O governo tem cometido erros de relacionamento, que não se esperava de um político habilidoso como Lula. Sem uma mudança de rumo, os problemas poderão ficar sérios
Até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reconhece que seu governo tem falhado justamente no ponto em que o sucesso era dado como favas contadas quando ele venceu as eleições de 2022. Trata-se da articulação política. Ou melhor, da falta dela. O governo parece perdido e ninguém na Esplanada fala a mesma língua do outro. O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, a quem caberia manter desobstruídos os canais de diálogo com os demais poderes e com a sociedade civil, tem recebido críticas de todos os lados e, em alguns casos, criado arestas ao invés de apará-las.
A ineficiência na operação política e os erros no relacionamento com o Congresso ainda não causaram, pelo menos até agora, nenhum dano mais sério aos projetos que realmente interessam ao governo. Mas é bom abrir os olhos! A fragilidade da articulação política fica mais evidente a cada dia e o valor que precisa sair dos cofres públicos para que os parlamentares assegurem a maioria nas votações vai ganhando zeros à direita. Nunca na história deste país a liberação das emendas parlamentares foi tão essencial para assegurar a coesão do Parlamento em torno do governo, como está sendo agora.
Na quinta-feira passada, foi divulgado que, durante o mês de abril deste ano, o governo empenhou R$ 13,7 bilhões para o pagamento de emendas parlamentares. A título de comparação, o valor empenhado neste mesmo mês no ano passado foi de "modestos" R$ 97,3 milhões. Os dados são da plataforma Siga Brasil. (É preciso lembrar que este ano, em razão do calendário eleitoral, os recursos para as emendas só podem ser transferidos até o final de junho. Por isso, talvez, a pressa em conseguir logo o dinheiro.)
A liberação das emendas parlamentares é impositiva — ou seja, tem que ser feita, queira ou não queira. Mas a ordem de preferência da liberação faz uma diferença enorme. Seja como for, a barganha que leva à liberação de emendas em troca de apoio é um jogo perigoso. Se o apetite continuar crescendo, chegará o momento em que a execução orçamentária ficará incontrolável.
Se isso acontecer, o Planalto se verá diante da necessidade de uma escolha trágica. Ou manda às favas os escrúpulos que ainda sobrevivem em relação à necessidade de um mínimo de equilíbrio fiscal ou desiste de uma vez por todas de aprovar os projetos com os quais pretende trazer o crescimento de volta à economia brasileira.
Se optar por continuar gastando sem manter o equilíbrio das contas, ele garantirá o crescimento por algum tempo, mas acabará trazendo a inflação de volta a todo vapor. Se for obrigado a parar de gastar por absoluta falta de dinheiro, empurrará o Brasil para a recessão e gerará uma crise ainda maior do que a do governo de Dilma Rousseff.
É difícil saber qual das alternativas é pior e a única maneira de evitar que uma delas aconteça é melhorar a articulação política e investir na qualidade do relacionamento não só com a sociedade, mas também entre os órgãos do governo. O problema não está apenas na área sob responsabilidade de Padilha. O temperamento do chefe da Casa Civil, Rui Costa, que tem a missão de fazer com que os outros 37 ministros marchem na mesma direção, não tem ajudado a imprimir unidade ao governo. Visto como autoritário por seus pares, Costa até tenta impor diretrizes a seus pares — mas a maioria prefere seguir seu próprio caminho.
Cada ministério, depois de um ano e cinco meses de governo, parece ter se transformado numa unidade autônoma, em que o titular da pasta age com os olhos postos em seus próprios interesses e sem maiores compromissos com os objetivos estratégicos do governo que o nomeou. E, nessa Babel política, alguns têm sido especialmente pródigos em gerar problemas que afetam a eficiência do governo. E, mais do que isso, prejudicam o presidente justamente naquilo que ele mais estima: sua popularidade.
