Com os interesses parlamentares estarão voltados para as eleições, é pouco provável que o Congresso mostre trabalho este ano. Isso é lamentável, mas é o que acontecerá
Arte coluna Nuno 09 junho 2024 - Arte Paulo Márcio
Se a intenção fosse manter a tradição brasileira, que recomenda aos colegas de trabalho que sorteiem seu “amigo oculto” e troquem presentes no fim do ano, os deputados e senadores que dão expediente no Congresso Nacional já deveriam estar preparando a festa. Para eles, naquilo que diz respeito ao exercício da função para a qual foram eleitos, o ano chegou ao fim. Isso mesmo! Ainda que o calendário gregoriano indique que, a partir de hoje, ainda faltam 205 dias para o Réveillon, o ano parlamentar de 2024, na prática, já acabou!
É provável que daqui até dezembro um ou outro projeto rumoroso demais para ser deixado para depois ainda seja levado à votação. Ou, então, que Suas Excelências, em algum momento do segundo semestre, façam algum “esforço concentrado” e abandonem por dois ou três dias os afazeres relacionados com seus interesses pessoais para resolver a toque de caixa algumas das questões que têm obrigação de resolver.
Mas, naquilo que diz respeito à pauta estruturante, aquela que poderia corrigir problemas históricos, gerar renda e empregos de qualidade, e que a maioria dos candidatos sempre menciona quando aborda o eleitor à caça de votos, podemos esquecer. Toda generalização é sujeita a injustiças e pode ser que entre os 513 deputados e 81 senadores exista quem queira mostrar trabalho. A questão, porém, não está sendo tratada, aqui, sob ponto de vista individual, mas, sim, estrutural. Naquilo que exige a mobilização do Legislativo como um dos três poderes da República, nada de importante acontecerá!
A menos que esta coluna esteja redondamente enganada — e, se estiver, não se furtará a pedir perdão pelo equívoco — a semana que se inicia hoje será a última de trabalho do ano e será dedicada à aprovação definitiva pela Câmara dos Deputados do chamado programa Mover. Trata-se, como vem sendo mostrado nos últimos dias, de um projeto de iniciativa do Ministério da Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) que oferece benefícios às montadoras de veículos para o desenvolvimento de projetos de descarbonização da frota nacional.
Até aí, tudo bem. A questão é que o projeto traz escondido em seu bojo a cláusula que institui a cobrança de uma alíquota de 20% sobre compras pela internet de produtos estrangeiros até o valor de US$ 50. Não se trata de aprofundar, aqui, nas causas e consequências da queda de braços que se estabeleceu entre o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e o presidente da Câmara, Arthur Lira, em torno dessa taxação. Isso já foi tratado por muita gente ao longo de toda a semana que passou.
DEBATE ESPECÍFICO — Em resumo, Lula, a princípio, era a favor da cobrança. Mas passou a ser contra por receio de que a medida prejudicasse ainda mais sua popularidade junto à classe média. Lira, a princípio, era contra. Ele dizia que a sociedade paga mais impostos do que deveria. Também mudou de ideia e passou a considerar a isenção prejudicial à indústria e ao comércio nacionais — que têm sido submetidos a condições desiguais de competição com os produtos importados de baixo preço.
Trata-se de uma discussão importante demais para ser tratada como um problema que todos desejam varrer para debaixo do tapete. O tema diz respeito à lógica fiscal do país e merecia um debate específico e profundo — e não ser encaminhado, como foi, na base do disse-que-disse. Seja como for, o tratamento dado a essa questão revela a importância secundária que o Legislativo vem dando a suas atribuições originais. Ao contrabandear o assunto para dentro de um projeto de lei que trata de um tema completamente distinto, a Câmara e o Senado acabam abdicando do poder de definir a agenda de debates com base nos interesses da sociedade.
Esse assunto logo será esquecido e o Congresso Nacional, a despeito da importância do papel a ele reservado no regime democrático, passará o segundo semestre inteiro voltado para os interesses paroquiais de seus integrantes. O que não falta, para os parlamentares, de agora ao fim do ano é o que fazer fora de Brasília. O mês de junho, como se sabe, é tradicionalmente aproveitado pelos deputados dos estados da Região Nordeste para “manter contato com as bases” nos festejos de São João e dos outros santos da época.
