Nuno10novARTE KIKO

Os primeiros anúncios dos resultados das eleições presidenciais nos Estados Unidos, com o retorno do republicano Donald Trump para mais quatro anos à frente da Casa Branca, foram suficientes para dar início, no Brasil, à habitual enxurrada de conclusões apressadas sobre um processo que ainda está longe de sua conclusão. O homem ainda não tomou posse nem anunciou o nome de seus assessores. E, mesmo assim, muita gente já prevê que uma catástrofe se abaterá sobre os Estados Unidos e se alastrará pelo mundo nos próximos quatro anos.
Isso porque, conforme vaticinam os analistas de plantão, o coração de Trump é um pote até aqui de maldades. Ele é contra os direitos das minorias, persegue os imigrantes, desrespeita as mulheres, despreza os países latino-americanos e, em nome do compromisso de fazer a América grande novamente, não está nem aí para o que acontece no mundo a seu redor. Essa é a visão que predomina quando se escuta o noticiário da TV e se lê as páginas dos principais jornais do Brasil análises sobre o governo dos Estados Unidos, que tomará posse no próximo dia 20 de janeiro.
Trump, na visão de seus críticos, é uma ameaça ao meio ambiente — e põe os Estados Unidos na condição de inimigos nº 1 da sustentabilidade e da transição energética. Será que é isso mesmo? Bem... os Estados Unidos, conforme revelou na semana passada um estudo do Observatório do Clima, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), têm muito a contribuir para essa causa. Mas não são o único nem o maior problema.
O país está em segundo lugar na lista de maiores emissores mundiais de gases causadores do efeito estufa. Em primeiro lugar está a China. Em terceiro, a Índia, seguida pela Rússia e pelo Brasil — que vem melhorando seu desempenho conseguiu reduzir em 12%, no ano passado, a emissão de carbono em relação a 2022. A questão é que, dos quatro maiores emissores de carbono do planeta, três são integrantes do BRICS — que, no entanto, nunca são apontados no Brasil como uma ameaça ao clima.
Essa questão, certamente, será debatida dentro de alguns dias na Cúpula do G-20, que acontecerá no Rio de Janeiro — e contará com a presença de Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, em final de mandato. É claro que, pela liderança que exercem no mundo, o país teria papel de destaque na corrida ambiental caso Trump assumisse, como o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu na semana, uma posição mais ativa no processo. “O presidente Trump tem que pensar como habitante do planeta Terra”, disse Lula.
ATITUDE MADURA — Os acenos de Lula na direção do presidente republicano demonstram uma atitude madura e correta da diplomacia brasileira que, ao invés de tomar decisões com base em preferências ideológicas, coloca os interesses do Brasil em primeiro lugar — e propõe um diálogo com quem interessa conversar. E deveriam servir de inspiração para os críticos que se referem ao novo presidente dos Estados Unidos como se ele fosse um inimigo da humanidade.
A primeira pergunta é: se Trump fosse ruim como se fala, teria sido escolhido por uma margem tão expressiva de eleitores de seu país? Pelo sistema peculiar de votação nos Estados Unidos, para ser eleito presidente, ele precisaria conquistar 277 cadeiras em um colégio eleitoral com 538 delegados. Conquistou 292. E mesmo se fosse considerada a soma dos votos dos eleitores, ele obteve uma ampla maioria: 71,8 milhões, contra 66,9 milhões dados a Kamala Harris.
É o caso, portanto, de insistir na pergunta: se ele é tão ruim assim, será que estaria voltando ao poder com uma margem muito mais expressiva de votos do que obteve sobre Hillary Clinton, nas eleições de 2016? Será que, se fosse o “troglodita” que o acusam de ser, conseguiria ter ampliado de forma tão expressiva a margem de votos que teve em suas experiências eleitorais anteriores entre os jovens, as mulheres, a população negra e até mesmo os imigrantes latino-americanos e seus descendentes?
