ao nosso bairro e a Lima Barreto, além de exaltar nossa ancestralidade através do dia de Pretos Velhos com a apresentação do grupo Afrotelúricos. São 136 anos da nossa "capital dos subúrbios da Central", como dizia João Nogueira. Aguardamos vocês", declarou Ivan.
Belle Époque
A Belle Époque é a única livraria do Méier e referência para as atividades culturais do bairro, que atua também como um sebo, por intermediar a compra e venda de livros usados. O estabelecimento foi fundado em janeiro de 2018, mas seu início simbólico aconteceu muito antes, em 2014, com Ivan levando livros para vender na entrada de estação de metrô da Carioca.
Desde 2022, a livraria organiza uma feira anual que inicialmente era destinada a pessoas que buscavam ser introduzidas ao ambiente de vendas ao ar livre após a pandemia de covid-19. Atualmente, a Belle Époque tem oficinas de percussão e sopro, com trombone e trompete, a preço popular. Em julho do mesmo ano, o espaço foi atingido por um incêndio que causou prejuízos de aproximadamente R$ 50 mil, mas conseguiu se reerguer.
Contudo, a livraria corre o risco de fechar as portas até agosto deste ano, por conta de dívidas acumuladas de IPTU e contas de água com valores considerados abusivos. Costa pede à Prefeitura do Rio e aos vereadores uma intervenção urgente para o cancelamento da dívida tributária e regularização da documentação do imóvel, evitando o fechamento definitivo da livraria.
"O Méier já teve muitas livrarias, muitos sebos e foram todos fechando, e é uma coisa que não estou livre. Estou aqui porque consigo pagar um aluguel muito barato, mas não é uma rua de acesso. Mas, ao mesmo tempo, eu firmo o meu pé de que quero estar, preciso estar no Méier, quero desenvolver esse trabalho aqui, por acreditar que possam ter espaços como esse na nossa região, que são mais comuns no Centro e Zona Sul", afirmou Costa, que acredita que a históra da livraria se mistura com a da cultura do bairro.
"Eu acredito que a livraria de rua, o espaço cultural, como a gente já é hoje reconhecido pelo Ministério da Cultura, deve se misturar com o bairro, com a região, para desenvolver trabalhos, para estar no convívio com o bairro. Aqui era uma rua vazia e com o tempo a gente conseguiu trazer movimento, diminuindo assaltos, e harmonia com os moradores (...) A gente também conseguiu, no ano passado, mudar o nome de uma pracinha para Lima Barreto, que ainda não tinha praça em sua homenagem. Toda essa simbiose com a região é muito importante e faz com que os livros, a livraria, entrem na memória afetiva dessas pessoas, no dia a dia do bairro".
'Imperator é o coração do Méier'
O Imperator surgiu em 1954 e foi maior sala de cinema da América Latina, à época. O espaço chegou a ser transformado em uma casa de espetáculo e a fechar as portas em 1995, mas reabriu em 2012, como o Centro Cultural João Nogueira, com salas de cinema, teatro, galeria de exposições e restaurantes. Desde o início do ano, o espaço passa por obras de recuperação, realizadas pela Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio (Funarj).
"O Imperator é importantíssimo para a nossa região, é o nosso principal ícone, depois do Jardim do Méier. Nesse mês, também, no dia 21, comemora-se o aniversário do Imperator, também. O Imperator e o Méier se tornaram uma coisa única, a ligação entre os moradores do Méier e o Imperator é muito grande. O tempo que a gente ficou sem o Imperator foi uma tragédia. O Imperator traz vida para o Méier, é importante para a economia local, cria movimentação, traz segurança para a região. O Imperator é o coração do Méier", disse o diretor da Associação de Moradores do Méier (AMME), Renato Breves Gligio, que acompanha a revitalização do centro cultural.
'Orgulho dos subúrbios' também enfrenta dificuldades
De acordo com o diretor da AMME, apesar de considerar o bairro privilegiado, há situações que precisam de atenção do poder público. Entre eles, a regularidade da coleta de lixo, que não têm seguido os horários programados em várias ruas, causando acúmulo de lixo, como na Rua Dias da Cruz, principal da região, que também não tem mais recebido varreduras constantes.
A associação aponta ainda que nas calçadas da via têm buracos que colocam os moradores em risco de acidente, especialmente os idosos. A AMME ressalta ainda que há muitos moradores em situação de rua, principalmente nas ruas Santa Fé e Ana Barbosa.
Em nota, a Comlurb disse que mantém rotinas efetivas de limpeza no Méier, com serviço de varrição regular e coleta domiciliar conforme programação operacional, podendo ser às segundas, quartas e sextas-feiras ou às terças, quintas e sábados. Segundo a Companhia, a Rua Dias da Cruz conta com varrição diária, em três turnos (manhã, tarde e noite), e coleta domiciliar noturna, a partir das 19h. "Resíduos devem ser entregues à coleta uma hora antes do horário previsto para a passagem do caminhão coletor e está sujeito à multa quem for flagrado fazendo descarte de forma irregular", completou.
