NUNO4AGOARTE KIKO

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já tem preocupações de sobra à frente de um governo que não mede esforços para tentar recuperar a popularidade abalada. No cenário confuso que enfrenta dentro de casa — com “aliados” exigindo favores cada vez maiores e mais caros em troca de seu apoio —, ele não deveria dedicar um minuto de seu tempo a assuntos capazes de tornar ainda mais complexa sua missão. E essa missão é governar o Brasil e cumprir as promessas feitas aos eleitores na campanha de 2022.
Mas é justamente isso — ou seja, desperdiçar seu tempo precioso e trazer para si dificuldades desnecessárias — que Lula tem feito ao utilizar parte de seu capital político (que já foi muito mais sólido do que é hoje) para agir como fiador do ditador da Venezuela, seu amigo Nicolás Maduro. Lula quer porque quer convencer o mundo de que, ao contrário de todas as evidências, a Venezuela não vive sob uma ditadura sanguinária. E que, a despeito de todas as arbitrariedades de Maduro e sua gente, vive sob a mais plena das democracias.
O problema é que, ao seguir esse caminho, Lula acaba dando a seus adversários, principalmente no Congresso, mais argumentos para atacá-lo. A primeira pergunta diante dessa postura é: por que o presidente faz isso? A segunda: ele e o Brasil têm a ganhar com isso?

PEDIR PARA SAIR — A resposta à primeira questão é relativamente simples: o presidente age assim porque é assim mesmo que ele age. Seu governo segue uma linha diplomática orientada pelas simpatias ideológicas e não pelo pragmatismo que orientou as ações do Itamaraty desde o tempo do Barão do Rio Branco. Em nome disso, ele e seus assessores diplomáticos preferem ver o poder na Venezuela nas mãos do aliado “bolivariano” do que de alguém que o povo quer ver no poder a despeito de não seguir a cartilha da esquerda.
O presidente pode até dizer que não, mas é isso que fica claro diante de todos os movimentos feitos por seu governo desde janeiro de 2023 em relação à ditadura “bolivariana”. Lula parece ter assumido a tarefa de salvar a reputação do governo da Venezuela e, contra todas as evidências, insiste em tratar como uma democracia aquilo que o mundo inteiro vê como uma ditadura, da espécie mais rasteira possível. Enquanto ele estiver no Planalto, os interesses do Brasil ficarão subordinados aos do governo do país vizinho. Ponto final. Lula só deixará de fazer isso no dia em que não for mais presidente. Ou, então, no dia em que Maduro, para o bem da humanidade, for posto para fora ou pedir para sair do Palácio de Miraflores.
A resposta à segunda questão é um pouco mais complexa. Nem Lula e muito menos o Brasil, à primeira vista, têm algo de positivo a tirar dessa proximidade à Venezuela. A não ser, talvez, a possibilidade criar uma cortina de fumaça para desviar a atenção dos problemas que se acumulam dentro de casa, à espera de uma solução que parece cada vez mais difícil. E todos os problemas do governo podem ser resumidos em uma única palavra: dinheiro.
O presidente e seus auxiliares da área econômica tentam encontrar um meio de seguir bancando uma máquina pública perdulária como a brasileira. Querem obter recursos para cumprir as promessas feitas em 2022. Precisam financiar ações emergenciais como as que serão exigidas pela reconstrução do Rio Grande do Sul, destruído pelas enchentes de maio passado. Necessitam de verba para satisfazer o apetite sem limites dos parlamentares “aliados”. Tudo isso sem permitir que a situação fiscal se deteriore ainda mais, torne a dívida pública insustentável, traga de volta a inflação galopante e gere problemas ainda maiores amanhã ou depois.
O governo parece se mexer para conseguir esse milagre. Na semana passada, o ministro da Fazenda Fernando Haddad contrariou seus colegas de Esplanada ao anunciar um corte de R$ 15 bilhões no orçamento deste ano — medida indispensável para evitar o estouro das metas fiscais. Para muitos especialistas em finanças públicas, esse corte não bastará para estancar a sangria. Mas, pelo menos, mostra que Haddad não pensa só em criar taxas para alcançar o prometido e cada vez mais distante déficit zero.
Todas as ações da equipe de Lula, voltadas para o curto, o médio e o longo prazo, parecem girar em torno desse dilema: como conseguir dinheiro para manter as despesas elevadas? A impressão que se tem, quando se olha para as medidas que aguardam providências do Planalto, é a de que Lula não conseguirá resolver um problema sem criar outro mais adiante. E que isso, querendo ou não, acabará aumentando os atritos no relacionamento do Executivo com um Legislativo que só funciona sob efeito da liberação de verbas — e não quer nem ouvir falar em corte de despesas para obter o equilíbrio fiscal.

