Uma questão de pesos e medidasArte Paulo Márcio

Basta olhar para um ponto específico das estatísticas da Segurança Pública no Brasil para constatar que existe algo de muito errado com o tratamento que Rio de Janeiro vem recebendo no que se refere ao combate à criminalidade. Antes de falar dele, porém, é bom lembrar os detalhes da operação na comunidade da Maré, na qual morreu, na semana passada, o sargento do Bope da Polícia Militar Jorge Henrique Galdino Cruz. O policial Rafael Wolfgramm Dias foi ferido pelos disparos dos bandidos e está internado em estado grave no Hospital Federal de Bonsucesso.
Houve, também, quatro mortos entre os “suspeitos” — que é o tratamento que a maioria da imprensa dá aos criminosos que, ao serem confrontados pela autoridade policial, reagem com tiros disparados por armas de grosso calibre que são ou deveriam ser de uso privativo das forças de segurança do Estado. Mas que, no Rio de Janeiro, estão sempre nas mãos dos integrantes das facções criminosas que dominam as comunidades.
Na operação que começou na terça-feira passada, além de seis carros, duas motocicletas e uma grande quantidade de drogas, a polícia também apreendeu, ao final da operação, uma espingarda calibre 12 (aquela que espalha chumbo grosso para todos os lados quando é disparada), cinco pistolas, onze fuzis e uma metralhadora .30 — uma arma com potência suficiente para derrubar helicópteros. Dois dos “suspeitos’ mortos foram apontados como guarda-costas dos chefões do tráfico que se escondem na região.
Pelas informações da PM, os dois agentes foram alvejados justamente quando se aproximavam do coiteiro de um dos bandidos que gerenciam o tráfico na região — e a reação violenta de seus “seguranças” indica que “o elemento” se encontrava no local no início da operação e que, sob proteção de seus jagunços, “evadiu-se” diante da chegada da polícia. Entre os mais de vinte presos na ocasião estava um “cidadão” chamado Ismário Wanderson Fernandes da Silva, conhecido no mundo do crime pelo apelido de “Bacurau”.

ELEMENTO SURPRESA — Com uma condenação por homicídio e várias acusações em aberto contra ele, Ismário, de 34 anos, é simplesmente um dos bandidos mais perigosos do Ceará. Apontado como chefe de uma organização criminosa em ascensão na Região Nordeste, ele preferiu abandonar as brisas da Praia de Iracema, em Fortaleza, para procurar o abrigo seguro que as comunidades cariocas vêm oferecendo a criminosos de outros estados. O sicário cearense foi um dos onze capturados na operação da terça-feira passada que trocaram seus estados natais pelo Rio de Janeiro.
A despeito da tragédia que representa a morte de um agente em serviço, a operação pode, do ponto de vista policial, ser considerada um sucesso — mas, por seus desdobramentos, a impressão que se tem é a de que a polícia estava errada e que os criminosos tinham todo o direito de recebê-la à bala e, além disso, de mandar fechar a Avenida Brasil, a Linha Vermelha e a Linha Amarela como represália por terem sido incomodados em seu refúgio. A operação ainda estava em curso quando o ministro Edson Fachin, do STF, cobrou do governador Cláudio Castro (PL) esclarecimentos sobre o comportamento da PM durante a ação.
Fachin se pronunciou não por iniciativa própria, mas em resposta a pedidos prontamente apresentados pelo PSOL e pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro. O partido de esquerda e o órgão público recorreram à Justiça com base na Arguição de Descumprimentos de Preceitos Fundamentais (ADPF) que, desde 2020, determina que a polícia informe com antecedência todas as ações que pretende realizar contra bandidos que se escondem nas comunidades cariocas. Tomada durante a pandemia da Covid-19, a ADPF, a princípio, visava proteger os cidadãos que vivem nas comunidades, e que são utilizados como escudos humanos pelos bandidos, dos efeitos colaterais das ações policiais.
