Nem tudo é ideologiaPaulo Márcio

A campanha eleitoral no Rio de Janeiro caminha sem ser notada e, no que diz respeito à disputa pela prefeitura, parece incapaz de despertar paixões do eleitorado. A impressão que se tem é a de que o pleito marcado para o próximo dia 6 de outubro não passará de uma formalidade e terá como única finalidade confirmar mais quatro anos de mandato para o prefeito Eduardo Paes. Os números divulgados pelos institutos de pesquisas mais tradicionais têm servido apenas para confirmar essa tendência.
O levantamento do Datafolha publicado na quinta-feira passada mostrou o prefeito com 56% da preferência dos eleitores. Caso esse percentual se confirme nas urnas, tudo estará resolvido no primeiro turno — e, se o dia for de sol, o eleitor carioca poderá reservar o domingo, dia 27 de outubro, data que o calendário eleitoral reserva para o segundo turno, para pegar uma praia e descansar. E poderá, enquanto toma sol, pensar que no mesmo instante o pessoal de São Paulo, de Belo Horizonte e da maioria dos 101 municípios brasileiros com mais de 200 mil eleitores, estará nas filas das seções eleitorais para escolher seu prefeito.
É isso que mostram as pesquisas. Mas, por favor, muita calma nesta hora! A menos que estejamos falando da Venezuela, onde o resultado eleitoral é aquele que o tirano Nicolás Maduro deseja que seja, é preciso ter claro que as urnas só se manifestam depois de abertas. O eleitor é dono do próprio voto! E, ao longo dos 42 dias que ainda nos separam do 6 de outubro, muita coisa pode acontecer. Por mais que as pesquisas captem a tendência do momento, a escolha do eleitor pode, nas próximas semanas, sofrer a influência de fatos com força suficiente para causar mudanças radicais no cenário.
Isso mesmo! Os ventos da política podem mudar de rumo com rapidez. Uma frase dita na hora errada, uma declaração fora do contexto, uma mentira revelada... tudo pode, em determinadas situações, fazer o eleitor mudar de ideia em relação ao voto. Em outras palavras, embora seja necessário um furacão para impedir a reeleição de Paes, a hipótese de uma mudança de ventos não pode ser descartada. E ninguém melhor do que o próprio prefeito para saber disso.
SONHO DISTANTE
Em 2018, Paes largou como franco favorito nas eleições para governador do Rio e não parecia existir entre seus adversários alguém capaz de ameaçar sua liderança. Até que, na reta final, ele foi surpreendido por Wilson Witzel e, quando deu por si, a vitória do adversário já estava garantida. No momento presente, isso não quer dizer absolutamente nada. Mas serve para mostrar que se basear nos resultados das pesquisas para considerar as eleições vencidas antes da hora não é uma atitude recomendável nem para o próprio político nem para os que desejam sua vitória.
Basta que Alexandre Ramagem (PL), que aparece no Datafolha com 9% dos votos, e Tarcísio Motta (PSOL), que atraiu a preferência de 7% dos 840 entrevistados pelo Datafolha, somados aos outros seis nomes envolvidos no processo eleitoral (que, juntos alcançaram 9%), somem 50% mais um entre os votos válidos para que a campanha seja levada para o segundo turno. Se isso acontecer, alguém que hoje é apontado como um azarão pode ganhar fôlego e ameaçar o favoritismo do prefeito. Fácil não é. Muito pelo contrário. Mas também não é absolutamente impossível...
Seja como for, pelo menos até o presente momento, desta vez não parece haver no horizonte nenhuma borrasca capaz de crescer e pôr em risco a vitória de Paes. O curioso é que isso, ao invés de diminuir, só faz aumentar a importância das eleições no Rio no cenário político nacional. Como foi dito neste espaço semanas atrás, junto com o cargo de prefeito, o eleitor definirá os nomes dos vereadores que responderão pelo Legislativo carioca nos próximos quatro anos — e isso, convenhamos, não é pouco. Com a disputa pelo Executivo, ao que parece, definida com tanta antecedência, como ficará a eleição para a Câmara Municipal?
CONTATO COM O POVO
O Palácio Pedro Ernesto abriga a segunda maior Câmara Municipal do país. Fica atrás apenas da paulistana, que conta com 55 integrantes. Com suas 51 cadeiras, ela é maior do que 21 das 27 Assembleias Legislativas do país. Ou seja, ainda que a eleição para o Executivo municipal já pareça decidida, é necessário voltar a atenção para a importância do Legislativo municipal. É preciso que se reforce junto ao eleitor a importância de escolher vereadores preparados para defender as políticas públicas mais adequadas a quem vive, trabalha, estuda ou apenas visita o Rio.
