O veto a trechos de lei que impedia saidinhas de condenados dá a impressão de que o Estado aceita compartilhar com o crime organizado a administração das prisões
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva esperou até o minuto final para fazer exatamente aquilo que se esperava dele desde a aprovação pela Câmara do projeto que restringe a saída temporária da cadeia, em datas especiais, de condenados que cumprem penas no regime semiaberto. Na quinta-feira passada, último dia de prazo para tomar tal providência, Lula vetou parte das medidas aprovadas semanas antes, destinadas a impedir que condenados por assassinato, roubo, estelionato e outros crimes desfrutem de alguns dias de liberdade em datas comemorativas como o Natal, a Páscoa ou o Dia das Mães em companhia de suas famílias.
Condenados por estupro, latrocínio e tráfico de drogas, considerados crimes hediondos, não fazem jus ao benefício. Seja como for, o tema é sensível demais para não merecer uma discussão mais aprofundada. Ao tomar sua decisão, o presidente contrariou não apenas os defensores das medidas de segurança mais rigorosas, que a esquerda gosta de chamar de "Bancada da Bala". O projeto em questão havia sido aprovado em votação simbólica, há menos de um mês, pela totalidade da Câmara dos Deputados. E foi recebida pela sociedade como uma medida necessária diante dos índices crescentes de violência. A pergunta a ser feita é: por que um governo tão preocupado com a própria popularidade toma uma medida que certamente será mal recebida pela sociedade?
A reação ao veto de Lula foi imediata e os defensores do fim das saidinhas já estão se articulando para derrubar o veto e devolver à lei o rigor que ela tinha quando foi aprovada. Se isso realmente acontecer, é claro, a erosão da popularidade do governo será ainda maior. Em meio às discussões que se seguiram ao veto, não faltaram adversários dispostos a atribuir ao presidente uma simpatia excessiva aos criminosos. "Lula, ao vetar a lei que colocava fim à saidinha dos presos nos feriados, ignora as vítimas e a segurança da sociedade, e confirma porque foi o candidato favorito nos presídios", disse em rede social o senador Sérgio Moro (União Brasil-PR).
Descontado, naturalmente, o fato de Moro ser um desafeto declarado de Lula e de estar apenas devolvendo parte das críticas constantes que recebe do governo, a questão é séria demais para receber um tratamento superficial. Assuntos como esse devem ser tratados, acima de tudo, com bom senso e qualquer tentativa de incluir as chamadas saidinhas na mesma polarização ideológica que atualmente envolve a discussão de qualquer outro tema é um desserviço ao Brasil. Mas isso, infelizmente, é o que vem acontecendo.
O pessoal da direita vê as saidinhas como uma pauta da esquerda e acusa os defensores dessa ideia de defender regalias que beneficiam os criminosos, estimulam a prática de delitos e servem apenas para mostrar que, no nosso país, a proteção aos direitos dos malfeitores é superior ao respeito às famílias de suas vítimas. A esquerda por sua vez, a começar pelo próprio ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, sempre insinua que a defesa de um rigor maior no tratamento aos condenados é uma afronta dos adversários aos direitos humanos. E que a saída temporária é um avanço humanitário destinado a reintegrar à sociedade o condenado que esteja cumprindo sua pena.
Entre um ponto de vista e outro, bem no meio do debate barulhento e enviesado que se trava em torno da saidinha, está a sociedade. Sempre que ela tem a oportunidade de se manifestar a respeito, demonstra que, ao mesmo tempo em que rejeita a ideia de ver qualquer cidadão, ainda que tenha cometido erros, submetido a tratamento cruel e desumano, deseja que o criminoso pague pelo crime que cometeu, sem regalias que acabam dando a ideia de impunidade. Este é o ponto.
GOVERNO MILITAR — O que a sociedade cobra é que o Estado cumpra a obrigação de protegê-la. Ela não pede vingança nem reivindica punições baseadas no princípio do "olho por olho, dente por dente" aos infratores da lei. O que a sociedade quer — e dá demonstrações desse desejo sempre que se manifesta sobre o assunto — é que as pessoas que submetem os cidadãos a qualquer tipo de ameaça sejam julgadas e, caso condenadas, paguem pelo crime que cometeram com base na aplicação criteriosa da lei. Simples assim. A questão, porém, é que o Brasil mudou desde que a saidinha foi instituída e os atuais índices de segurança pioraram muito em relação ao cenário dos anos 1980.
Sendo assim, algumas questões precisam ser postas em seus devidos lugares, a fim de se evitar equívocos capazes de reduzir o debate em torno da saidinha a apenas mais um capítulo da polarização entre direita e esquerda que toma conta do Brasil. A ideia de que a saidinha é uma bandeira historicamente defendida apenas pela esquerda é, para início de conversa, o primeiro equívoco a ser evitado. Da mesma forma e na mesma medida, dizer que a direita sempre combateu essa ideia é outro equívoco desmentido pela própria história.