FEDERAÇÃO PARTIDÁRIA — Se Lula não se mexer e não der um jeito de colocar ordem na federação partidária que ele mesmo inventou com o objetivo de facilitar a aprovação pelo Congresso das matérias de interesse do governo, corre o risco de terminar este mandato menor do que iniciou. E isso, para alguém com os traços de personalidade do presidente, seria o pior dos mundos.
Enquanto a saída não é encontrada, os problemas vão se acumulando e o governo parece indiferente diante das dificuldades criadas pelos seus ministros. Veja, para citar o mais óbvio de todos os exemplos, os episódios que envolvem o ministro das Comunicações, Juscelino Filho. Médico e criador de cavalos Quarto de Milha, ele era um deputado federal de carreira sem brilho. Eleito pelo União Brasil, nada do currículo de Juscelino o recomendava para ocupar um cargo que requer competência técnica sobre temas tão específicos, como é o de ministro das Comunicações.
O problema vai muito além do despreparo. Desde o início do governo, ele tem sido alvo de denúncias, e cada vez que alguém revolve o lodaçal que existe em torno dele, um pouco da sujeira respinga na reputação do governo. Dias atrás, o vazamento de um relatório da Controladoria Geral da União confirmou uma denúncia antiga. Quando exercia seu mandato de deputado federal, diz a CGU, Juscelino torrou R$ 7,5 milhões de emendas parlamentares na pavimentação de uma estrada que atende apenas propriedades de sua família, no município maranhense de Vitorino Freire. Mesmo assim, não existe qualquer sinal de que ele venha a ser convidado a deixar a equipe ministerial. A impressão que fica é a de que a pasta das Comunicações não pertence ao governo, mas foi reduzida a um feudo do União Brasil, o partido de Juscelino.
FILTROS ÉTICOS — Decisões como a de manter um auxiliar cuja presença contamina a imagem de todo o governo, é evidente, têm um preço que é cobrado a cada dia. A inexistência de filtros éticos para a escolha de ministros tem ajudado a aumentar a sensação de descontrole que paira sobre o governo. A impressão que esse tipo de situação provoca, que é péssima junto aos eleitores, estimula os demais partidos que integram a base de apoio a exigir um tratamento semelhante por parte do governo. E, claro, contribui para aumentar a pressão por mais espaço e por mais verbas.
Outra consequência é a mudança de feição de um governo que, pouco a pouco, vai se esquecendo das promessas que garantiram a eleição do petista para seu terceiro mandato. Um governo que, ao abdicar da identidade em torno da qual moldou seu discurso de campanha, vai aos poucos adquirindo uma feição muito semelhante à da administração de Jair Bolsonaro.
Calma! Ninguém está querendo atribuir semelhanças aos discursos, às personalidades e muito menos aos métodos utilizados por Lula e por Bolsonaro. O que está sendo dito é que, sob o ponto dos partidos que ocupam cargos importantes no governo, e com a devida substituição do discurso liberal do PL de antes pelas posições esquerdistas do PT de agora, os dois governos, na prática, contam mais ou menos com as mesmas legendas no bloco de apoio. Ambos são reféns do Centrão.
Num dos mais evidentes movimentos que confirmaram que o governo tem cedido mais e mais espaço para o Centrão, Lula trocou a ex-atleta e antiga correligionária Ana Moser pelo deputado do PP André Fufuca — que nunca demonstrou a menor habilitação para o cargo de ministro dos Esportes. Tudo bem! O episódio é antigo e já se passaram mais de seis meses desde que houve essa substituição. Mas é justamente aí que está o xis da questão.
CRUZADA PELO ATRASO — Por já ter havido tempo para que a substituição produzisse seus efeitos, uma pergunta se justifica: qual foi, afinal, a vantagem que o governo obteve com essa manobra? Se houve alguma, ela nunca ficou clara. Independente da presença de Fufuca no ministério, os parlamentares de seu partido, o PP, que é o mesmo do presidente da Câmara, Arthur Lira, continuam tão ou até mais vorazes do que eram antes.