Conforme as pesquisas de boca de urna, para citar apenas um exemplo, Trump obteve 54% da preferência dos eleitores latinos do sexo masculino — contra 32% em 2020 e 28% em 2016. Esses números deveriam inspirar uma reflexão entre os brasileiros que, com base nos mesmos valores e ideologias em que se apoiam para tomar as decisões em relação à política local, olham para o cenário norte-americano como se estivessem diante do reflexo ampliado de tudo o que acontece aqui.
OBSTÁCULOS LEGAIS — As indagações feitas há pouco são pertinentes, mas, para espanto de absolutamente ninguém, logo que a contagem dos votos deixou nítido o triunfo de Trump — de forma clara, legítima e dentro do que estabelece a legislação de seu país — começaram a se ouvir vozes que atribuíram o resultado não aos méritos do vencedor nem à aceitação da proposta do Partido Republicano pelo eleitor.
Para certos analistas, simpáticos às posições de esquerda, a vitória indiscutível sobre a democrata Kamala Harris se explica pelas maquinações ardilosas da “extrema direita”.
Para os analistas com visão de esquerda, Trump venceu porque o eleitor que o escolheu não sabe votar. Para contrabalançar a situação, há, também, as opiniões dos simpatizantes que olham para os Estados Unidos de hoje como se fosse o Brasil de amanhã. Para esses, o fato de Trump ter sido escolhido para governar os Estados Unidos pelos próximos quatro anos alimenta a esperança de que, em 2026, Jair Bolsonaro volte a Brasília como presidente do Brasil.
Existe relação entre um fato e outro? Bem... se existe ela ainda não foi comprovada pelos fatos — e ainda é cedo para afirmar que os mesmos ventos que sopraram no Norte nessas eleições moverão os moinhos no Brasil daqui a dois anos. Assim como Bolsonaro, Trump enfrentou, desde que deixou o poder, uma série de acusações e encarou um monte de problemas na Justiça. Mas, tirando esse fato, há diferenças enormes entre as trajetórias de um e de outro.
Embora tenha sido alvo de inquéritos e processos desde que deixou a Casa Branca, em 2021, Trump jamais enfrentou qualquer tipo de obstáculo legal que o impedisse de se candidatar. A legislação dos Estados Unidos assegura a qualquer cidadão, ainda que tenha sido condenado e preso, o direito de disputar qualquer cargo eletivo. E, mais do que isso, de exercer o mandato caso seja eleito. Lá, a decisão do eleitor é soberana e apenas os crimes de traição à Pátria tornam uma pessoa inelegível.
No Brasil, não. Por aqui, a decisão de um único juiz tem o poder de contrariar a vontade dos milhares e milhares de eleitores que escolheram um determinado candidato para um determinado cargo. Não é o caso de Bolsonaro. Ele se tornou inelegível por decisão colegiada do Tribunal Superior Eleitoral e, para disputar o pleito, terá que derrubar essa decisão no Supremo Tribunal Federal.
Isso parece difícil. Mas Bolsonaro vem se mexendo em Brasília para reaver os seus direitos políticos. Embora essa possibilidade seja apontada por muita gente como remota, a Justiça brasileira já deu mais de uma prova de que pode mudar de ideia ao sabor da ventania. Uma série de exemplos recentes mostram que, entre nós, a pressão popular pode alterar veredictos judiciais e que os magistrados que hoje dizem A diante de uma determinada situação, amanhã podem mudar de ideia e dizer B.
A Praça dos Três Poderes, está repleta de exemplos de pessoas que ontem estavam com os direitos suspensos e hoje, por decisão dos mesmos tribunais que os condenaram, estão em pleno gozo de seus direitos. Até o dia 8 de março de 2021, quando o ministro do STF Edson Fachin tomou a decisão de anular as provas que geraram as condenações que o levaram à prisão e o tornaram inelegível, o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tinha o direito de disputar as eleições. Cerca de um ano e meio depois, Lula estava de volta à presidência, eleito e consagrado pelo voto popular.