Isso significa que, dos 513 deputados da Câmara, 151 — que é o total de representantes dos nove estados da região — estarão com as cabeças mais voltadas para as festividades juninas do que para seus afazeres parlamentares. O mesmo vale para 27 dos 81 senadores.
Com uma turma tão numerosa curtindo as fogueiras e apreciando o forró nas festas dedicadas a Santo Antônio, São João e São Pedro (que, por sinal, são ótimas!), será praticamente impossível levar à frente qualquer discussão importante ou decidir sobre algum tema mais delicado daqui por diante. Como se não bastasse, dentro de pouco mais de um mês, no dia 20 de julho, terá início o merecido recesso parlamentar de meio do ano. Afinal, ninguém é de ferro!
A agenda oficial, a rigor, prevê apenas duas semanas de paralisação dos trabalhos. Este ano, porém, o recesso de agora deverá ser emendado com o do fim de ano. Afinal, 2024 é ano de eleições municipais. E por mais que tenha sido eleito para cuidar dos temas nacionais mais importantes, cada parlamentar brasileiro tem um município para chamar de seu. Isso se tornou ainda mais evidente depois que a farra da execução das emendas parlamentares fez com que seus interesses se voltassem ainda mais de suas bases.
EMENDAS IMPOSITIVAS — O calendário está apertado. O período entre os dias 5 e 16 de agosto será dedicado às convenções partidárias, que definirão os candidatos a prefeitos e vereadores dos 5568 municípios brasileiros. Logo em seguida, terá início a campanha eleitoral propriamente dita — que, na prática, já começou há muito tempo —em parte pela ação dos próprios parlamentares.
Explica-se: com mais ou menos R$ 30 milhões por ano (ou R$ 120 milhões ao longo do mandato) para gastar apenas com as “emendas impositivas” destinadas a “investimentos” em suas bases (e sem considerar os orçamentos secretos e os jeitinhos que sempre dão para aumentar seu acesso ao dinheiro público), os deputados e senadores se tornaram cabos eleitorais poderosíssimos. Os candidatos apoiados por eles têm uma chance de visibilidade muito maior do que os que não dispõem de recursos tão abundantes para aplicar em obras que chamem a atenção do eleitor.
Voltando ao calendário, o primeiro turno das eleições municipais está marcado para o dia 6 de outubro. Nos municípios com mais de 200 mil eleitores — um total de 96 entre os mais de cinco mil existentes no país — pode haver segundo turno no dia 27, três semanas depois. Portanto, quanto a fatura eleitoral estiver liquidada, ainda restará todo o mês de novembro e pelo menos metade de dezembro para que a turma mostre serviço ainda neste ano.
Só tem um problema: existe uma disputa ferrenha em torno do nome que substituirá Arthur Lira no comando da Câmara. A decisão só será tomada em fevereiro, mas o assunto já vem mobilizando as atenções da casa desde o início deste ano. Também haverá sucessão no Senado, onde já é praticamente certo que Davi Alcolumbre (União-AP) substituirá o inexpressivo Rodrigo Pacheco (PSD-MG) na presidência.
Seja como for, o mais provável é que, até a definição do nome do presidente da Câmara — cujo trabalho mais importante nos últimos anos tem consistido num embate permanente com o Executivo pela ampliação do acesso dos parlamentares ao dinheiro público —, ninguém parece disposto a mover uma palha para resolver qualquer tema de interesse da sociedade. Pode ser até que algum parlamentar mais dedicado tente furar esse bloqueio e mostrar trabalho. Mas é pouco provável que obtenha sucesso. Ou seja: naquilo que diz respeito aos temas estruturantes, enquanto 2024 está terminando em junho, 2025 só começará em fevereiro.
Existe, ainda, um outro aspecto importante a ser levado em conta: o Congresso que voltará após as eleições municipais não será exatamente o mesmo que está interrompendo seus trabalhos agora. Entre os 513 deputados, cerca de 80 devem ser oficializados pelas convenções partidárias e sair candidatos às eleições deste ano. Caso 50 deles candidatos consigam trocar o Poder Legislativo pelo Executivo municipal — o que é muito provável —, a Câmara poderá sofrer uma renovação superior a 10% de seus quadros.
