Para quem considerou exagerada a afirmação feita neste espaço na semana passada, de que a preocupação com a segurança ditará o tom dos debates nas eleições municipais deste ano, a votação, na terça-feira, dos vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao projeto das saidinhas de presos em datas comemorativas, elimina qualquer dúvida a esse respeito. Duas deputadas de esquerda, para mencionar apenas os casos mais emblemáticos, esqueceram as posições que sempre defenderam nas vezes em que colocaram os direitos dos criminosos acima do sofrimento de suas vítimas e votaram contra a posição do governo — que fez o que pôde para manter o privilégio das saidinhas.
As duas, nem é preciso dizer, pretendem disputar as próximas eleições e não estão dispostas a contrariar o eleitor para agradar o governo. A primeira é Maria do Rosário, do PT, candidata à prefeitura de Porto Alegre e conhecida por suas posições extremadas sobre a questão dos direitos humanos. A outra, Tábata Amaral, do PSB, concorrerá à prefeitura de São Paulo. As duas certamente estão atentas ao que dizem as pesquisas de opinião que apontam a rejeição da população brasileira ao excesso de direitos concedidos a presidiários. E, entre se manter coerentes com a própria biografia e não correrem o risco de serem rejeitadas pelo eleitor, escolheram a segunda alternativa. E elas não foram as únicas que se guiaram por esse princípio.
Entre os 79 parlamentares que disputarão prefeituras municipais nas eleições deste ano, 49 votaram pela derrubada do veto de Lula. Outros 13 acharam melhor nem aparecer no Congresso para não ter que se explicar nem perante o presidente República nem perante o eleitor. Apenas 16 votaram a favor da posição do governo, que insistiu enquanto pôde na defesa da ideia de que os condenados que cumprem penas em regime semiaberto mantivessem o direito de sair da prisão para passar o dia das mães, o dia dos pais, o Natal e o Ano Novo em companhia de suas famílias.
O placar final foi para lá de expressivo. Na Câmara dos Deputados, houve 314 votos contra o veto, 126 a favor e 2 abstenções. No Senado, o resultado foi de 52 votos contra, 11 a favor e 1 abstenção. São números que não deixam dúvidas de que o governo se afasta daquilo que deseja a sociedade ao defender o abrandamento cada vez maior das normas de execução penal no Brasil. E que se guia apenas pela própria ideologia nos momentos em que parece dar mais importância aos direitos de quem mata, estupra, comete latrocínio, sequestra e pratica todo tipo de barbaridade do que aos de suas vítimas.
RISCO DE REBELIÃO — Às vésperas da votação, a pressão do governo sobre os parlamentares foi intensa. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski — defensor número 1 das saidinhas — e seu colega s Relações Institucionais, Alexandre Padilha, telefonaram para vários deputados e senadores pedindo que mantivessem a decisão de Lula.
Muita gente acreditou que, na hora H, esse tipo de pressão, assim como a generosidade do governo na liberação das emendas parlamentares de quem votasse com ele, acabaria falando mais alto e revertessem votos em quantidade suficiente para manter as saidinhas. No entanto, o senso de sobrevivência eleitoral falou mais alto e, no final das contas, os parlamentares acabaram reafirmando aquilo que disseram em março passado, quando decidiram pelo fim desse benefício.
Entre os argumentos do governo para defender a regalia estava o de que as saidinhas ajudam a aliviar a pressão interna do sistema carcerário e que, sem elas, deverá aumentar o quantidade de rebeliões e outros atos de protesto dentro das penitenciárias. Será que isso é verdade? Bem... é preciso muito cuidado para lidar com essa questão.
Ninguém em sã consciência pode defender um regime carcerário desumano, que submeta os condenados às condições aviltantes de uma masmorra medieval. Mas, ao mesmo tempo, é indefensável a ideia de que os condenados sejam tratados na prisão como se estivessem numa colônia de férias — como parecem defender os que, a pretexto de resguardar os direitos humanos, querem cobrir de regalias aqueles que cometeram crimes e foram condenados pela Justiça.