SEXTO LUGAR — Seja como for, a questão é que, ao culpar o eleitor por escolher candidatos que não rezam por sua cartilha, a esquerda joga fora uma oportunidade de ouro de refletir sobre seus equívocos eleitorais. Veja, por exemplo, o que disse a respeito da vitória de Trump o deputado federal pelo PT de Minas Gerais, Rogério Correia: “Com a vitória de Trump, quem perde não é só a Kamala, mas a democracia, o meio ambiente e o clima que são constantemente ameaçados pela extrema direita”.
A opinião do deputado é apenas uma entre dezenas de manifestações parecidas — inclusive por parte de pessoas com posição mais elevada do que a dele na hierarquia partidária. Aliás, é provável até que a maioria dos leitores desta coluna não saiba quem é ele. Trata-se de um militante histórico do PT que, semanas atrás, disputou o primeiro turno das eleições municipais de uma das cidades mais importantes do país, Belo Horizonte. Terminou na sexta posição — mesmo tendo recebido durante a campanha o apoio ostensivo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O impressionante é que, a exemplo de outros petistas, Correia parece se recusar a fazer um exame de consciência que o leve a entender por que o eleitor belorizontino não deu a menor bola para suas propostas. No caso dos Estados Unidos, ele prefere lançar ofensas sobre o candidato vitorioso. Lucraria mais se reconhecesse que a candidata democrata foi rejeitada porque o eleitor médio — que trabalha, estuda e recolhe seus tributos para manter a máquina do Estado em funcionamento — está cansado de ter seus direitos tolhidos, e ainda ser acusado de responsável por todas as mazelas sociais.
Esse, aliás, é um ponto interessante. A tendência de acusar o adversário vitorioso pelas derrotas nas urnas tem sido frequente na política brasileira. E, pelo que se viu na semana passada, também se manifesta em relação à política internacional. Ao invés de admitir a própria incapacidade de atrair o eleitor para seu lado, analistas de plantão preferem colocar a culpa pelo próprio fracasso em supostas manipulações cometidas pelo “lado de lá”. E acabam, assim, aumentando ainda mais a distância que os separam do eleitor e da vitória nas urnas.
ELEITOR COMUM — A verdade, porém, é uma só: tanto nas eleições presidenciais que acabam de acontecer nos Estados Unidos quanto nas disputas municipais que aconteceram no mês de outubro no Brasil, venceu quem teve o apoio do eleitor que se recusou a “se deixar levar por um papo que já não deu”. Ou seja, por aquele eleitor que parece cansado de esperar pelo paraíso na terra anunciado pela esquerda e, ao invés de apoiar o discurso messiânico de quem promete um mundo em que há mais direitos do que deveres, preferiu escolher aqueles que acenam com um ambiente onde ele possa trabalhar, empreender, sustentar a família, prosperar num ambiente de conforto e segurança, e, se tudo der certo, enriquecer.
É isso que a esquerda parece não compreender. O eleitor comum, aquele que sai de casa toda amanhã para ir à escola, trabalhar ou procurar emprego, parece cansado da defesa insistente de teses que incluem a liberação das drogas, a facilitação do aborto, a ampliação dos direitos concedidos a criminosos e outras bandeiras do tipo. Há mais pessoas cansadas desse discurso do que podem perceber os que ainda fazem político com base nas fantasias socialistas de meados do Século 20.
Muita calma nesta hora! Ninguém em sã consciência pode propor a revogação de direitos adquiridos, que fazem parte das conquistas democráticas das últimas décadas. Todo cidadão que se preza tem a obrigação de defender essas conquistas, a começar pela liberdade de expressão que dá a todos os políticos da esquerda, do centro, da direita ou de qualquer variação possível dessas posições, o direito de se dirigir ao eleitor com o uso dos instrumentos lícitos e consagrados pelo regime democrático de direito. Mas que, na outra ponta, também dá ao eleitor o direito de fazer escolhas com base nas próprias aspirações, convicções e princípios. Quem defende liberdade de expressão não tem o direito de tentar calar a boca de quem pensa diferente.