A pandemia já acabou faz tempo. A vida — pelo menos no que diz respeito a essa questão de saúde pública — já voltou ao normal. Mas a polícia fluminense continua obrigada a informar com antecedência os passos que pretende dar para perseguir bandidos. Isso gera uma tramitação burocrática sujeita a todo tipo de vazamentos e, na prática, reduz as chances de sucesso de qualquer operação destinada a capturar os criminosos que se escondem nas comunidades. Na prática, a movimentação da polícia chega ao conhecimento dos bandidos antes de a tropa sair do quartel em seu encalço e torna inócua qualquer ação cuja eficácia dependa do “elemento surpresa”.
Numa situação como essa, os criminosos sentem-se mais protegidos nas comunidades fluminenses do que em qualquer outro lugar no país inteiro. E, segundo especialistas em Segurança Pública, isso tem atraído para o Rio bandidos perigosos de outros estados, como é o caso do cearense Ismário. Ou, pior ainda, da facção paulista PCC que, conforme denunciou o jornalista Sidney Rezende neste jornal, tem se esforçado para estender seus domínios em direção ao Rio. Antes de entrar no detalhe estatístico mencionado na primeira frase deste texto, convém fazer aqui uma observação.

ESCUDOS HUMANOS — Essa observação é a seguinte: ao interpelar o governador Cláudio Castro pela operação, o ministro Fachin agiu de acordo com suas convicções e plenamente amparado pela legislação brasileira. Goste-se ou não daquilo que ele determinou, a decisão está tomada e precisa ser cumprida. Ou, então, revogada com base na mesma lei que a embasou. Ponto final. Acontece, porém, que o magistrado jamais teria tomado essa ou qualquer outra decisão a respeito se alguém não o tivesse provocado e pedido que o STF se pronunciasse a respeito.
É isso que precisa ficar claro: ministros do STF, por princípio, não agem pela própria vontade. Para tomar uma decisão eles precisam, como se diz no jargão do direito, ser “provocados” por alguém. Nesse caso específico, quem parece mais interessado em proteger as facções criminosas que, nos últimos anos, se transformaram em organizações narcoterroristas com ramificações internacionais, é o PSOL.
Esse partido de extrema esquerda age em relação ao problema da criminalidade muito mais preocupado em afirmar sua ideologia do que em proteger os direitos dos cidadãos ameaçados pelo crime. Convém esclarecer que, neste texto, o substantivo “cidadão” é utilizado para mencionar todas as vítimas da violência. Elas podem ser tanto as pessoas de classe média que vivem em bairros da Zona Sul e que, a toda hora têm seus carros roubados pelos bandidos. Ou que perdem a vida por se recusar a entregar um celular ao criminoso que o assalta. Mas, também e principalmente, se aplica aos trabalhadores que vivem nas comunidades desassistidas pelo Estado e dominadas pelo crime, que são feitos de escudos humanos sempre que os criminosos se veem sob ameaça de alguma operação policial.
Em nome de seus objetivos políticos e da insistência em tratar como inimigos todos os que ousam desafiar sua ideologia esquerdista, o PSOL tem procurado compensar sua falta de apoio eleitoral com recursos recorrentes à Justiça. O partido é mestre em fomentar o ativismo Judicial, recorrendo ao STF contra toda e qualquer ação do Estado que visa proteger a sociedade dos criminosos. E, nesse ponto, o partido revela de que lado está nos momentos em que, como fez na terça-feira passada, nem espera pela conclusão de uma operação policial antes de questioná-la na Justiça.

LETALIDADE POLICIAL — O detalhe estatístico mencionado no início deste texto diz respeito à chamada “letalidade policial” e à quantidade de civis que morrem em decorrência de tiros disparados por agentes militares ou civis. No ano passado, foram registradas em todas as 27 unidades da federação um total de 6445 mortes de civis por ação da polícia. O número é elevadíssimo, mas representou uma redução discreta, de apenas 2,3%, em relação aos dados de 2022.