SEM PÉ NEM CABEÇA — Ainda que a cortina de fumaça proporcionada pela decisão de transformar os problemas “bolivarianos” numa questão brasileira ajude a desviar a atenção da pressão por mais recursos que o governo vem recebendo todos os dias, isso não parece ser suficiente para justificar todo apoio dado a Maduro. O fato é que Lula insiste em chamar para si, para seu governo e para o Brasil a missão de chancelar o resultado de uma “eleição” que já estava decidida muito antes de ser convocada pelo ditador. Disposto a não abandonar o tirano de quem as democracias do mundo querem distância, Lula ainda se dá ao trabalho de levar a sério as lorotas sem pé nem cabeça que ele inventou sobre o embuste eleitoral realizado no domingo passado.
O problema é que, ao emitir suas opiniões sobre o governo de um país que nada tem a oferecer ao Brasil, e se referir à Venezuela como se as instituições locais ainda existissem e funcionassem, Lula legitima a ditadura de Maduro. E isso é péssimo para a imagem internacional de um presidente, que faz questão de se apresentar ao mundo como um grande defensor da democracia.
Mas Lula e seus auxiliares seguem insistindo em se referir à Venezuela como um país que vive em plena normalidade, sob um regime que conta com instituições consistentes, que funcionam conforme os princípios do Estado Democrático de Direito. E sempre que manifesta a respeito do cenário político do país vizinho, a diplomacia brasileira age como se o esbulho eleitoral cometido pelo caudilho há uma semana tivesse a possibilidade, por mínima que fosse, de ter um desfecho que não fosse a vitória do ditador.
Maduro se declarou vencedor antes da conclusão da contagem dos votos. Acusou os adversários de fraudar um sistema que já nasceu fraudado. Mandou prender mais de 1.200 pessoas que ousaram protestar contra sua tirania. É responsável pela morte de mais de 20 manifestantes. A maioria, como afirmam fontes de dentro da própria Venezuela, executada pelas “milícias bolivarianas” com tiros na nuca e nas costas. Como se as cenas da tragédia não falassem por si, o verdugo ainda tem a cara de pau de acusar a oposição de tentar aplicar um golpe de Estado — quando o golpista é justamente ele.

POÇO SEM FUNDO — A pergunta, portanto, permanece sem resposta: o que o Brasil tem a ganhar com o apoio a essa ditadura? Que ninguém venha dizer que o governo endureceu o jogo ao condicionar o reconhecimento da vitória de Maduro na farsa eleitoral de domingo passado à apresentação de atas eleitorais que, quando surgirem, mostrarão apenas os resultados convenientes à ditadura.
O erro de imaginar que Lula pudesse endurecer o jogo com a Venezuela, por sinal, foi cometido por esta coluna na semana passada. Num momento de otimismo, as declarações do presidente em defesa de um processo eleitoral justo no país vizinho foram interpretadas, aqui, como um sinal de que a postura brasileira em relação ao ditador pudesse, pelo menos, se tornar mais crítica. Pura ilusão.
Pelos movimentos feitos desde que mandou o assessor para Assuntos Internacionais, Celso Amorim, um amigo fraterno de Maduro, viajar a Caracas na condição de observador brasileiro das eleições, Lula continua firme na posição de fiador da ditadura. Pior do que isso, ele parece satisfeito com o papel de coadjuvante na ópera-bufa que a ditadura “bolivariana” armou para continuar torturando e matando o povo venezuelano pela fome, pelas doenças e pelos tiros disparados por seus jagunços.

