Da mesma forma que fatos acontecidos em outras cidades podem trazer ensinamentos preciosos para os cariocas, as experiências do nosso município podem, perfeitamente, reverberar pelo país afora Arte: Kiko

Agora que a eleição passou e os votos foram computados em todos os municípios do país, é hora de parar e refletir sobre as lições que podem ser tiradas do processo eleitoral que terminou na semana passada. Quer dizer... refletir sobre os pontos que mais chamaram atenção no processo que já está concluído para os eleitores na maioria dos municípios do país, inclusive o do Rio de Janeiro. Por aqui, nenhuma surpresa. As previsões se cumpriram e Eduardo Paes foi reeleito para mais quatro anos à frente da prefeitura.
Acontece, porém, que, felizmente, o Rio não é uma ilha. Da mesma forma que fatos acontecidos em outras cidades podem trazer ensinamentos preciosos para os cariocas, as experiências do nosso município podem, perfeitamente, reverberar pelo país afora e gerar lições capazes de esclarecer algumas situações aparentemente absurdas vividas por outros leitores. Assim, a primeira lição do Rio para o Brasil é a seguinte: não é obrigatório, como parece ser diante do que os analistas de plantão insistem em dizer, se identificar com a esquerda mais furiosa nem com a direita mais radical para conquistar a preferência do eleitorado.
Bem avaliado pelos eleitores, Paes é a encarnação do político de centro. É hábil em buscar o entendimento pelo diálogo e evita ofender os adversários para conquistar a preferência do eleitor. Cumpre os acordos que celebra e sempre se mostrou avesso a radicalismos. Sem apelar para polêmicas desnecessárias, atravessou a campanha inteira na liderança das pesquisas eleitorais. No final, foi eleito em primeiro turno, feito que não se explica por ações espetaculares de campanha e muito menos pelo apoio que recebeu do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Um apoio que, comparado ao que foi dado a outros candidatos pelo Brasil afora, foi para lá de discreto.
A vitória de Paes, que no final das contas pareceu extremamente fácil, se explica sobretudo por seu trabalho à frente de uma administração que tem resultados a apresentar, a despeito dos problemas que o município continua tendo e que jamais se resolverão em apenas um ou dois mandatos. E esses resultados, pelo que demonstram o placar final da eleição, pareceram sólidos o bastante para inspirar o carioca a não arriscar seu voto em candidatos que ainda não foram testados à frente de tarefas desafiadoras — como é a de comandar um município complexo como o Rio.
Os números falam por si. Paes foi escolhido por 1.861.856 eleitores — o que representou pouco mais de 60% dos votos válidos. E isso aconteceu porque ele honrou o crédito de confiança que esse mesmo eleitor lhe conferiu há quatro anos. Se esses números serão suficientes para garantir sua vitória nas eleições para o governo do estado em 2026 — caso ele confirme a intenção de deixar a prefeitura e se lançar candidato — são outros quinhentos. O que está confirmado, por enquanto, é que, como prefeito, ele tem ampla aprovação popular. O futuro, na política, é escorregadio como uma enguia: quando se pensa que ele está seguro, desliza entre as mãos de quem tentou pegá-lo.

PADRINHOS POLÍTICOS — O que está em discussão, aqui, não tem a ver com os próximos passos que, porventura, Paes pretenda dar, mas com aqueles que o trouxeram até esta vitória. E a conclusão que se pode tirar neste momento é, como já foi dito, que nem tudo o que acontece na política brasileira está pautado pela polarização excessiva entre direita e esquerda que tem dominado o cenário eleitoral nos últimos pleitos.
Mas, além de confirmar que há espaço na política brasileira para políticos que não rezam pelo credo da direita nem se orientam pela bússola da esquerda, a vitória de Paes oferece outra lição fundamental. A de que nem todos dependem de padrinhos políticos para alcançar os cargos mais importantes. Isso mesmo!