E, à véspera de votações importantes, como as que estão previstas para esta semana — quando o Congresso deve decidir sobre uma série de vetos de Lula a pontos de projetos aprovados pelo Legislativo —, seguem pressionando o governo com as mesmas exigências por verbas e por emendas que faziam no tempo em que não tinha assento na Esplanada. Ou seja: no final das contas, o saldo que restou da substituição de Ana Moser por Fufuca foi o desgaste pelo tratamento descortês dado à velha companheira de tantos caminhos e tantas jornadas.
VELHAS BANDEIRAS — Ninguém aqui está afirmando que esse tipo de troca, e que a presença ostensiva do Centrão no governo, tenha reduzido os arroubos ideológicos que fazem parte da trajetória petista. O próprio presidente, como ficou claro no esvaziado evento em comemoração ao Dia do Trabalhador, 1º de maio, que reuniu menos de duas mil pessoas em São Paulo, frequentemente os comete. Em seu discurso, Lula chegou a pedir votos para o candidato do PSOL à Prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos.
Independente disso ter significado uma infração à Lei Eleitoral, que proíbe para os demais candidatos a propaganda antecipada, o que se discute aqui é o efeito que um apoio como esse causa no ambiente político, as dificuldades que isso cria para os esforços do governo por consolidação de sua base política. Se o próprio Lula comete esse erro, sempre haverá outros dispostos a cometê-los.
A questão é que, tanto quanto o loteamento de cargos, os exageros verbais cometidos em nome da visão esquerdista do PT nada trazem de positivo para as articulações políticas. Assim como trouxe para seu lado políticos como Juscelino Filho e André Fufuca, que construíram suas carreiras no campo oposto ao do PT e se mantiveram fiéis ao governo anterior do primeiro ao último dia do mandato de Jair Bolsonaro, Lula mantém na Esplanada gente que honra as velhas bandeiras da esquerda e conserva o estilo de falar sem medir as consequências. E que não demonstra o menor pudor na hora de dizer estultices para reafirmar seu compromisso com ideias que nunca dão certo quando alguém tenta colocá-las em prática.
Um dos casos mais recentes, nesse sentido, é o do ministro do Trabalho, Luiz Marinho. Se dependesse apenas dele, a reforma trabalhista feita no governo do presidente Temer já teria sido revogada e o custo da contratação do trabalhador com carteira assinada voltaria a ficar proibitivo para o empregador. As consequências dessa volta ao passado, é evidente, seriam o aumento das demissões e a ampliação do trabalho informal.
O ponto mais marcante na trajetória do ministro tem sido seu esforço pela volta do imposto sindical. Esse tributo, como se sabe, era aquela tungada que o trabalhador recebia no contracheque para financiar a máquina sindical do país. Antigamente, custava ao trabalhador um dia de salário por ano. Marinho queria que o confisco compulsório voltasse e fosse elevado para 1% dos rendimentos anuais do assalariado. A ideia infeliz, pelo bem da reputação do próprio governo, não deve prosperar. Arthur Lira já avisou que, caso seja levada a plenário para votação, a iniciativa será rejeitada.
Mas Marinho é incansável em sua luta pelo atraso. Dias atrás, acirrou o ânimo da bancada ruralista quando desqualificou o agronegócio com afirmações que até poderiam ter saído da boca de um líder estudantil secundarista. Mas jamais de um ministro de Estado. Segundo ele, "quem bota alimento na mesa do brasileiro de verdade são as pequenas propriedades, os pequenos agricultores, é a agricultura familiar, os assentamentos do MST, que muita gente torce o nariz quando fala, mas essa é a verdade". E, prosseguindo a peroração infeliz sobre a segurança alimentar no Brasil, ainda teve a coragem de acrescentar: "Nós devíamos ter tomado a providência de importar arroz da Venezuela, por exemplo, porque houve uma redução da área plantada no Brasil".