Embora a melhora substancial da qualidade dos vereadores e dos debates que eles travam no plenário da Câmara pareça um sonho cada vez mais distante e ingênuo, é fundamental continuar batendo nessa tecla. O vereador é uma peça importante no jogo político brasileiro — senão por outros motivos, pelo menos pelo fato de ser o único detentor de um cargo eletivo que, por força de suas atribuições, é obrigado a se manter em contato permanente com o povo.
A eleição para vereador é importante em qualquer um dos 5569 municípios brasileiros, mas no caso específico do Rio ela é mais importante ainda. A visibilidade da cidade no cenário nacional atrai a curiosidade do país inteiro e, por essa razão, o trabalho que eles realizam é mais notado, fiscalizado e criticado do que seria se fossem eleitos em cidades que não contam com a mesma projeção. Isso vale para o bem e para o mal.
A comoção causada pelo crime bárbaro e indesculpável que tirou a vida de Marielle Franco em 2018 não teria sido a mesma se ela fosse vereadora em outro município que não o Rio. Entre 1998 e 2022, o Estado do Rio de Janeiro registrou 94 assassinatos em que as vítimas exerciam alguma atividade política — e quase 70% delas eram justamente vereadores. Os dados são de uma pesquisa acadêmica realizada pelo sociólogo Huri Paz, da Universidade de São Paulo.
A violência contra políticos no estado, claro, prosseguiu depois da pesquisa. No ano passado, por exemplo, o vereador Aldecyr Maldonado (PL) foi executado a tiros no município de São Gonçalo e não houve qualquer mobilização para que os responsáveis pelo crime fossem identificados e presos. Pesou para a repercussão da morte de Marielle, claro, o fato de ela ser mulher, preta e de esquerda. Também pesou o fato de seus correligionários terem mantido a história viva e não permitido que a brutalidade caísse no esquecimento. Mas a repercussão do crime, por mais bárbaro e cruel que tenha sido, não seria a mesma se Marielle fosse vereadora em algum município de menor visibilidade.
DEBATE ESTÉRIL
Em relação à eleição para prefeito do Rio este ano, há um ponto que ultrapassa os limites do município e precisa ser observado como sinal positivo. Embora entre na disputa com o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Eduardo Paes nunca foi 100% identificado com as ideias de esquerda. Ao contrário disso, é a própria personificação do centro. Moderado e atento às atribuições do cargo, ele sempre se revelou, nas passagens pelo Executivo municipal, muito mais preocupado com os assuntos de interesses da prefeitura do que com a pauta ideológica que separa a direita de Alexandre Ramagem da esquerda de Tarcísio Motta.
Ou seja, entre a esquerda e a direita, o eleitor do Rio, de acordo com as pesquisas de opinião divulgadas até aqui, está preferindo o centro. E há várias interpretações possíveis para essa tendência. A primeira é a de que a paciência do eleitor para o debate meramente ideológico que tomou conta do cenário político nacional nos últimos anos pode estar dando sinais claros de exaustão. O político que conseguir furar o bloqueio desse debate estéril e apresentar soluções factíveis para os problemas da cidade, do estado ou do país terá muito mais chances de conquistar a simpatia e o voto do eleitor do que teria se ficasse, como parece ter se tornado moda no país, apenas criticando os adversários por suas preferências políticas.
O mundo da política continua cheio de gente que parece não ter se dado conta disso — mas a cada dia são mais claros os sinais de esgotamento do cidadão com o bate-boca interminável entre a direita e a esquerda. O eleitor, cada vez mais, dá a entender que, para ele, o que interessa é escolher alguém que se mostre capaz de resolver seus problemas no campo da saúde, da educação, da mobilidade e — nessas eleições mais do que em todas as outras — da segurança pública. Quem conseguir esse feito, qualquer que seja sua posição, terá mais chances de ser eleito.
REI DO BAIÃO
Eleições municipais — como comprovam não só os estudos feitos pelos cientistas políticos, mas a própria tradição política brasileira — não se decidem pelos menos critérios que orientam as escolhas no campo federal e municipal. Nelas, de um modo geral, as escolhas são motivadas por problemas muito mais objetivos e visíveis do que as razões que definem os votos no âmbito estadual ou federal. Apresentar a solução para uma cratera pode não eleger um deputado, mas a promessa de tapar os buracos nas ruas de um determinado bairro pode eleger um vereador.
Muitas vezes, a possibilidade de solução de um problema local faz com que os eleitores se unam em torno de siglas e candidatos que não teriam a mesma acolhida numa eleição para deputado ou governador. E isso não acontece apenas nas grandes cidades, como é o caso do Rio, mas também em municípios menores e estados de outras regiões do país.