E antes que alguém acuse este colunista de estar contaminado pelo espírito do Conselheiro Acácio, da obra de Eça de Queiroz, e ter passado a dizer obviedades como se fosse o conceito mais inteligente do mundo, convém deixar um ponto claro. De algum tempo para cá, muitos “analistas” tratam o eleitor como se ele não passasse de massa de manobra, como se fosse uma rês disposta a obedecer sem refletir a voz de comando do dono da manada.
Se esquecem de que, independentemente dos discursos que ouve, o eleitor, diante da urna, faz suas escolhas com base em seus próprios valores, interesses e aspirações. E se, por acaso, ele toma uma decisão que contraria os interesses dos que se acham no direito de impor valores e determinar o que é certo e o que é errado para a sociedade, o erro talvez não seja dele, mas da lógica que orienta o discurso dominante.
TENSÕES INTERNACIONAIS — A voz das urnas na semana passada mostra que o eleitor dos Estados Unidos, a despeito da situação de pleno emprego e do crescimento registrado durante a administração de Biden, quer ter acesso facilitado à compra da casa própria — um sonho que, pelos preços exagerados, pela baixa oferta de imóveis e pelas restrições aos financiamentos, nunca esteve tão distante da classe média norte-americana como está agora. O eleitor quer pagar menos pelos alimentos e ter atendidas aspirações que não figuravam entre os compromissos de campanha de Kamala Harris.
Trump foi sensível a esse tipo de necessidade e, por isso, conquistou o eleitor. Um eleitor que, por sinal,
conhece as ideias do presidente e sabe que, ao escolhê-lo, endossa a política mais dura em relação aos imigrantes ilegais que tenham cometido delitos em território americano. Endossa, também, a política pró-Israel que o presidente eleito já praticou em sua passagem anterior pela Casa Branca. Isso pressupõe a adoção de medidas mais duras em relação ao Hamas, ao Hezbollah e a todos os grupos terroristas que se escondem atrás da causa palestina para ameaçar o Estado judeu aliado histórico dos Estados Unidos.
Sabe, também, que o resultado provocará alterações na política da Casa Branca em relação ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Sabe, ainda, que o governo americano adotará uma política mais dura em relação à Venezuela, a Cuba e aos governos de esquerda do mundo. Sabe, finalmente que a temperatura das relações dos Estados Unidos com a China tende a esquentar e que isso poderá gerar tensões no comércio mundial e nas relações internacionais.
A pergunta que fica diante de tudo isso é: e o Brasil, como fica nessa história? É aí que está a questão. Se o relacionamento dos diplomatas brasileiros com os representantes dos Estados Unidos nas Nações Unidas e em outros organismos internacionais registrou momentos de tensão durante a administração ideologicamente mais flexível de Joe Biden, será possível esperar algum entendimento do Itamaraty com a diplomacia mais ortodoxa praticada pelos assessores de Trump?
Vamos a um exemplo concreto. Dias atrás, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, cobrou em pronunciamento nas Nações Unidas a suspensão dos embargos econômicos impostos pelos Estados Unidos à ditadura comunista de Cuba. O posicionamento se deu em função da destruição causada pelo furacão Oscar.
“Instamos os Estados Unidos a reconsiderarem sua política sobre Cuba: eliminar as sanções, retirar Cuba da lista dos Estados patrocinadores do terrorismo e fomentar um diálogo construtivo, baseado no respeito mútuo e na não interferência”, disse Vieira. A resposta do governo Biden foi o mais absoluto silêncio. Será que os diplomatas de Trump teriam a mesma postura indiferente que a turma de Biden tem mantido em relação a às manifestações de simpatia que o governo brasileiro costuma dar em relação a seus adversários? O certo é que, gostem ou não gostem de seu estilo, Trump foi eleito e governará os Estados Unidos pelos próximos quatro anos. E é melhor, para os Estados Unidos, para o Brasil e para o mundo, o melhor que pode acontecer é que ele esteja certo e consiga fazer tudo o que prometeu. Nem que seja apenas para dar aos adversários a oportunidade de discutir os resultados com a população e — quem sabe? — reunir argumentos que convençam o eleitor de que serão capazes de fazer melhor caso vençam as próximas eleições.