VITÓRIA DE GONZÁLES — Já não faz mais sentido ficar procurando evidências que comprovem a fraude promovida por Maduro e seu regime apodrecido. Elas são nítidas demais para que qualquer pessoa que tenha um mínimo de respeito pela democracia perca tempo aguardando que a divulgação de atas fajutas consiga provar que o caudilho obteve uma vitória legítima. Na quinta-feira passada, o Secretário de Estado dos Estados Unidos, Anthony Blinken, eliminou qualquer dúvida que ainda houvesse a respeito da posição de seu governo sobre o resultado das “eleições” venezuelanas.
“Está claro para os Estados Unidos e, mais importante, para o povo venezuelano que Edmundo Gonzáles Urrutia ganhou a maioria dos votos”, disse. Na sexta-feira, os governos da Argentina, do Uruguai, do Equador, da Costa Rica e do Panamá foram na mesma direção e reconheceram a vitória de Gonzáles. A chanceler do governo de Javier Milei, Diana Mondino, foi clara: “Todos podemos confirmar, sem lugar para nenhuma dúvida, que o vencedor e presidente eleito é Edmundo Gonzáles”, disse em sua rede social.
Amorim, que voltou da Venezuela na terça-feira passada agindo como se tudo por lá estivesse na mais plena normalidade, não gostou da firmeza com que os Estados Unidos, a Argentina e os outros trataram a questão. Articulador, juntamente com os governos esquerdistas da Colômbia e do México, de uma nota que insiste na linha de pedir um diálogo institucional com o governo absolutista de Maduro, ele comentou a decisão de Blinken. “Era esperado, mas não ajuda”.
Se a rejeição ao tirano não ajuda, o que pode ajudar? Certamente, a postura de baixar a cabeça para o ditador Maduro e tratá-lo como o chefe de um governo democrático também não contribui para aliviar a carga que pesa sobre os ombros do povo venezuelano. Maduro nunca respeitou qualquer instituição e não seria agora que passaria a respeitar. O que ele chefia é uma ditadura cruel, corrupta e a serviço do narcoterrorismo. Com gente como ele, não há diálogo possível.

PRAZO DE VALIDADE — Diante de tudo isso, é bom insistir na pergunta: o que o país tem a ganhar com o apoio a Maduro? Convém observar que um argumento muito utilizado no passado — o de que a parceria comercial com a Venezuela era vultosa demais para que o Brasil fechasse as portas para o entendimento com Caracas — perdeu o prazo de validade e já não serve para justificar a manutenção do apoio. Um levantamento divulgado na semana passada pelo Bradesco BBI a partir de números da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Indústria, Comércio e Desenvolvimento (MDIC), mostra a redução absurda verificada nos últimos anos na participação da Venezuela nos negócios internacionais do Brasil.
O documento dá conta de que as exportações brasileiras para a Venezuela, que chegaram a US$ 5,13 bilhões em 2008, foram de US$ 1,7 bilhão em 2022. Os números mostram que a Venezuela, hoje, representa modestíssimos 0,7% da balança comercial brasileira — o que equivale a 0,03% do PIB nacional. Como se não bastasse, Maduro continua não dando a mínima importância para as obrigações que seu país assumiu no passado e continua aplicando calote atrás de calote nas parcelas dos empréstimos brasileiros que bancaram o metrô e outras obras públicas na capital Caracas.
Diante de tudo isso, chega a ser impressionante que, em meio ao flagrante desrespeito ao processo eleitoral que ele mesmo convocou, em meio a tantos e tão evidentes sinais de desrespeito aos direitos humanos e aos fundamentos mais elementares da democracia em seu país, ainda tem gente no Brasil que insiste em considerar a Venezuela uma democracia e a chamar de eleições o embuste que o ditador promoveu na semana passada.

