Num ambiente político polarizado como é o brasileiro, até as atas do Copom do BC são tratadas pelo governo como se fossem panfletos da direita bolsonarista
O assunto desta semana é chato, mas teria que ser enfrentado por esta coluna mais cedo ou mais tarde. O tema é a taxa de juros. O Comitê de Política Monetária (Copom), composto pelo presidente e pelos oito diretores do Banco Central, decidiu na quarta-feira passada que a taxa básica de juros da economia, Selic, será mantida nos mesmos 10,5% ao ano em que se encontrava antes da reunião. A decisão interrompeu o ciclo de cortes iniciado quase um ano atrás, na reunião do dia 2 de agosto de 2023 — quando a taxa foi reduzida de 13,75% para 13,25%.
As reuniões do Copom acontecem a cada 45 dias e, partir daí, sempre determinaram cortes discretos, porém constantes, na taxa de juros. Analistas avaliaram que, dadas as condições do mercado brasileiro e do mercado internacional, até haveria espaço para uma queda mais acelerada dos juros. Mas o Copom optou por movimentos mais cautelosos, sempre justificados nas atas das reuniões do colegiado pelo receio de que uma queda mais acelerada da Selic num ambiente de descontrole das contas públicas pudesse significar um novo ciclo de inflação descontrolada.
Mas as quedas lentas prosseguiram até que, na reunião do dia 8 de maio, chegaram aos atuais 10,5%. A decisão da semana passada interrompeu esse ciclo de quedas — e, de acordo com a expectativa dos analistas, a Selic deve permanecer no ponto em que se encontra até o final do ano. As previsões feitas em janeiro indicavam que a taxa chegaria ao final do ano em 9%.
“CAPACIDADE DE AUTONOMIA” — A decisão poderia ter sido recebida com serenidade e tratada estritamente sob o ponto de vista técnico observado na ata daquela reunião. Mas, no Brasil, até ata do Copom é tratada como panfleto político e se a discussão de qualquer assunto não envolver uma dose de intriga, não tem graça. Na reunião anterior, conforme a imprensa se cansou de noticiar, os quatro diretores do BC nomeados durante o governo de Lula tinham votado em conjunto para que a taxa ficasse abaixo dos 10,5% decididos pelo colegiado. Queriam baixá-la para 10,25%.
O presidente da instituição, Roberto Campos Neto, que chegou ao cargo por indicação do ex-presidente Jair Bolsonaro — e permanece lá devido à lei que deu independência ao BC e assegurou mandatos fixos, de quatro anos, a seus diretores —, entendeu que um corte mais profundo nos juros poderia ter impactos desagradáveis sobre o conjunto da economia. Ele e os outros quatro diretores nomeados no governo anterior, que ainda se encontram na diretoria, entenderam que ainda não era momento para isso.
Já na reunião da semana passada, que manteve as taxas em 10,5%, houve consenso. Os nove integrantes do Copom, inclusive o economista Gabriel Galípolo — cotado para assumir o comando do BC ao final do mandato de Campos Neto, no final deste ano — votaram pela manutenção dos juros em 10,5%. Até aqui, nenhuma surpresa. Tanto as divergências do dia 8 de maio quanto o consenso da semana passada foram discutidos à exaustão pela imprensa — com o presidente Lula não poupando críticas a Campos Neto tanto em uma quanto na outra ocasião.
“Um presidente do BC que não demonstra nenhuma capacidade de autonomia, que tem lado político e que, na minha opinião, trabalha muito mais para prejudicar o país do que ajudar, porque não tem explicação a taxa de juros estar do jeito que está”, disse Lula sobre Campos Neto em entrevista a uma emissora de rádio, ao comentar o resultado da semana passada.
“COISA DESAJUSTADA” — Com sua forma peculiar de enxergar o mundo — onde todos os vícios estão com os outros e as virtudes, com ele — o presidente nunca mencionou que, além de Galípolo, Ailton de Aquino dos Santos, Paulo Pichetti e Rodrigo Alves Teixeira, todos nomeados por ele, também votaram desta vez pela manutenção dos juros no patamar em que se encontravam antes. Assim como os colegas ligados ao governo anterior, que já faziam parte do Copom antes que eles chegassem para integrar o colegiado por indicação de Lula, os economistas entenderam que a situação dos mercados externo e interno exige um tratamento cauteloso e não permite, neste momento, uma redução maior da taxa.