As saidinhas começaram a existir no Brasil em 1984 — e nasceram de uma proposta apresentada pelo então ministro da Justiça Ibrahim Abi Ackel durante o governo do general João Figueiredo. Ao contrário do que muita gente imagina, portanto, o mecanismo não é fruto de um arroubo libertário introduzido na legislação pelo regime democrático. Ele remonta ao tempo dos governos militares, ou seja, da ditadura! Mais do que isso, ela foi adotada como resposta a uma pressão popular na direção oposta da que existe hoje. Assim como hoje se clama por mais rigor, a sociedade, naquele momento, pedia por um tratamento mais humano às pessoas que cumpriam penas.
Havia, claro, motivos para isso. O Estado, naquele momento, era sinônimo de truculência e a realidade prisional da época era ilustrada pelas cenas repugnantes de celas superlotadas e insalubres e de prisioneiros maltratados em cadeias que eram a própria imagem das masmorras medievais. A situação que se via no Presídio Frei Caneca, no bairro do Catumbi, na região central do Rio, na Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo, ou no "Depósito de Presos" do bairro da Lagoinha, em Belo Horizonte (numa época em que condenados cumpriam penas em celas de Delegacias de Polícia sem direito sequer a banho de sol), justificavam a pressão humanitária que resultou no abrandamento da lei de execução penal.
É bom lembrar que, na época, as facções do crime organizado, como o Comando Vermelho, de origem fluminense, e o PCC, paulista de nascimento, que hoje dominam o sistema prisional brasileiro, ou ainda não existiam ou eram apenas um embrião das organizações poderosas, com ramificações internacionais e zonas de sombra com o próprio Estado, em que acabariam se transformando. A força que adquiriram nos anos seguintes — em parte em razão da omissão ou da incompetência do próprio Estado para lidar com elas — passaram a justificar medidas de execução penal muito mais rigorosas do que as que eram pedidas nos anos 1980.
PORTA DA FRENTE — Seja como for, o fato é que a lei que permitiu a saída temporária de presos para passar datas especiais com as famílias talvez tenha contribuído para aliviar a pressão sobre o sistema prisional — que havia se transformado numa panela de pressão prestes a explodir a qualquer momento. Mas nunca estiveram perto de ser a solução para o problema. Em seus 42 anos de existência, as saidinhas nunca foram uma unanimidade e, com o passar do tempo, passaram a ser consideradas regalias a quem praticou crimes e, o que é pior, como um bofetão no rosto de quem sofreu alguma violência.
Esse tipo de ponto de vista ganha força e causa indignação sempre que algum caso rumoroso vem à tona. Imagens como, por exemplo, a de Suzane von Richtofen, condenada pelo assassinato dos pais, saindo da cadeia para passar o Dia das Mães em liberdade (para citar apenas um exemplo evidente das contradições que envolvem esse benefício) geraram revolta em muita gente. Cenas assim representam o mesmo que conceder a um condenado por estupro o benefício de receber visitas íntimas na cadeia.
O benefício da saída temporária era e — caso o veto de Lula não seja derrubado pelo Congresso — continuará sendo concedido a presos que tenham cumprido apenas um sexto de sua pena. Ou seja, alguém que tenha sido condenado a 30 anos por assassinato pode passar a desfrutar do benefício a partir do quinto ano de prisão e circular livremente nas datas especiais pelos mesmos ambientes frequentados pela família da pessoa que matou.
Os critérios para a saída temporária, que dependem de autorização judicial, são o bom comportamento e o cumprimento das medidas que permitem a evolução do condenado para o chamado regime semiaberto. Caso o veto do presidente não seja derrubado pelo Congresso, o benefício só será concedido a quem for aprovado em exames criminológicos, cuja eficácia sempre foi questionada por especialistas.
TIRO NA CABEÇA — Por último, mas não menos importante, as saidinhas sempre foram vistas como um estímulo à fuga de criminosos. Na opinião de muita gente, bandidos perigosos interessados em deixar a cadeia para seguir praticando seus delitos não precisavam bolar planos mirabolantes, como fizeram os dois traficantes que deixaram a prisão de "segurança máxima" de Mossoró e obrigaram o Estado a gastar R$ 6 milhões na sua recaptura. Basta que tenham bom comportamento e esperem fazer jus à saidinha. Quando isso acontecer, eles sairão pela porta da frente do presídio e não retornarão na data marcada.
Na última saidinha, no Natal de 2023, 52 mil presidiários do país inteiro foram beneficiados com a medida e ganharam o direito de passar a data "com suas famílias". Mais de 49 mil obedeceram ao que determina a Lei e se reapresentaram na data marcada nas unidades de onde saíram para continuar cumprindo suas penas. O problema é que pouco mais de 2,6 mil não voltaram — e muitos deles aproveitaram a liberdade para continuar cometendo os mesmos crimes que os levaram para a cadeia.
Um dos criminosos que não voltaram, chamado Welbert Fagundes, é acusado de cometer o crime que acabou gerando reação e reabrindo a discussão do assunto. E que, no final das contas, levou o Congresso Nacional a aprovar um projeto de Lei esquecido por lá desde 2013 — à espera de que os parlamentares se dispusessem a tomar as providências que a sociedade vinha cobrando deles todo esse tempo. No dia 7 de janeiro deste ano, Fagundes, que já estava envolvido em novos crimes, disparou contra policiais que o perseguiam pelas ruas de um bairro da periferia de Belo Horizonte. Um dos tiros que ele desferiu atingiu a cabeça e matou o sargento da Polícia Militar Roger Dias da Cunha, de 29 anos.