No Brasil, de algum tempo para cá, tornou-se comum analisar qualquer eleição, no âmbito federal, estadual ou municipal, como consequência do posicionamento do eleitor diante das recomendações que chegam “do alto”. Por essa visão, o eleitor não vota naquele que escolhe por sua conta, riscos e valores. Ele vota, sim, naquele em quem algum “líder” o manda votar. Por esse ponto de vista, a disputa entre Lula e Bolsonaro seria determinante em qualquer município do país. Do mais populoso de todos, São Paulo, onde 6.773.587 pessoas votaram, ao menor do país, Serra da Saudade, em Minas Gerais. Ali, Neusa Ribeiro, do PP, foi eleita com 1.084 dos 1.196 votos depositados nas urnas.
Ainda que pareça repetitivo, é bom insistir nesse ponto. A maioria dos analistas do processo eleitoral tem dado a entender que tudo que acontece nas eleições brasileiras depende apenas dos movimentos feitos na cúpula e da capacidade dos políticos de cativar o eleitor. Ninguém leva em conta a possibilidade de o eleitor ser soberano na escolha de seu candidato nem presta atenção aos sinais crescentes de exaustão que ele vem dando diante do excesso de polarização visto nos últimos pleitos. Se algum desses analistas que insistem em ver a política de cima para baixo se desse ao trabalho de entender a cabeça do eleitor, sobretudo do jovem, notaria que ele está farto das discussões inflamadas em torno da opção pela direita ou pela esquerda que, nos últimos anos, já transformou muitos velhos camaradas em inimigos irreconciliáveis.
O eleitor, para esses analistas, não tem vontade própria e continua condenado a seguir a voz de comando dos candidatos que disputaram as eleições para a presidência da República em 2022. Dessa maneira, o fato de Jair Bolsonaro ter se saído vitorioso no município do Rio naquele pleito, com 52,6% dos votos válidos, seria a garantia de que o candidato apoiado por ele para a prefeitura, Alexandre Ramagem, chegaria pelo menos no segundo turno da disputa.
Antes do início da campanha eleitoral, houve até quem visse nesse apoio um sinal do favoritismo de Ramagem na disputa. Afinal, se há apenas dois anos o então presidente da República foi suficiente para levar um desconhecido, como era seu ex-ministro e então candidato, Tarcísio de Freitas, ao governo de São Paulo, por que não garantiria a presença de seu escolhido na prefeitura do Rio?
Nessa comparação, a missão de eleger Ramagem — delegado de carreira da Polícia Federal, ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e deputado federal em primeiro mandato — num município carente de segurança como o Rio, chegou a ser vista no início da corrida como uma missão mais fácil do que a de eleger o então neófito Tarcísio para o governo de São Paulo. Como se viu, não era.

MANDATO ERRÁTICO — Aqui é bom parar para refletir. O apoio vindo de um político com a visibilidade e as características de Bolsonaro pode, sim, ser um fator de desequilíbrio em algumas disputas acirradas. No caso específico da disputa pelo governo de São Paulo nas eleições passadas, os desgastes acumulados por mais de 20 anos de presença do PSDB no governo, as picuinhas que geraram desgastes entre os políticos que deveriam estar do mesmo lado e a incapacidade da esquerda de se comunicar com o eleitorado de centro forneceram a Bolsonaro e Tarcísio as condições ideais de temperatura e pressão para uma vitória expressiva.
Mas, no caso do município do Rio nas eleições de agora, não. Com o município coeso em torno da administração de Paes, o apoio de Bolsonaro, por si só, jamais seria suficiente para levar Ramagem ao segundo turno das eleições para a prefeitura. E a explicação para isso está numa característica que o eleitor deixa mais clara a cada eleição. Essa característica é a seguinte: o eleitor nunca muda por mudar.
Mesmo aquele eleitor que se identifica com as bandeiras consideradas mais modernas e progressistas no que diz respeito aos direitos das pessoas, tem, no fundo, no fundo, um conservador a orientar suas escolhas. Ele só se dá ao trabalho de colocar um candidato que não conhece em um cargo vital, como é o de prefeito de uma grande cidade, quando o político escolhido na eleição anterior não se mostrou à altura da missão que recebeu. Isso mesmo. Em política, a capacidade comprovada de entregar ao eleitor aquilo que foi prometido conta mais do que as promessas de mudar “tudo que aí está”.