BALANÇA ELEITORAL — A questão do efeito anabolizante das emendas impositivas sobre o prestígio eleitoral de quem está no exercício de mandato e dos candidatos que eles apoiam nos municípios é um tema para ser debatido mais tarde. Porém, é conveniente registrar desde já que essa dinheirama à disposição de alguns políticos provoca um desequilíbrio enorme na balança eleitoral e, por consequência, em todo sistema democrático.
Isso mesmo. Uma das consequências mais nefastas desse sistema, que confere aos parlamentares o direito de decidir, com base apenas nos próprios interesses, onde e como serão gastos os recursos das emendas, sem a necessidade de consultar ou dar satisfação a quem quer que seja, desequilibra a balança a favor de alguns candidatos. As chances de alguém que dispõe de tantos recursos conseguir influenciar a decisão do eleitor são muito superiores às de quem não faz parte desse grupo. Simples assim.
Perceba-se que, aqui, não estamos tratando dos riscos de mau uso desse dinheiro nem falando de gastos em projetos socialmente irrelevantes (como é o caso da estrada que o atual ministro das Comunicações, Juscelino Filho, construiu com dinheiro de emendas parlamentares nas terras de sua família, no Maranhão). O que interessa apontar, pelo menos por enquanto, é a vantagem que o acesso a essa verba dá aos parlamentares que, daqui a alguns dias, estarão com as cabeças voltadas apenas para as eleições.
Num cenário como esse, é preciso que o eleitor esteja cada vez mais atento aos detalhes que cercam o exercício dos mandatos do parlamentar que ajudou a eleger. A toda hora, alguns deles dão sinais de que, talvez, não devam merecer uma segunda chance. Desde a confirmação da eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para seu terceiro mandato como presidente da República, por exemplo, esta coluna tem criticado de forma sistemática a postura de políticos que se dirigiram ao eleitor com um discurso contrário ao do PT, mas se deixaram seduzir pela primeira oferta que receberam para ocupar um cargo no governo. A crítica, como já se disse outras vezes, não é dirigida ao presidente que fez o convite — e que tem todo direito de construir pontes que assegurem a governabilidade — mas a quem disse uma coisa na campanha e assumiu outra postura depois de eleito.
A questão é que, no atual momento da política brasileira, nem essa maioria artificial, construída com base na cessão de espaço na máquina pública a grupos que inicialmente faziam oposição, tem sido suficiente para dar ao governo maioria suficiente para lhe dar tranquilidade nas votações dos temas de seu interesse. De acordo com levantamentos feitos por quem acompanha de perto o trabalho parlamentar, o mês de maio, que chegou ao fim na semana retrasada, marcou o período de menor apoio ao governo na Câmara dos Deputados desde o início do atual mandato do presidente Lula.
O fato é que, ao longo de todo esse semestre, a tensão entre o governo e o parlamento foi permanente e é muito pouco provável que a equipe de operadores políticos do presidente chegue ao final do ano com a mesma configuração que iniciou. A pressão pela saída do ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, por exemplo, é enorme — e, talvez Lula tenha que encarar a circunstância de entregar a cabeça de seu velho aliado para não ter que sofrer derrotas ainda mais acachapantes na Câmara.
No Senado, a situação não é muito diferente e a saída do subserviente Rodrigo Pacheco da presidência, em fevereiro, deverá dificultar a aprovação de projetos de interesse do Planalto na Casa. E mais: o fato de o governo ter como líder no Congresso o estridente senador Randolfe Rodrigues (AP) — que nem partido tem — indica que o Planalto tem um problema sério na representatividade de seus interlocutores com o parlamento.
Razões como essas sugerem que talvez seja até bom para os planos de Lula que os parlamentares, neste momento, concentrem seus interesses nas eleições municipais e diminuam, ainda que momentaneamente, a pressão sobre o governo neste segundo semestre. Isso dará ao presidente tempo para por a casa em ordem e, quando 2025 chegar, começar a pensar em providências que não atrapalhem seus planos para 2026.
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