O ponto, já mencionado em textos anteriores e para o qual a coluna volta a chamar atenção, é que um dos estados que ajudaram a puxar para baixo as estatísticas desse tipo de “violência” foi justamente o Rio de Janeiro. Um total de 869 morreram por ação da polícia em todo o estado em 2023, diante de 1330 em 2022.
Enquanto isso, a polícia da Bahia continua sendo a que mais faz vítimas fatais no Brasil. Em 2022, 1468 pessoas morreram em confrontos com os policiais baianos. No ano passado, 1689.
Reduzir a perda de vidas humanas à frieza de um dado estatístico como esse, sem levar em conta as circunstâncias em que ocorreu cada um desses óbitos, é uma atitude que abre espaço a todo tipo de generalização. E toda generalização, como se sabe, é uma porta aberta para análises que correm o risco de ser injustas. Mas, diante de números tão eloquentes, chega a ser assustadora a omissão de um partido tão diligente quando se trata das ações policiais no Rio de Janeiro no que se refere às mortes provocadas pela polícia na Bahia ou no estado do Amapá. Do ponto de vista estatístico, o pequeno Amapá tem a polícia mais violenta do país. Em 2022, ela provocou 129 mortes. Em 2023, 186.
Os políticos de esquerda, no entanto, não parecem estar nem aí para as ações da polícia da Bahia — estado que há mais de 20 anos está nas mãos de políticos do PT, partido do qual o PSOL é satélite. Também não parecem muito preocupados com a situação no Amapá — que, de 2010 para cá, foi governado pelo PSB, pelo PDT e, agora, pelo Solidariedade, todos simpáticos às bandeiras da esquerda. Contra eles, no entanto, o PSOL não age.
A inércia que faz o partido ignorar a ameaça da polícia às “populações vulneráveis e indefesas” da Bahia e do Amapá é evidente quando comparada ao ativismo demonstrado no Rio de Janeiro. E quem paga por isso é uma população que vê uma questão sensível e delicada como a da Segurança Pública ser tratada à luz de interesses regionais e não contar com uma orientação que valha para todo o país. Enquanto não houver uma política de segurança pública de abrangência nacional, o povo do país inteiro ficará refém dos criminosos e dos oportunistas que tentam tirar proveito dessa situação em seu próprio benefício. Ponto final.
O PSOL é o caso típico de um partido que, em nome de uma ideologia, não se move por princípio, mas por conveniências. Em tempo: ele não é a única agremiação com representação no parlamento brasileiro que adota esse tipo de postura. Infelizmente, ele representa a regra, não a exceção.
De um modo geral, têm sido raros os políticos, sejam identificados com a direita, sejam com a esquerda, que preferem manter a coerência de suas posições ao invés de tirar proveito de mudanças de lado. Esta coluna menciona, sempre que tem a oportunidade, aqueles que foram eleitos em nome de princípios opostos aos do PT e que não hesitaram em mudar de lado no momento em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lhes ofereceu uma cadeira em seu ministério. Ao aceitar, eles fizeram justamente o mesmo que fazem os que fecham os olhos para as mortes provocadas pela polícia baiana e cobram rigor contra as ações dos agentes fluminenses: se mostram mais preocupados com seus interesses imediatos do que com os da população que representam.

OLHOS NAS PESQUISAS — Já foi mencionado em edições anteriores desta coluna, mais de uma vez, que o eleitor está farto da violência e cobrará de todos os candidatos — já a partir das eleições municipais deste ano — uma posição firme em relação à segurança pública. Foi essa a razão que levou deputados historicamente identificados com as causas da esquerda a votar, na sessão do dia 28 de maio, contra o veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao projeto das saidinhas. Entre esses parlamentares estavam Maria do Rosário, que pretende sair candidata pelo PT à prefeitura de Porto Alegre, e Tábata do Amaral, que disputará pelo PSB à prefeitura de São Paulo.