No início dos anos 1980, para citar um exemplo que anda meio esquecido, nada havia de mais importante no plano nacional do que a redemocratização. Todas as escolhas giravam em torno desse propósito e os políticos se dividiam entre os que queriam e os que não queriam a permanência dos militares no poder. Foi naquele ambiente polarizado que o compositor Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, anunciou a intenção de disputar a prefeitura de sua cidade natal, Exu, em Pernambuco, pelo PDS (partido criado em 1979 para apoiar os governos militares).
Para muita gente comprometida com a redemocratização que admirava Gonzagão pela música, a filiação ao "partido da ditadura" foi um pecado imperdoável e ele foi apontado como traidor. Acontece que o velho Lua, como era conhecido, não estava preocupado com a situação nacional. O que ele queria era simplesmente por um fim à guerra entre as famílias Sampaio e Alencar, que se estendeu ao longo de três décadas, gerou várias mortes e transformou a pequena Exu em sinônimo de violência no Brasil.
Gonzaga não chegou a disputar a prefeitura, mas a simples intenção de se candidatar gerou um debate que, no final das contas, foi suficiente para apaziguar os ânimos na região da Chapada do Araripe. Isso é apenas um exemplo e mostra que as questões que estão em jogo nas disputas municipais, em algumas circunstâncias, se sobrepõem aos temas nacionais e suas soluções dependem de decisões tomadas de baixo para cima. Ponto final.
Voltando ao Rio de Janeiro, existe por aqui uma tentativa insistente de transformar a disputa municipal numa batalha da guerra santa que tem envolvido o PT, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e o PL, do ex-presidente Jair Bolsonaro. Pelo que se pode concluir diante das declarações de alguns políticos, a disputa eleitoral deste ano não parece ter a finalidade de escolher o nome que administrará um dos municípios mais complexos do Brasil e do mundo, que é o Rio, pelos próximos quatro anos. Ela servirá apenas para a medir a temperatura em torno da disputa entre a esquerda e a direita que será travada daqui a dois anos, em 2026.
HIERARQUIA PARTIDÁRIA
Esse debate voltou à tona na terça-feira passada, depois que o senador Romário, que é filiado ao PL de Bolsonaro, anunciou apoio a Eduardo Paes, que conta com a simpatia do presidente Lula. Bastou que Romário assumisse essa posição para que o presidente do diretório do PL no Rio, deputado Altineu Côrtes, se manifestasse. Ele criticou a posição do ex-jogador e disse que o diretório discutirá internamente uma maneira de puni-lo.
É improvável que alguma punição venha a acontecer. Seja como for, o senador nunca escondeu sua mágoa em relação a Jair Bolsonaro que, nas eleições de 2022, dificultou sua reeleição ao declarar publicamente seu apoio a Daniel Silveira — que disputava a vaga pelo PTB. Por esse ponto de vista, ele está apenas dando o troco.
Tenha a motivação que tiver e esteja o senador certo ou errado por agir dessa maneira, a posição de Romário traz à cena uma discussão importante. Ela permite que se retome o debate já travado outras vezes neste espaço e que trata de um aspecto fundamental da democracia: o papel dos partidos políticos na vida política.
O ideal seria que, do posto mais elevado ao mais básico da hierarquia partidária, todos falassem a mesma língua e se guiassem pela mesma cartilha. E que os políticos escolhidos por uma legenda reproduzissem no exercício do mandato aquilo que prometeram ao eleitor durante a campanha. Mas, num país em que a moda é se esquecer dos compromissos assumidos com o eleitor em nome dos próprios interesses, exigir coerência de quem quer que seja parece ser, por si só, uma postura incoerente.
Na semana passada, enquanto a insubordinação do Romário era debatida na imprensa, um levantamento feito com base em dados da justiça eleitoral mostrava que, de Norte a Sul, pelo menos 85 municípios do país (nenhum no estado do Rio de Janeiro) terão candidatos que disputarão a prefeitura com o apoio tanto do PT quanto do PL. Isso representa apenas 1,5% dos 5.569 municípios brasileiros — ou seja, uma gota d'água na Baía de Guanabara. Mas, de qualquer forma, é suficiente para alimentar a discussão em torno da fidelidade partidária.
Bolsonaro, claro, não gostou, e prometeu enquadrar os diretórios que se uniram a seu arqui-inimigo. Faria melhor se lembrasse o que cantava Luiz Gonzaga e dissesse que isso "é muito pouco, é quase nada!" E que essas alianças de ocasião têm mais a ver com a solução de problemas locais do que com a ideologia. Que nem sempre é o fator que determina as escolhas políticas.
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