A morte de um policial em serviço, vítima de alguém que só estava nas ruas devido à flexibilidade da lei, despertou a indignação de parlamentares que devem seus mandatos à questão da segurança pública. Eles elevaram o tom e acusaram o governo, que já vinha sendo responsabilizado pelo aumento dos índices de violência que se seguiu à posse do presidente Lula.
Rapidamente, o Senado se mobilizou e a toque de caixa aprovou, no dia 20 de fevereiro, o projeto que restringia as possibilidades de saída temporária de presos. Mandado para a Câmara, entrou rapidamente na pauta e, no dia 20 de março, foi aprovado em votação simbólica pela unanimidade dos deputados da Casa.
Lula parece não ter se incomodado com a rapidez da tramitação da matéria. A despeito das críticas e da disposição dos adversários em acusá-lo de conivência com os criminosos, o presidente preferiu vetar a proibição para os casos de "visitas a familiares". Antes de prosseguir, uma observação: o veto do presidente pode, sim, ser criticado por qualquer brasileiro que considere essa medida um estímulo à violência. Mas ninguém tem o direito de dizer que o presidente agiu de forma incoerente com as posições que sempre defendeu a respeito do tema.
Sempre que foi chamado a se posicionar sobre a matéria, Lula sempre se posicionou a favor da ampliação do direito de defesa dos acusados e do abrandamento das penas aos condenados. Ele sempre aderiu às teses dos defensores dos "direitos humanos", independente do julgamento que a sociedade faça desse tipo de posição. E essa postura não se manifestou apenas no atual mandato nem diz respeito apenas à questão das saidinhas.
Em sua primeira passagem pela presidência da República, a partir de 2003, Lula nomeou o advogado Márcio Thomaz Bastos, já falecido, para o Ministério da Justiça. Criminalista e crítico da chamada Lei dos Crimes Hediondos, que endurecia o tratamento e reduzia as possibilidades de chicanas jurídicas nos processos que tratassem dos crimes mais violentos, Bastos já assumiu declarando guerra à medida.
RISCO DE REBELIÃO — A lei previa um tratamento mais duro e dificultava a chamada "progressão de pena" dos condenados por latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante sequestro, estupro, atentado violento ao pudor, envenenamento de água potável, alimentos ou medicamentos e de genocídio "tentados ou consumados". Assinada pelo presidente Fernando Collor de Mello em 1990, ela acabou sendo abrandada por iniciativa de Thomaz Bastos. Ou seja, ao invés de simplesmente revogar a lei, o ministro de Lula deu um jeito de torná-la inofensiva para os criminosos.
Os argumentos do atual ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, a favor da manutenção da saidinha, e que foram endossados por Lula ao vetar parte do que havia sido aprovado pelo Congresso, seguem na mesma direção. Além das alegadas razões humanitárias e da suposta necessidade de reinserir o preso na sociedade, o ministro se valeu de um argumento que peca pelo exagero. Segundo Lewandowski, a manutenção da saidinha tem o poder de evitar as fugas e de prevenir rebeliões no sistema prisional.
É o tipo do argumento que não resiste ao primeiro confronto com a realidade. Por maior que seja o número de fugas evitados pela saidinhas, ele jamais chegaria perto dos mais de 2,6 mil condenados que, por sua própria conta, resolveram se manter em liberdade depois da última saidinha de Natal. Se isso não é fuga, ninguém sabe dizer o que é...
Quando às rebeliões, bem... Restringir a liberdade de pessoas que cometam determinados crimes e mantê-las recolhidas a prisões até que paguem sua dívida com a sociedade é uma prerrogativa do Estado. Conforme o filósofo alemão Max Weber escreveu há mais de um século em sua obra A Política como Vocação, o Estado detém o monopólio do uso legítimo da violência. Só ele pode praticá-la sem que isso seja considerado um crime. Trata-se de uma definição clássica e aceita em todos os países que adotam o regime democrático.
Com base nesse princípio, qualquer ameaça de rebelião no sistema carcerário é um ato de violência. Essa ameaça deve ser identificada com medidas de inteligência, evitada com providências administrativas que incluem o remanejamento dos indivíduos dentro do sistema e, em último caso, contidas com providências coercitivas ou mesmo com medidas de força. Manter a ordem nas penitenciárias é obrigação do Estado.
O que não se pode ser aceito como argumento é a defesa de regalias (que é algo muito diferente de tratamento humanitário) a condenados em troca da promessa de bom comportamento. Um ponto de vista como esse, com todo respeito, apenas dá razão aos que acusam a esquerda e seus governos de tratar os criminosos como se eles fossem as vítimas dos crimes que praticaram. E, num ambiente marcado por uma crise de segurança provocada pela criminalidade crescente, concessões como essa certamente custarão caro à popularidade do governo.
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