A Secretaria Municipal de Conservação informou que realizou serviços de recuperação nas calçadas da Rua Dias da Cruz nos meses de janeiro e fevereiro deste ano e que as equipes seguem monitorando a via. "Caso haja necessidade de novos reparos pontuais, as demandas podem ser encaminhadas para o 1746 para que as providências sejam tomadas com a maior brevidade possível", esclareceu a pasta.
Já a Secretaria Municipal de Assistência Social esclareceu que realizou 528 atendimentos a pessoas em situação de rua no primeiro trimestre deste ano, com 459 encaminhamentos à rede socioassistencial e 78 acolhimentos institucionais. As ruas Dias da Cruz, Santa Fé e Ana Barbosa fazem parte do roteiro de atuação da SMAS no bairro. "É importante dizer que uma mesma pessoa pode ser atendida mais de uma vez e que o acolhimento não é obrigatório: ele precisa ser aceito. Os profissionais de assistência social trabalham para que a pessoa em situação de rua aceite o acolhimento, sempre que necessário", diz a nota.
Apesar dos problemas, Renato acredita que o bairro segue sendo icônico, imponente e grandioso pelas razões históricas, culturais e afetivas que transcendem os problemas estruturais.
"O Méier é um dos bairros mais antigos da Zona Norte do Rio e foi um importante polo de expansão da cidade e sempre manteve um caráter de centralidade, servindo como ligação entre bairros e regiões. O bairro possui casarões antigos, ruas largas, praças tradicionais e uma malha urbana que ainda guarda traços da sua nobreza de outrora. O Méier é berço de artistas, músicos e intelectuais. O Imperator é um símbolo dessa herança cultural. Há também um forte senso de pertencimento entre os moradores, que defendem e celebram o bairro com orgulho".
É também no bairro onde viveram grandes nomes das artes brasileiras, como os escritores Lima Barreto e Arthur Azevedo, os sambistas Araci de Almeida e João Nogueira, e atores como Tony Ramos, Taís Araújo e Adriana Esteves. Para o diretor, que é também autor da obra "O Livro Do Grande Meyer", que resgata a história da região e reúne curiosidades, fotos e dados historicos, "o Méier resiste".
"A atuação de associações de moradores, coletivos culturais e iniciativas como feiras, eventos e revitalizações pontuais demonstram a vitalidade da comunidade. O Méier é grandioso porque carrega em si a alma de uma parte significativa do Rio: a alma da Zona Norte - forte, criativa, trabalhadora e resiliente", completou Renato.
'O maioral'
O Méier foi fundado em 13 de maio de 1889, mas sua ocupação começou ainda no século XVIII, quando Estácio de Sá - fundador da cidade do Rio - doou terras aos jesuítas, nos locais que atualmente estão o Grande Méier, Catumbi, Tijuca, Benfica e São Cristóvão, onde funcionavam engenhos de cana-de-açúcar com mão de obra escrava. Entretanto, após desentendimentos com a Coroa Portuguesa, os religiosos foram expulsos e em 1884, Dom Pedro II presenteou o amigo Augusto Duque Estrada Meyer com parte das terras.
Conhecido como "camarista Meyer", por ter livre acesso às câmaras do Palácio Imperial, ele era filho do comendador Miguel João Meyer, um português de origem alemã e um dos homens mais ricos da cidade no final do século XVIII. Por conta do sobrenome, a região passou a ser conhecida como Meyer (Maier, na pronúncia) e, tempos depois, os moradores aportuguesaram para Méier. Os primeiros habitantes da região foram escravizados fugidos, que formaram quilombos na Serra dos Pretos-Forros.
Apesar da história ser mais antiga, a data de fundação coincide com a da inauguração da estação de trem do bairro, à época batizada de Parada do Meyer, que ocorreu após a doação de terras pelos filhos do camarista Meyer. O pai também batizou ruas da região com os nomes deles, entre elas Carolina, Frederico e Joaquim, que receberam a grafia aportuguesa do sobrenome.
Descrita pelo escritor Lima Barreto como "o orgulho dos subúrbios e dos suburbanos" e cantado pelo sambista João Nogueira como "o maioral" no Samba do Meyer, de Wilson Batista e Dunga, o Méier abriga até os dias atuais o primeiro shopping center do país, inaugurado em 1963, na Rua Dias da Cruz. A região ainda se destaca pela arquitetura, por meio da Basílica do Imaculado Coração de Maria, na Rua Coração de Maria, única igreja de estilo mourisco da cidade. Inspirada no Templo de Santa Maria La Blanca de Toledo, na Espanha, recebeu em 1963 a honra de santuário do papa João XXIII.
Há ainda o Jardim do Méier, inaugurado em maio de 1919, com 13 mil metros quadrados e circundado pelo quartel do Corpo de Bombeiros, Hospital Municipal Salgado Filho, viaduto do Méier e pela estação de trem. Dentro dele, já estava um dos maiores símbolo do bairro: o Coreto do Méier, construído em 1916 em forma hexagonal, com sete metros de altura e seis de largura. O espaço foi tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) em 1985 e teria inspirado ainda a construção do coreto de Ouro Preto, em Minas Gerais. Nele, o pastor Edir Macedo começou a Igreja Universal do Reino de Deus, em 1977.
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