Isso remete a um outro ponto. Não basta estar no cargo nem ter o controle da máquina pública — que muitos consideram essencial para a vitória eleitoral — para se reeleger. Nesse aspecto, pode-se dizer que a reeleição de Paes, depois de quatro anos de exercício do mandato, foi mais fácil do que sua vitória de 2020.
Naquele ano, ele voltou à prefeitura depois de disputar o segundo turno com Marcelo Crivella — que viu o apoio que recebeu do eleitor em 2016 se reduzir a pó ao longo de um mandato errático e sem propósito.
Todos esses pontos se resumem no seguinte: o que garantiu para Paes uma reeleição tranquila como a do domingo passado foi, acima de tudo, a capacidade que ele teve de assegurar à população serviços públicos de melhor qualidade do que encontrou. É por essa razão que o eleitor do Rio, no próximo dia 27, terá o domingo livre para ir à praia, enquanto os moradores de outras capitais, como São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, terão que retornar às sessões eleitorais para votar no segundo turno.

DE PERNAS PARA O AR — Mesmo os eleitores dos municípios que já liquidaram a fatura, como é o caso do Rio, devem parar para refletir sobre o processo eleitoral. E pensar, por exemplo, sobre as razões que permitiram ao candidato Pablo Marçal, que disputou a prefeitura de São Paulo pela legenda do PRTB, ter causado o fuzuê que quase deixou o processo eleitoral de pernas para o ar.
A questão a ser esclarecida é: como alguém que surge praticamente do nada, sem qualquer histórico que justifique uma presença destacada na cena política, é capaz de sacudir o sistema e colocar todos os outros candidatos, absolutamente todos, em posição defensiva?
Antes de responder, é bom lembrar que a Justiça decidirá nos próximos meses se as atitudes de Marçal ao longo da campanha (sobretudo em relação ao “laudo médico” forjado, que envolve seu adversário Guilherme Boulos com o consumo de cocaína) serão suficientes para bani-lo da política. É evidente que os adversários ficariam felizes em não ter pela frente alguém como ele. Mas o fato de afastá-lo não significa eliminar seu poder de influência — e o espaço que ele ocupou agora pode ser ocupado por qualquer outro que disponha de recursos e demonstre habilidade para fazer o mesmo que ele fez.

FRAGILIDADE DO SISTEMA — Marçal é um provocador e deixou isso claro do início ao fim do processo eleitoral. Não demonstrou respeito pelos adversários, em quem tentou colar apelidos jocosos e incômodos. Falou mais do que devia e, de tanto ultrapassar os limites aceitáveis da convivência política, acabou se envolvendo em situações que lhe custaram votos preciosos. O remédio, quando é forte demais, diz a sabedoria popular, ao invés de curar, mata o paciente.
Foi o que aconteceu, por exemplo, no episódio em que tratou com desrespeito o drama do pai da candidata Tábata Amaral — morto em decorrência da dependência de crack. Ao trazer para o debate público um drama pessoal da candidata, ele até pode ter deixado Tábata desconcertada. O preço que ele pagou por esse tipo de atitude, no entanto, foi elevado.
Marçal ficou fora do segundo turno porque foi vítima do próprio veneno. Falou mais do que deveria em situações em que ganharia mais se ficasse em silêncio e ofereceu de bandeja aos adversários as armas que poderiam derrubá-lo. Tudo isso é verdade, mas não responde questões que, mais do que a derrota de Marçal, dizem respeito à própria presença dele na disputa.
Uma dessas questões, talvez a mais importante delas, não diz respeito aos méritos de Marçal como debatedor eloquente nem à sua habilidade em explorar com maestria os recursos da comunicação de massa em tempos de internet. Elas dizem respeito, sim, às imperfeições e às lacunas de uma legislação eleitoral que permite a uma pessoa sem qualquer vida partidária se apresentar como candidato numa eleição importante como é a disputa pela prefeitura de São Paulo. O candidato Pablo Marçal é filho legítimo da fragilidade do sistema político-partidário brasileiro.