APOIO CARO — Um raciocínio rasteiro como esse só se justifica pela crença em mitos, pela desinformação ou pela tentativa deliberada de distorcer os fatos com base em algum tipo de contaminação ideológica. Ou, como parece ser o caso de Marinho, pela soma de tudo isso. Dizer que o MST põe comida na mesa do brasileiro é de uma infelicidade profunda — típica de quem não tem a mínima noção do que se passa no campo.
O Brasil é o maior produtor de arroz do Ocidente. Acima dele, apenas países asiáticos. A produção nacional é ajustada ao consumo — e as importações e exportações só existem por conveniências comerciais, nunca por risco de escassez. Essa autossuficiência se deve, basicamente, às grandes lavouras do cereal, espalhadas por Tocantins, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e outros estados.
A safra mais recente, que terminou de ser colhida este ano, alcançou 10,6 milhões de toneladas — com um crescimento de 5,3% em relação à safra anterior. Ao contrário do que diz Marinho, a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) informa que não houve redução, mas, ao contrário, aumento de 4,4% da área plantada.
Isso não significa que a agricultura familiar não seja importante. Ela tem, de fato, uma participação na produção desse alimento essencial para a dieta básica do brasileiro. Mas esse modelo de produção é incapaz de atender às necessidades da população, sobretudo, dos grandes aglomerados urbanos do país.
Quanto ao MST, bem... Existe no Brasil o mito de que movimento se tornou o maior produtor de arroz orgânico no Brasil. Pode ser... Mas nem os próprios "ativistas" são capazes de dizer com segurança de quantas toneladas é sua produção nem quanto ela contribui para fazer com que o arroz chegue à mesa dos brasileiros de baixa renda. E, para encerrar os comentários sobre os devaneios ideológicos de Marinho, há um ponto a ser acrescentado. Se tivesse que contar com importações da Venezuela para alimentar a população, o Brasil teria que procurar outro cereal para substituir o arroz.
De acordo com números da Embrapa, o país de Nicolás Maduro é apenas o oitavo maior produtor de arroz da América do Sul. À frente dele estão, além do próprio Brasil, o Peru, com 3,5 milhões de toneladas, a Colômbia, com 3,3 milhões de toneladas, o Equador e a Argentina, ambos com 1,5 milhão de toneladas, o Uruguai, com 1,3 milhão de toneladas, e o Paraguai, com 1,2 milhão. Só depois vem a Venezuela, com suas 800 mil toneladas.
Citar esses números, que estão disponíveis em sites do próprio governo e, portanto, acima de qualquer suspeita de cunho ideológico, só faz sentido para mostrar um ponto. A tentativa recorrente de setores da esquerda, aliados históricos de Lula, que não medem esforços para demonizar o agronegócio, é apenas mais um dos fatos que ajudam a criar dificuldades políticas para o governo.
O governo de qualquer país que contasse com uma agricultura pujante como a brasileira, responsável por saldos crescentes da balança comercial e pela geração de bilhões e bilhões de dólares em renda, certamente trataria o campo com mais respeito. O setor agrícola, claro, merece críticas e, como todos os demais, pode passar por melhorias para aumentar os benefícios que gera. O que é inaceitável, no entanto, é a postura de gente como Marinho, que não avalia o efeito das besteiras que fala a respeito do que desconhece e, em nome da fidelidade à militância esquerdista, tem criado mais problemas do que oferecido soluções ao presidente Lula.
Ao criticar e, mais do que isso, tentar reduzir a importância do agronegócio com uma fala sem pé nem cabeça, Marinho desagrada toda a Frente Parlamentar da Agropecuária, uma bancada formidável que conta com 374 dos 513 deputados e 50 dos 81 senadores. Para um governo carente de apoio e que tem feito de tudo para conseguir aprovar medidas do interesse do presidente Lula, é bom não desafiar a paciência desse pessoal. Ao contrário do que faz a esquerda quando está na oposição, essa turma nunca se nega a conversar nem fecha as portas para o entendimento com o governo. Quando alguém a contraria, ela apenas dificulta o diálogo e cobra mais caro por seu apoio.
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