A maioria dos parlamentares que se lançarão candidatos a prefeito em outubro deste ano participou daquela votação com os olhos postos nas pesquisas que revelam a rejeição dos eleitores às regalias dadas aos condenados que cumprem pena em regime semiaberto. Eles preferiram contrariar o presidente da República a desafiar a vontade dos eleitores a quem pedirão votos a partir de agosto.
O problema não está, é bom que se diga, no fato de os políticos tomarem decisões que coincidem com aquilo que os eleitores desejam que eles façam. O problema consiste, como tem sido comum no Brasil, em prometer uma coisa ao eleitor e, depois de eleito, empossado e em poder das prerrogativas do mandato, mudar de ideia e fazer o oposto do que desejavam aqueles que lhes confiaram os votos. Ou de cobrar do adversário uma postura que não condiz com aquela que ele mesmo está disposto a adotar.

PROCESSOS ARQUIVADOS — Esse, aliás, é um ponto interessante. Veja, por exemplo, o que aconteceu no último dia 5, na sessão do Conselho de “Ética” da Câmara, que avaliou a conduta do deputado André Janones (Avante-MG). O parlamentar mineiro, como se sabe, foi gravado num discurso em que exigia parte dos salários de seus assessores para ajudá-lo a pagar suas despesas com campanhas eleitorais. Só que, ao contrário do que fazem quando o denunciado é um adversário político, os deputados de esquerda não viram no ato de Janones qualquer razão para qualquer tipo de reprimenda. E mandaram arquivar o processo sem que ele levasse o menor pito por ter achacado seus funcionários de forma tão acintosa.
O que aconteceu na reunião é motivo de vergonha para qualquer parlamento do mundo. Armou-se, ali, uma confusão que, de forma alguma, condiz com o esperado “decoro parlamentar”. Confiando que a “turma do deixa disso” entraria em cena para evitar qualquer consequência mais séria, Janones resolveu reagir às críticas que recebia de seus adversários. Certo de que seu gesto seria gravado pelas câmeras da TV, armou-se de coragem, estufou o peito, e partiu para cima de seu desafeto, o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG). Os dois, que devem seus mandatos à eficiência do uso das redes sociais, se desafiaram a resolver o assunto “no braço”, exatamente como faziam as crianças quando se desentendiam durante o recreio nos grupos escolares de antigamente.
Tirando o papelão protagonizado pela dupla, o que está por trás desse episódio é justamente o tratamento diferenciado que se dá a deputados flagrados em práticas indefensáveis como a da rachadinha. O ato, que os parlamentares de esquerda consideram gravíssimo quando cometido por um parlamentar da direita, é perfeitamente defensável quando praticado por um dos seus pares. E vice-versa.
Pensa que acabou? Nada disso! Na semana passada, o mesmo Conselho de “Ética” da Câmara mandou arquivar o processo que pedia a cassação do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ). No dia 16 de abril, ele expulsou a pontapés, sob a proteção da “Polícia Legislativa”, um militante do MBL que se encontrava nas dependências da Câmara dos Deputados. Habituado a demonstrações de valentia quando se encontra em ambiente protegido, Braga não vê nada de errado na hora de, com a ajuda de “agentes de segurança” pagos com dinheiro do povo, praticar violência contra um cidadão no uso de seus direitos políticos. No entanto, é um dos que levantam a voz na tentativa de encostar contra a parede os policiais que agem contra os bandidos que fazem de “escudos humanos” os cidadãos que vivem nas comunidades do Rio.
Enquanto esse tipo de situação existir e o povo não fizer bom uso do voto, que é a arma mais poderosa que tem para agir contra os políticos que colocam seus objetivos tão à frente dos interesses da sociedade, a situação não vai mudar. E, enquanto não mudar, o povo continuará sofrendo com a segurança e outras mazelas.
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