As críticas de Lula são uma espécie de mantra que joga sobre os ombros de Campos Neto as críticas por todos os problemas da economia brasileira pelo fato de ele ter chegado onde está no governo anterior. Tanto assim que, diante da incapacidade de sua equipe em propor projetos capazes de pôr a economia para andar de forma consistente, o presidente havia se referido ao chefe do BC, na véspera da reunião do Copom, como “a única coisa desajustada da economia”.
“CONTA DO POVO BRASILEIRO” — Palavras como essas, é claro, são parte de um movimento que faz do presidente do BC uma espécie de Judas Iscariotes no Sábado de Aleluia: malhá-lo faz parte da festa. No mesmo dia da reunião do Copom, a bancada no PT na Câmara protocolou no TRF da 1ª Região uma ação que leva a assinatura de 59 dos 68 deputados federais do partido.
Talvez imaginando que os diretores nomeados por Lula para o BC, como na reunião de maio, insistissem na continuidade da redução da taxa de juros, que o presidente da instituição pretendia segurar em 10,5% — conforme já tinha sido sinalizado antes da quarta-feira —, Suas Excelências decidiram se manifestar sobre algo que não entendem. E, ao fazer isso, ao invés de abalar, ajudaram Campos Neto a se manter firme no cargo de onde pretendem tirá-lo antes do fim do mandato.
Segundo a malta petista, a postura de Campos contribui para “afetar significativamente a credibilidade da instituição e a adequada condução das políticas monetária e financeira”. Calma que tem mais! Ignorando por conveniência o passado das administrações petistas no que diz respeito às taxas de juros do BC, o líder da bancada do partido do governo, o mineiro Odair Cunha afirmou: “Não podemos achar normal o BC sacar dinheiro da conta do povo brasileiro — R$ 800 bilhões nos últimos doze meses — para pagar os custos da dívida”.
Detalhe: no primeiro mandato de Lula, quando o mundo inteiro ainda olhava com uma certa desconfiança para o tratamento que sua equipe daria à economia, o Copom, sob a presidência de Henrique Meireles, deu uma demonstração de ortodoxia ao puxar a taxa para 26,5% ao ano e mantê-la assim durante todo o primeiro semestre de 2003. Depois que o governo conquistou a confiança dos investidores é que teve início um movimento de queda dos juros. Somente em abril de 2009, já na reta final do segundo mandato de Lula, os juros ficaram abaixo dos atuais 10,5%.
CURRAIS ELEITORAIS — Sim! Os juros brasileiros estão entre os mais altos do mundo — posição que poucas vezes deixaram de ocupar ao longo dos últimos anos. E uma das explicações para que isso aconteça é, justamente, o desprezo que Odair Cunha, seus companheiros de bancada e a maioria dos políticos brasileiros demonstram pela saúde das contas públicas.
Na impossibilidade de desenhar, vamos tentar explicar da forma mais simples possível para que Cunha e os que pensam como ele consigam entender a razão dos juros básicos no Brasil serem tão altos. Se os deputados não gastassem dinheiro a rodo com emendas parlamentares que beneficiam apenas seus currais eleitorais; se não houvesse uma Constituição que engessa as despesas de custeio e praticamente obriga que os gastos correntes aumentem no ritmo da inflação; se os parlamentares não passassem o tempo todo pressionando um Executivo que é gastador pela própria natureza a gastar ainda mais; se houvesse no país um mínimo de respeito pelo que Cunha chama com eloquência de “conta do povo brasileiro”; se o governo, ao fim e ao cabo, inspirasse segurança aos investidores que compram títulos para financiá-lo, não precisaria pagar juros tão elevados em troca dos títulos que lança no mercado para fechar suas contas. Simples assim!
Outro ponto interessante é que, neste ou em qualquer outro país, nem tudo que diz respeito a juros está sob responsabilidade da autoridade monetária. Os bancos oficiais, que estão sob responsabilidade direta do governo, são incapazes de tomar uma única providência para reduzir as taxas escorchantes que cobram de quem precisa tomar empréstimos para manter vivo seu negócio e evitar o desemprego. O mesmo vale para o assalariado que dá o azar de recorrer ao limite do cheque especial. Ele daria graças a Deus se os juros que precisasse pagar para sair das dificuldades fossem os da Selic.
POLÍTICAS DE ESTÍMULO — Nos países que levam a própria economia a sério, os bancos de fomento, como é o caso do BNDES, são instrumentos do Estado e financiam o desenvolvimento com juros abaixo dos praticados pelo mercado. A lógica desse sistema é permitir que, em momentos de retração, o governo possa promover políticas de estímulo aos investimentos. Ou que, em situações de normalidade, mantenha abertas linhas de crédito capazes de permitir que as empresas continuem se expandindo.