A função primordial da cadeia não é, como querem fazer crer os defensores dos direitos dos presidiários, ressocializar os condenados e devolvê-los ao convívio da sociedade. A privação da liberdade, antes de mais nada, deve ser vista por todos como uma punição aplicada a quem violou a lei e cometeu delitos graves. Pelo menos, é isso que a sociedade, conforme as pesquisas mais recentes demonstram, deseja que a questão seja tratada. Quanto à possibilidade do fim das saidinhas aumentar o risco de rebeliões, é o caso de recordar alguns fatos.
DECAPITAÇÃO, PAULADAS E FOGUEIRA — Vamos a eles. As saidinhas que davam aos presos o direito de passar feriados com as famílias foram instituídas no Brasil em 1984 e as maiores rebeliões que houve no sistema brasileiro aconteceram depois disso. Elas foram causadas ou por reação dos presidiários ao excesso de lotação ou por disputa de poder entre facções criminosas rivais. Em 18 de fevereiro de 2001, por exemplo, uma megarrebelião alcançou simultaneamente 29 penitenciárias do estado de São Paulo e foi deflagrada como uma demonstração de força por parte da facção PCC.
Depois que a rebelião foi contida, medidas de segurança e ações de monitoramento e de inteligência foram tomadas. Os principais líderes da facção foram isolados em presídios de segurança máxima e, em 2019, 21 deles — inclusive o líder máximo da megaquadrilha, Willian Herbas Camacho, conhecido como Marcola — foram transferidos para penitenciárias federais. E as rebeliões, se não acabaram, pelo menos ficaram mais raras diante das ações de inteligência implementadas e se tornaram mais fáceis de se controlar.
No Rio de Janeiro, a maior rebelião de que se tem notícia aconteceu o início de junho de 2004 — 20 anos depois da instituição das saidinhas — na Casa de Custódia de Benfica. O movimento se estendeu por 62 horas e foi marcado pela violência extrema. Criminosos ligados ao Comando Vermelho se amotinaram e executaram integrantes de facções rivais, numa demonstração de selvageria que deixou marcas que até hoje despertam repugnância nas pessoas minimamente civilizadas.
Os detentos montaram um arremedo de tribunal e condenaram rivais à morte por decapitação, pauladas e fogueira. Alguns, pelo que se relatou depois, improvisaram uma pelada e chegaram a jogar futebol com a cabeça de um prisioneiro assassinado. O saldo foi de 31 mortos.
Assim como os criminosos do PCC, os líderes do Comando Vermelho alcançados pela Justiça são transferidos para presídios federais. É o caso de Luiz Fernando da Costa, conhecido como Fernandinho Beira-Mar, e Márcio Nepomuceno, apelidado de Marcinho VP, e vários outros. Enquanto estiveram presos no sistema estadual, prosseguiram comandando suas atividades criminosas como se estivessem do lado de fora.
ALTA PERICULOSIDADE — O que a sociedade deseja e demonstra de forma cada vez mais clara, vale a pena insistir nesse ponto, não são regras que ampliem os direitos dos presos. O que se espera do sistema prisional, no Rio de Janeiro e no país inteiro, são medidas que de fato afastem aqueles que cometerem delitos e foram condenados pela Justiça do convívio com a sociedade. Medidas mais rigorosas de execução como, por exemplo, negar que os condenados por estupro continuem a receber visitas íntimas, como acontece atualmente.
Também são necessárias ações de monitoramento e de inteligência, que coíbam, para citar apenas um exemplo, a convivência entre criminosos iniciantes com aqueles que já são veteranos nas práticas delituosas. A falta de critérios na definição do estabelecimento em que cada criminoso cumprirá sua pena, e não separa os menos perigosos dos bandidos mais cruéis, é uma das razões que transformam o ambiente da cadeia numa espécie de universidade do crime, em que a pessoa entra recuperável e sai como um facínora de altíssima periculosidade.