FICÇÃO POLÍTICA — A extrema esquerda brasileira, claro, não perderia uma oportunidade como essa que o ditador ofereceu de bandeja para fazer o papel ridículo a que está habituada. A primeira manifestação de apoio ao ditador veio do MST — que, até onde se sabe, não tem motivo algum para dar palpite em outros países. Mas que, mesmo assim — ao lado de um punhado de organizações da mesma laia —, resolveu expressar sua simpatia pelo tirano. Simpatia, por sinal, é pouco. A atitude dos invasores de terra do MST mais parece inveja por não ter conseguido arrastar o Brasil para uma situação parecida com a da ditadura “bolivariana”.
A nota assinada pelo movimento e pelas outras entidades empilha um punhado de asneiras — entre as quais a de que a Venezuela é a economia que mais cresce na América Latina e terá a menor inflação dos últimos 35 anos. “O país tem apostado não só na sua indústria petroleira, mas na diversificação econômica para assegurar que a soberania e a riqueza permaneçam com o povo venezuelano e em seu benefício”.
Esperar por dados que confirmem esse monte de sandices sobre a pujança econômica de um país que viu mais de um quarto de sua população fugir para buscar alguma chance de sobrevivência em outra partes do mundo é o mesmo que acreditar nos resultados das atas eleitorais que Amorim ainda espera receber para reconhecer a vitória do tirano nas urnas. O pior, no entanto, ainda estava por vir.
Enquanto centenas de venezuelanos que protestavam contra o embuste eleitoral eram encarcerados e mantidas incomunicáveis e vários pessoas eram mortas pelos jagunços de Maduro, o PT, partido do presidente Lula, se manifestou na segunda-feira. “O PT saúda o povo venezuelano pelo processo eleitoral ocorrido no domingo, dia 28 de julho de 2024, em uma jornada pacífica, democrática e soberana”, diz a abertura do texto, que prossegue com outros devaneios como esse. Se o que aconteceu na Venezuela é o que o PT entende por democracia, é o caso de colocar em dúvida tudo o que seus líderes disseram até hoje a respeito desse regime de governo.
É perda de tempo perguntar se Lula sabia com antecedência que a nota seria publicada. Nada acontece no PT sem autorização de Lula. O presidente, portanto, não apenas sabia como concordou com a manifestação que, mais uma vez, gerou reações desfavoráveis. Tanto assim que, no mesmo dia que o documento foi divulgado, o estridente Randolfe Rodrigues, líder de governo no Senado, recebeu ordens para discordar do documento e dizer o que até as estátuas de Hugo Chávez, derrubadas pela população enfurecida na semana passada, sabem há muito tempo: a Venezuela vive, sim, sob uma ditadura.
Seja como for, a situação prossegue, o cenário na Venezuela parece mais confuso do que estava e a pergunta segue em resposta. E para não dizer que o Brasil só cometeu equívocos nesse processo de apoio a Maduro, convém deixar claro que o Itamaraty acertou em assumir as representações diplomáticas da Argentina e do Peru em Caracas, depois que os diplomatas desses países foram expulsos da Venezuela pelo caudilho.
É bom que os diplomatas do Brasil cumpram as obrigações da forma como recomendam as convenções internacionais e se lembrem de que estão ali como representantes dos governos argentino e peruano — e não como defensores dos interesses de Maduro. Na sede da representação da Argentina em Caracas, por exemplo, estão abrigados seis opositores perseguidos por Maduro, que obtiveram asilo do presidente Javier Milei para não caírem nas mãos dos torturadores do ditador.
É bom que o Brasil honre o compromisso de Milei e não os entregue aos esbirros de Maduro. Isso é um risco, até porque, os precedentes das administrações petistas nesse quesito são os piores possíveis. Em 2007, só para lembrar, o então ministro da Justiça Tarso Genro baixou a cabeça para o ditador Fidel Castro e deportou dois boxeadores cubanos, Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, que não desejavam voltar para seu país.
Genro não teve o pudor de, para agradar Fidel, desrespeitar todos os acordos do qual o Brasil é signatário e mandar deportar os boxeadores sem qualquer processo ou sem as mesmas garantias de defesa que ele deu, por exemplo, ao terrorista italiano, militante de uma quadrilha de esquerda que cometia assassinatos em nome de sua ideologia política, Cesare Battisti. Os enfiou num avião e os mandou para Havana — onde certamente comeram o pão que o diabo amassou nas mãos dos capangas de Fidel. Tomara que a história não se repita e que os seis venezuelanos que hoje estão sob cuidado do Brasil não tenham o mesmo destino. Tomara.