No passado, o BNDES trabalhava com a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), que cumpria justamente esse papel. A partir de janeiro de 2018, no governo Temer, ela foi substituída pela Taxa de Longo Prazo (TLP), adotada justamente para que o BNDES passasse a trabalhar com juros semelhantes aos do mercado.
Atualmente, a TLP é de 5,91% ao ano, mais o IPCA. A taxa final ao tomador do empréstimo, no entanto, não se resume a isso. Ela ainda é acrescida do custo de captação do dinheiro repassado, da remuneração do banco (o chamado spread) e da taxa de risco de crédito — tornando as condições de financiamento do banco de fomento proibitivas para a maioria das empresas. Desde a posse do atual governo, o mercado aguarda a mudança desse critério. Até agora, porém, essa mudança não veio e nunca se ouviu de qualquer autoridade do governo qualquer crítica à TLP — embora a equipe do banco, mais de uma vez, tenha defendido mais de uma vez o fim dessa sistemática.
A pergunta é: por que o presidente Lula critica Campos Neto e não dá ao presidente do BNDES, da Caixa, do Banco do Brasil ou dos outros bancos públicos uma ordem direta para que eles reduzam os juros que cobram das empresas e pessoas físicas endividadas? A resposta é simples: a preocupação do presidente não é com a saúde financeira das empresas, mas com a ampliação do orçamento proporcionada pelo corte nas taxas.
De acordo com um cálculo feito por especialistas em contas públicas, cada ponto percentual de corte cortado na Selic significa, ao final de um ano, uma redução de pouco menos de R$ 50 bilhões a menos no pagamento de juros. E se esse dinheiro não vai para o pagamento da dívida, pode ser usado para aumentar os gastos do governo.
Os cortes lentos e graduais feitos pelo Copom desde agosto do ano passado já produziram uma redução de 3,25 pontos percentuais na taxa de juros. Parece pouco, mas não é. Numa conta arredondada, isso significará, na pior das hipóteses, uma disponibilidade superior a R$ 150 bilhões para gastar. E o adiamento do corte de mais 1,5 ponto necessário para que a Selic chegasse ao final de 2024 nos 9% previstos no início do ano custará ao governo nada menos do que R$ 75 bilhões.
TAXA DE POPULARIDADE — Na interpretação de quem conhece o comportamento e a lógica política da atual administração federal — para quem governar é gastar dinheiro sem se preocupar com o dia de amanhã —, a redução da taxa Selic contribuiria para aumentar uma outra taxa, que preocupa a Lula muito mais do que os juros. Trata-se do índice de popularidade.
Uma pesquisa do Instituto Datafolha divulgada na terça-feira da semana passada mostra o governo numa situação muito parecida daquela em que se encontrava no levantamento anterior — e, para um político que parece colocar a taxa de popularidade na dianteira de seus preocupações, esse dado é preocupante. O percentual dos que consideram o governo ótimo ou bom — e que, portanto, manifestam uma aprovação incondicional ao presidente — que era de 35%, saltou para 36%. A reprovação absoluta, que era de 33% caiu para 31%.
Para esse grupo, nada muda nem mudará de hoje até as eleições de 2026. Os que aprovam, e que vêm variando dentro da chamada “margem de erro” nos últimos levantamentos, continuarão aprovando. A inflação pode disparar, as denúncias de corrupção podem explodir, dez novos ministérios podem ser criados, pode até chover canivete: essa turma jamais deixará Lula sem apoio.
O mesmo raciocínio se aplica aos 31% que rejeitam o governo e não esperam sequer as medidas serem anunciadas para dizer que elas nunca darão certo. Se veio de Lula, está errado! Não há acordo possível! O presidente pode reduzir a inflação a zero e pôr o governo para funcionar com a organização de uma orquestra sinfônica que jamais contará com os votos dessa turma!
Nenhuma amostra é capaz de refletir com exatidão os humores da população. No caso específico dessa pesquisa do Datafolha, realizada entre os dias 4 e 13 de junho, foram entrevistadas 2088 pessoas em 113 dos 5568 municípios do país. Por mais científica que tenha sido a construção da amostra, é muito difícil se basear nesses números para tirar qualquer conclusão que não seja a de que o país continua imerso num lodaçal muito parecido com o que havia no governo anterior.
Tudo indica, para o mal do Brasil, que o ambiente político de 2026 será tão polarizado e beligerante quanto foi o de 2022. E, num cenário como esse, cada ponto a menos na taxa básica de juros pode dar ao governo mais dinheiro para gastar e, em consequência, mais armas para enfrentar a batalha de 2026 com mais chances de ficar mais quatro anos no poder.
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