A sociedade também deseja um sistema que seja capaz de manter os criminosos presos pelo tempo de duração da sentença que receberem. E que paguem pelo crime que cometeram sem punições adicionais — a menos que seu comportamento justifique medidas mais duras, como o isolamento, por exemplo. Mas, também, sem condescendência por parte das autoridades responsáveis pela execução penal.
A sociedade dá sinais cada vez mais claros nesse sentido e isso, como as pesquisas de opinião demonstram com clareza crescente, já foi captado pelos políticos que disputarão as próximas eleições. Como foi dito na semana passada, daqui por diante, o candidato que se apresentar ao eleitor sem uma proposta clara em relação à segurança pública verá suas chances eleitorais se reduzirem consideravelmente. Os resultados da votação sobre as saidinhas na terça-feira passada, mais do que confirmarem a decisão que havia sido tomada pelo parlamento anteriormente, deixam alertas importantes sobre a perda de paciência da sociedade com a forma frouxa com que os criminosos são tratados no Brasil.
A primeira lição é a de que, quando se trata da política de segurança pública, o governo federal de uma forma geral e o ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, de modo especial, parecem viver numa galáxia cada vez mais distante da sociedade brasileira. Dar às pessoas que cumprem pena um tratamento digno, que, como já foi dito aqui, não acrescente punições mais severas à restrição da liberdade prevista na lei, é obrigação do Estado. Mas daí a incorporar direitos e mais direitos aos que eles já têm passa para a sociedade uma impressão de impunidade que a sociedade rejeita com força cada vez maior.

QUESTÃO DE SOBREVIVÊNCIA — Um detalhe! Quem primeiro fez referência à sensação de impunidade daqueles que cumprem penas por crimes violentos não foi um parlamentar da direita ou do grupo da tal “bancada da bala” — que, por tradição, nunca concordou com a ampliação das regalias dos presidiários. Quem fez essa comparação foi o senador Fabiano Contarato, do PT do Espírito Santo — que também votou contra o veto de Lula. Segundo ele, que foi delegado de polícia por 27 anos antes de ingressar na política, os benefícios que a legislação brasileira concede aos presos não são razoáveis. Esses benefícios, disse o senador, “passam para as famílias das vítimas não a sensação, mas a certeza da impunidade”.
Contarato foi além. Ele disse, ainda, que o fim da saidinha não elimina as regalias de quem cometeu crimes. Uma pessoa condenada a nove anos de prisão, conforme ele explicou, ganha o direito de progredir para o regime aberto com um sexto da pena cumprida, ou seja, um ano e meio. “A cada três dias que trabalha, ela ganha um, por remição da pena de trabalho, e com um terço da pena ela já sai de vez do livramento condicional”, disse o senador.
Essa questão, é claro, é complexa e merece ser tratada com mais atenção do que vem sendo. A substituição de Flávio Dino por Ricardo Lewandowski no ministério da Justiça e, principalmente, a saída do secretário-executivo Ricardo Capelli do posto acabou prejudicando o avanço de algumas medidas de combate ao crime organizado que vinham sendo estudadas pelo governo federal. Seria bom que esses projetos não fossem abandonados e que houvesse um esforço maior no sentido da criação de um sistema nacional unificado de segurança pública.
Tomara que o resultado da votação de terça-feira passada acenda uma luz de alerta no primeiro escalão da República e faça com que o governo, que orienta suas ações com um olho voltado para os compromissos ideológicos do PT e o outro atento aos índices de popularidade do presidente Lula passe a prestar mais atenção à segurança pública. A população está cansada — e parece cada vez mais disposta a apoiar quem se mostrar capaz de protegê-la. Isso não tem nada a ver com posições de direita ou de esquerda. É, antes de mais nada, uma questão de sobrevivência.