BARRIGA DE ALUGUEL — Esse é o ponto que interessa. Pablo Marçal não existiria como fenômeno político se não contasse com uma legislação eleitoral frouxa e permissiva no que diz respeito à fidelidade partidária. Além disso, seu discurso iconoclasta não surtiria o menor efeito se não encontrasse, do outro lado, um eleitor ansioso por protestar contra uma situação que os políticos tradicionais fazem questão se ignorar.
Uma parte expressiva do eleitorado de Marçal era formada por jovens que já não se deixam mais seduzir pelo discurso dos partidos de esquerda e estavam em busca de um candidato em quem pudessem canalizar sua rebeldia e sua insatisfação. Por esse raciocínio, não foi Marçal que conquistou eleitores insatisfeitos. Os eleitores insatisfeitos é que o escolheram como porta-voz de seu descontentamento.
Ele disputou a prefeitura de São Paulo pelo PRTB porque, como ele mesmo admitiu ao longo da disputa, a legenda que pertenceu a Levy Fidelix, o candidato do Aerotrem, foi a única porta que se abriu para ele. Não precisou se submeter a qualquer tipo de teste que comprovasse um mínimo de conhecimento nem de afinidade com os princípios da legenda (se é que essa legenda tem algum propósito que não seja o de funcionar como barriga de aluguel para candidatos que desejam furar a fila por espaço na política).
Isso mesmo: não adianta Marçal dizer, como disse em vários debates, que defende o modelo adotado nos Estados Unidos, onde candidatos independentes podem se lançar à disputa dos cargos executivos sem estarem filiados a partidos. No Brasil não é assim. Por mais que os políticos tenham banalizado a estrutura partidária e estimulado a proliferação de legendas, o partido político ainda é uma referência importante na decisão do voto. Tanto assim que muitos eleitores vinculam seu voto a um candidato majoritário (presidente, governador ou prefeito) a um candidato que reze pela mesma cartilha para o Legislativo (senador, deputado federal, deputado estadual ou vereador).
Com Marçal, isso não aconteceu. E, por essa razão, mesmo tendo um candidato a prefeito votado por 1.719.274 eleitores, o PRTB não foi capaz de eleger um único vereador para Câmara Municipal de São Paulo. Com um detalhe: as 55 cadeiras da casa foram distribuídas entre candidatos de 13 partidos diferentes.
Se serve de consolo, o PSDB — partido que venceu três das cinco eleições anteriores para a prefeitura de São Paulo e que sempre teve bancadas expressivas na Câmara do município — também não conseguiu incluir um único vereador. Outro que sofreu foi o PT — que, embora tenha feito oito dos 55 vereadores em São Paulo e ficado com quatro das 51 cadeiras em disputa no Rio, teve um desempenho medíocre na disputa por prefeituras. O partido até apresentou um crescimento em relação ao número de prefeitos eleitos em 2020 — colocando 248 companheiros no comando de executivos municipais. A maioria deles, em cidades pequenas das regiões mais pobres do país. E, mais do que isso, foi praticamente escanteado nas capitais.
Seja como for, essa é uma discussão que está apenas começando e que ainda renderá muito pano para manga nos próximos capítulos. O recado que fica disso tudo é muito claro. Os políticos que não surpreendem nem contrariam o eleitor depois de receberem o mandato nas urnas, como foi o caso de Paes na prefeitura do Rio, são recompensados com o voto e se consolidam como alternativa para eleições futuras.
Por mais óbvia que pareça, essa lição parece não ser considerada por aqueles que se elegem com um discurso e esquecem tudo o que prometeram antes mesmo de tomar posse. Na outra ponta, é preciso considerar que, ao fazer uma legislação frouxa o suficiente para continuar permitindo que eles não tenham finalidade com a legenda que os elegeu, os políticos deixam frestas por onde entram aqueles que podem destruí-los. E, no meio de tudo isso, o eleitor continuará fazendo suas escolhas de acordo com suas conveniências. Simples assim.
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